1710 — Neste dia, a expedição francesa do capitão de fragataJean François Du Clerc penetrou na cidade do Rio de Janeiro, mas foiobrigada a render-se depois de porfiado combate. A cidade tinha então12 mil habitantes e ocupava o espaço compreendido entre o mar, osmorros do Castelo e de São Bento, e um fosso, chamado Vala, que ia dalagoa e campo de Santo Antônio (hoje largo da Carioca) até a Prainha.Corria esse fosso pelo local onde depois se formou a rua da Vala, hojeUruguaiana; na extremidade da rua de Antonio Vaz Viçoso (hoje, SãoPedro), mudava de direção para chegar ao mar, passando entre o morrode São Bento e o da Conceição. A rua Direita ou da Cruz (hoje rua 1o demarço) era a única que se estendia do Castelo ao São Bento. A casa dogovernador ficava ali, em frente à rua do Palácio (hoje da Alfândega),tendo à esquerda o trapiche da cidade. Do lado do campo, a última ruaparalela à Direita era a dos Ourives; da parte de São Bento, a últimarua perpendicular a essas duas era a de Antonio Vaz Viçoso. Entreesta última, a Direita e o morro de São Bento havia uma planície eum pântano. As igrejas do Rosário e de São Domingos e a chácara doFogo, que deu o nome primitivo da atual rua dos Andradas, ficavamfora dos limites da cidade, em uma planície entrecortada de pântanos,chamada, então, campo de São Domingos ou do Rosário. Dois caminhosconduziam desse lado para o interior; um terceiro, chamado caminhodo Desterro (hoje rua Evaristo da Veiga), e do morro deste nome, emdiante, azinhaga de Mata Cavalos (rua do Riachuelo), começava perto dalagoa de Santo Antônio (antiga lagoa do Boqueirão, já muito reduzida),seguia as faldas dos morros do Desterro (Santa Teresa) e, pela mata dosPorcos (Mata Porcos), ia ter ao Engenho Pequeno dos padres (depoisEngenho Velho), à Tijuca e ao Engenho Novo. O governador Franciscode Castro Morais, guarnecidas as fortalezas, esperava o inimigo pelolado do campo do Rosário, tendo aí reunido, atrás do fosso, ou vala,uns dois mil homens de tropa regular, milicianos e voluntários; noentanto, Du Clerc, que vinha da Tijuca (desembarcara em Guaratibano dia 11 com mil homens), marchou por Mata Cavalos, caminho do EFEMéRIDES BRASILEIRAS531Desterro, caminho da Conceição da Ajuda (hoje rua da Ajuda), ruas doParto (depois, de São José) e da Misericórdia, praça do Carmo (largodo Paço) e rua Direita. Junto ao Desterro (Santa Teresa), repeliram osfranceses alguns destacamentos de ordenanças, e, ao entrarem na cidade,foram hostilizados pela artilharia do forte de São Sebastião, no Castelo.“Continuando sua marcha [diz uma relação inédita de Arnoult deVaucresson, dirigida ao ministro das Colônias, conde de Pontchartrain]ele [Du Clerc] entrou na cidade, onde as casas que estavam geralmenteguarnecidas de armas fizeram um tiroteio cerrado sobre suas tropas, quenão sabiam, por assim dizer, onde se esconder. Chegaram, no entanto, àpraça de armas, onde foi impossível a Du Clerc de colocá-las em batalha,devido ao tiroteio contínuo que se fazia sobre elas desde as casas quedavam para a dita praça... Foi então em direção a um grande armazémfortificado com cinco canhões e guarnecido por homens armados, queestava à beira-mar (Trapiche da Cidade, na Rua Direita), que atacou eremoveu, apesar de sua resistência. De Boiron foi o primeiro a subir, commuita bravura e intrepidez. Ele foi investido e atacado imediatamentede todos os lados, por inimigos tão numerosos, que notando que haviaperdido um terço de seus homens e que não lhe restavam mais quesete oficiais, depois de muitas negociações com o governador, aceitou aoferta que este lhe fez de recebê-los como prisioneiros de guerra, parasalvar o resto das tropas.” A relação portuguesa na Hist. gen. (t. VIII)concorda nos pontos principais com a descrição francesa: “Formaramse [os franceses] junto ao convento do Carmo (Largo do Paço), e, nãopodendo forçar-lhe as portas, já com perda de muita gente pelas ruas, eretaguarda, foram em demanda da casa dos governadores; e, sendo-lhespor muito tempo defendida a entrada com mortes de uma e outra parte,por uma companhia de estudantes, mas metendo-se alguns franceses nopalácio e corpo de guarda, vieram todos a ficar prisioneiros ou mortos.Assim que o governador teve notícia de que os inimigos entraram nacidade, fez marchar o mestre de campo Gregório de Castro Morais como seu terço, e por outra parte o capitão Francisco Xavier de Castro,filho primogênito do coronel, governando este troço o seu sargento-morMartim Correia de Sá. Chegaram estes corpos à rua Direita, onde aindaos estudantes embaraçavam os inimigos, e os nossos os atacaram tãovigorosamente, que, desamparando o corpo de guarda, se retiraram poruma travessa para a parte da praia, e entraram em um armazém a que OBRAS DO BARÃO DO RIO BRANCO532chamam Trapiche; e, ainda que se lhes disputou a entrada, ganharamseis peças de artilharia, que ali estavam, que já lhes haviam no princípiofeito algum dano; aqui mataram o mestre de campo Gregório de CastroMorais com duas balas, e com outra feriram nos peitos, e em uma ilhargacom uma baioneta, a seu filho Francisco Xavier, e também recebeualgumas feridas o capitão José de Almeida, havendo procedido comvalor em toda a ocasião. O governador intentou pôr fogo ao armazém.O capitão Antonio de Ultra da Silva, que com a cavalaria havia acudidoao conflito, querendo adiantar-se de todos a entrar no armazém, foimorto. O comandante Du Clerc, vendo-se neste aperto, determinoucapitular.” Renderam-se aí 650 franceses, tendo sido mortos 280.Entre os últimos estavam os oficiais e guardas-marinha de Patreville,d’Irrumberry, de Proissy, de Rilly, de Varaise, de Miraillete e de LaMesanchère (foram 11 os oficiais mortos); entre os prisioneiros feridos,o cavaleiro de La Sausaye, comandante da fragata La Valeur, o condede Ruis, de La Rigoudière, du Fay d’Issondun, de Coigne, o marquêsde Linars, de Préfontaine, o marquês d’Assigny e de Saint-Légier; entreos não feridos, o comandante Du Clerc, de Courcy, de La Salle, de LaCaillandière, de Chandolan, Monclerc de Peyre, de Pont de Villene,de Laval de Montmorency, de Tolède, de Villedon, des Fontaines e dePradelles (foram 41 os oficiais prisioneiros, muito deles feridos). Donosso lado, houve 200 mortos e feridos. Os mortos foram 70, incluindo“15 ou 16 negros, uns que pelejaram, outros que quiseram ver, cuidandoque era festa”, disse o cura da Sé. Na relação desses mortos, encontramse os nomes do mestre de campo e do capitão de ordenanças de cavalaria,anteriormente citados (este último era de São Gonçalo), do ajudanteGaspar Queirosa, do professor José de Faria, dos estudantes Pedro daCosta, Francisco Teles, Antônio Moreira, Francisco Peleja (filho dodesembargador Peleja, ouvidor em São Paulo) e José Ferreira (filhodo santeiro Francisco Ferreira), do pintor Manuel Gomes Torres, doorganista da Sé Antônio Maciel, de um caixeiro e de vários operários,que sem dúvida pertenciam aos corpos de ordenanças. A Companhiados Estudantes, que tanto se distinguiu, era comandada pelo capitãoBento do Amaral Coutinho, “uma das pessoas principais desta cidade”,dizia uma representação da Câmara (ver 23 de setembro de 1711). LuísXIV confiou no ano seguinte a Duguay-Trouin o desforço deste revés(ver 12 e 20 de setembro de 1711).