Roteiros e notícias de São Paulo colonial (1751-1804)
1977. Há 47 anos
JORNAIS DAS VIAGENSPELA CAPITANIA DE SÃO PAULODEMARTIM FRANCISCO RIBEIRO DE ANDRADAJORNAL DE VIAGEM POR DIFERENTES VILAS ATÉ SOROCABA,PRINCIPIADA A 26 DE JANEIRO DE 1803Parti pelas 6 horas da manhã da cidade para a vila de Paranaíba: logo na saída algum tanto adiante da ponte do Anhangabaúaparece um terreno denegrido arenoso com todos os vizos de turfáceo; depois predomina a formação observada em todos os arredoresda cidade, isto é, um terreno argiloso, silicoso em partes, comalguns seixos de quartzo; esta parte argiloso-silicosa parece serdevida à decomposição do chisto argiloso primitivo; a cor desteterreno passa pelas gradações seguintes: amarelo vivo, vermelhocarregado, amarelo esbranquiçado, amarelo passante ao cinzentodenegrido; nas três primeiras predomina a argila corada peloferro, suposição confirmada por alguns chistos , que eram muitoferruginosos; no amarelo esbranquiçado predomina a silícia ; e oamarelo passante ao cinzento denegrido é devido à mistura daargila , e de humus fornecido pelos vegetais em podridão.
Em todo este caminho até à passagem do Tietê observei ,de quando em quando, veios de quartzo branco; passando alémda ponte, o terreno, que até então se estendia sem quase alteamento algum , deixando aos viajeiros a liberdade de apascentaremsuas ávidas vistas por vastas e risonhas campinas, começou aelevar- se e a formar colinas retalhadas por a menos vales; neles enos cumes dos pequenos cabeços se viam de quando em quando,bosques plantados pela mão da natureza , como exemplo que deviaser imitado pelo homem indolente . Subindo uma destas colinasvi ao lado direito massas ou blocos de granito quase perpendiculares, sobre cujo cimo estavam dois urubus (vultur aura, Lin.Gm. ) que afugentei em razão dos meus exames, não obstante oestarem senhores delas por direito de posse. [Página 145]
Obrigado pelo calor do dia dirigi- me à fazenda do vigárioda aldeia de Barueri , o qual me recebeu com toda a bondade.Este padre, longe de tirar lucros da sua vigararia, despende, pelocontrário com os seus fregueses grande parte dos produtos desua lavoura. Ele planta para seu uso o fumo ( nicotiana tabacum) ,milho (zea maiz) , feijão (espécies do gênero phaseolus) , bananeiras(musa paradisiaca, e sapientum) , e mandioca (jatropha maniat) ;e toda esta plantação é entregue ao cuidado de seis escravos,os quais também estão encarregados da criação e custeio de seiscentas cabeças de gado, entre vacum e cavalar.Se toda esta capitania situada debaixo do melhor céu domundo, e tão cheia de riquezas naturais, fosse habitada por homens industriosos , amigos do trabalho, em breve chegaria aomáximo da prosperidade; o povo seria feliz e abastado, e delaseria banida a mendicidade, que hoje tanto grassa à semelhançada Europa. Admirei- me de ouvir dizer a este padre, que os dizimeiros cobravam dízimos de galinhas e ovos, e que os escravospagavam 160 réis por cabeça nos domingos, e dias santos, emque trabalhavam et alia ejusdem furfuris: semelhantes dias foraminstituídos para serem santificados, e para o descanso dos povos;mas os dizimeiros aproveitam - se do abuso desta instituição , paraporem em prática outro abuso.
Parti desta fazenda pelas cinco horas e meia da tarde; combem pouco desvio, e sempre chegado às margens do Tietê, fuiter à vila de Paranaíba ; a natureza do terreno sempre a mesma atéanoitecer. Em todo o caminho os bosques eram de angico, decuja casca se servem os naturais do país para curtir couros, arueiras, goiabeiras (psidium pyriferum) , araçazeiros ( psidium foliislanceatis, obtusius culeis) , embaubeira (cecropia pettata) , e dealgumas árvores, cujas madeiras são boas para construção , comosão a taguva, caburiúva ( myroxylon perúifera) , peroba, cedro,(cedrella odorata) , canela (an laurus?) , jacarandá (bignoniacerulea) , guatabu , uvamerim. As aves, que vi , foram urubus,bem -te- vis (tanius pitanguá) , o caracará (falco brasiliensis) .Esta vila está situada nas margens do Tietê, sua povoaçãoanda por dois mil e cinqüenta habitantes, e que nunca passa distopela deserção continua dos homens, e pelo pequeno número decasamentos, que anualmente nunca chegam a mais de dezesete;verdade é que para esta deserção tem concorrido os vexames,que o povo sofre pelas contínuas recrutas; e da falta de homensprovinda , ou destas causas, ou de se terem dado muitos à vidaeclesiástica, nasceu um celibato necessário, sistema tão contrárioao crescimento dos países novos.A cultura de todo o termo desta vila consiste em feijão,milho, algodão (gossipium herbaceum) , cana de açúcar (saccharumofficinale) , e já algum café (cofea arabica) ; admirei- me somentede não ver introduzida a cultura do anil (indigofera tinctoria), sendo este arbusto silvestre, e em tanta qualidade: Paranaíbaabunda também de vegetais medicinais, como abutua (cisampelospareira) , de ipecacuanha (viola ipecacuanha) , e de uma árvorecuja casca pelo seu amargo só emprega em algumas moléstiasem lugar da quina; não a pude analisar por não ser tempo da suaflorescência.
27 de janeiro - Ocupei toda a manhã em tirar várias informações sobrealgumas raridades, que se acham nas circunvizinhanças da vila ;de tarde saí a ver a igreja matriz, edifício sem gosto, mesquinho,que mais se parece com claustro do que com templo; daí saícom o Rdo. vigário a examinar os bancos calcareos, donde se tiraa pedra para o forno da cal.
O terreno de todo este caminho é argiloso de diferentescores, e as vezes muito silicoso por efeito de decomposição dosveios do quartzo, e do grés grosseiro, de que falarei para diante.A direção do primeiro é variável . Quanto ao grés, é formado decristaizinhos de quartzo reunidos de maneira que tem o aspectode grés assaz grosseiro, bem que a união dos ditos cristais sejatão pequena, que com o menor choque se separam logo; estapedra é coberta de uma crosta ferruginosa que faz a primeiravista tomá- la por mineral de ferro. Sua direção e é em diferentessentidos. O terreno continuou vermelho, o vermelho muito escuro,até um quarto de légua onde está a caieira , que fica a oesteda vila.Aí observei o forno, em que se faz a cal , para o qual se serviram do morro, cavando-o circularmente sem atenção à figura,comprimento e largura . O forno está próximo da pedreira , dondese extrai a pedra. Os bancos são de pedra alcárea secundária,densa, grizea escura com seus pontos espáticos ; a direção destesbancos é leste oeste; queda ao sul.Acabado este exame, tornamos para casa , onde fui visitadopor algumas pessoas que me agradaram por sua fraqueza , e comquem conversei a respeito de algumas minas de ouro, de queabundam as circunvizinhanças, e que amanhã pretendo visitar.
28 de janeiro - Sai a examinar as minas de ouro de Juqueiri- guassu e e Juqueri - mirim, que desaguam no Tietê. Tornei a passar o últimorio e caminhei por entre diferentes plantações; o terreno sempreda mesma natureza que o do dia antecedente; veêm- se, de quandoem quando, veios de quartzo branco com diferentes direções,porém a mais geral é leste oeste; e entre o terreno argiloso amarelo vivo fragmentos de ocre amarela, que os naturais chamamtaguá, algumas vezes muito impuro, e por isso de menor bondade.Depois em outra colina apareceram no mesmo terreno bancos de chisto argiloso primitivo mais ou menos ferruginoso ; estechisto faz às vezes passagem ao chisto novacular, e me asseveraram , que havia sofríveis pedras de afiar da outra banda dacolina.Ultimamente cheguei à formação aurífera: este terreno também é argiloso; cavando- se a superfície, descobre- se logo a brechaaurífera, denominada pelos mineralogistas «
, a qual entranas pedras empastadas não cristalizadas; ela é de cimento silicoso, e contém fragmentos arredondados de quartzo, de grés, dechisto argiloso, as chamadas pedras de capote, que julgo sergraustein, e outras pedras. Esta brecha chamam os mineiroscascalho, advertindo que na superfície, onde está mais decomposta,dão- lhe o nome de desmonte: ela assenta ou pousa sobre um barromais ou menos silicoso que denominam pissarra , ou brancaou amarela, ou vermelha, ou roxa, ou azul , conforme a cor predominante dela .Mandei dar algumas bateadas, e extraí uma pequena porçãode ouro fino. É pena que, esta mina , e outra , que amanhã pretendo visitar, se o tempo der lugar, estejam por trabalhar; creio,que a miséria geral e falta de braços é que tem feito largar tãobelos estabelecimentos: só a importação de negros, ou novoscasais de povoadores, a quem se dessem socorros, remediariamestes inconvenientes, e até contribuiriam a despertar os povos da sua costumada indolência.
Em todo este terreno decorrido não achei senão terras incultas, e apenas duas fazendas com plantações de algodão e deoutros gêneros, que cá se costumam plantar, e também seu pomarde árvores de espinho. Entre as árvores que a natureza dispensoupor todo este caminho, fizeram- me notar a canafístula , de cujacasca se servem também os do país para curtir seus couros; delausam mais que da de angico, por isso que o couro curtido comela é mais macio, branco, e mais durável.
Uma observação, que tenho feito, é que toda a gente docampo, apesar de ser mais sincera, afável e franca que a dacidade, ao primeiro encontro se enche de desconfianças, e foge,se é possível, aos viajantes, mormente sendo militares, ou homens de justiça ; creio, que uma tal desconfiança nasce das injustiças, que se cometem por efeito de ordens mal entendidas ,ou executadas por malvados, amigos da desolação dos campos, eda ruína dos camponeses.O mau tempo me obrigou a finalizar com os exames destedia, e aí pousei num sítio próximo de um honrado velho, que nempor isso vive isento das insolências de um vizinho; este continuasempre em apossar- se das terras do bom velho, não obstante tertido a este respeito sentença contra da Relação do Rio; parece,que aqui as leis não têm vigor ou que a força é o único direito. [Páginas 146, 147 e 148]
As árvores examinadas em todos estes dias são as mesmas,que as referidas nas excursões antecedentes; devo unicamenteacrescentar, que estes campos abundam de jupecanga (espécie dogênero smilax), e de caiapia (an species althae) .20 de fevereiroExpedi este dia em examinar os meios minerais, e etiquetá - los ;e quando mesmo quisesse fazer alguma indagação por fora, o mautempo o não permitia.
8 de fevereiro - Jornada para o salto de Tietê
O caminho ao princípio foi argiloso, silicoso mais ou menosavermelhado, cortado por diferentes veios de quartzo branco;nele achei também pedaços de ocre de ferro vermelho escuro,misturado com muita argila e sílica ; à proporção que me avizinheido salto, o terreno tornou- se muito silicoso por efeito da decomposição do granito, rocha comum no Tietê e seus arredores.Chegado ao salto, por cima do qual o público fez uma pontepara passagem dos moradores da outra banda, observei então arocha granítica , e sua estratificação com a direção já mencionada.As águas, despenhando- se de não pequena altura por estarocha abaixo, minaram- na em partes, tanto lateralmente comopor cima, de feição que não só abriram diferentes canais , masaté os tauxões da ponte estão fixos e encravados nos buracosfeitos na dita rocha pelo esforço, e correnteza das águas; o riodaqui por diante é muito piscoso. Achei igualmente pedaços deuma brecha de pasta argilosa ferruginosa com fragmentos dequartzo rolado, talvez para aqui trazidos com a corrente. Osseixos de quartzo já separados, que encontrei em diversos pontosdeste rio , são devidos à decomposição da mesma brecha.Tenho feito uma observação quase geral , e vem a ser, quetodos os moradores desta vila são pelo menos nobres, não obstantemuitos deles exercitarem ofícios mecânicos, pois que pelas leisdo reino derrogam a nobreza: tanto é verdade, que o homem amae ambiciona a grandeza, a consideração, e o poder!9 e 10 de fevereiroSaí a examinar as pedreiras, donde tiram as pedras paracalçar a vila, e com as quais fazem outras obras mui lindas, depoisde polidas; elas se acham em bancos paralelos à superfície daterra com direção quase nordeste sudoeste. Esta pedra é de cor cinzenta azulada, tecido muito fino, grãos pequenos e quase indescerníveis, e gorda ao tato, em conseqüência do que pareceentrar nas pedras magnesianas, e ser uma serpentina: fui igualmente ver o banco de tabatinga , de que se serve o povo destavila para caiar suas casas; esta argila branca é de má qualidadee misturada com muita areia .
11 de fevereiro - Jornada de Itu para Sorocaba
O terreno é barrento amarelo esbranquiçado mais ou menos, geralmente muito silicoso, talvez por efeito da decomposição dos bancos de grés; estes estão cobertos por cima de uma crosta ferruginosa. Observam-se, em diferentes partes deste caminho, seixos de quartzo rolado, e bancos de uma argila branca tirando à cinzenta, mais ou menos pura.
Não devo passar em silêncio de que vi nesta digressão homens, cuja catadura era mourisca sem tirar nem pôr; se em Portugal se vierem com o tempo a perder pela mistura da raça as feições mouriscas, que nos são tão próprias, para as fazer reviver, será bom recorrer a esta capitania, onde as há em toda a sua pureza.
A vila de Sorocaba não tem regularidade alguma, suas casas, bem que mais altas do que as de Itu, estão semeadas aqui e acolá, de sorte que se não observa alinhamento algum em ruas; ela contém quatro igrejas, a matriz, uma capela de Santo Antonio, outra do Rosário, e um hospício de frades bentos; seu comércio reduz-se à venda das tropas de gado, vindas do sul.
A cultura geral desta vila e seus contornos consiste em milho, feijão, algodão, pouco café, e alguma cana de açúcar; já conta doze fábricas de açúcar, e outras de águas ardentes. Sua povoação monta a 9.712 habitantes; deve porém meter-se nesta conta imensidade de surdos, insensatos, e muitos com a moléstia dos papos; ignora-se a que causas se devam atribuir semelhantes enfermidades; seria bem útil e até digno de elogio, que o ministério encarregasse médicos hábeis desta indagação, a fim de ver se do conhecimento das causas seria possível o deduzir-se um pronto remédio; pois de outro modo de que servem homens inúteis às precisões da sociedade?
12, 13, 14, 15 de fevereiro
Tenho expendido estes dias a dar ordens para se abrirem caminhos pelos quais possa dar princípio aos meus exames no morro de Araraçoiaba.
16, 17, 18, 19 de fevereiro - Viagem e estada no dito morro
Desde a vila até perto do morro, o terreno é todo argiloso silicoso, produto da decomposição dos bancos de grés, que aparecem à superfície da terra; advertindo, que este externamente é algum tanto ferruginoso, esboroadiço, mas interiormente é esbranquiçado, grão fino, textura unida, e serve mui bem para amolar ferramentas; os paisanos do país chamam- lhe pedras de desbastar.
Junto a um córrego, que vai ter ao Ipanema, rio, que corre pelas faldas deste monte, aparecem bancos de chisto novacular; é pena que o não aproveitemos, porque as boas pedras de afiar, de que usamos, vem de levante muito caras. Os bancos deste chisto estão em direção quase lesnordeste oessudoeste, paralelos ao horizonte; são de cor grizea, e grizea amarelada, sobre eles pousam os bancos de grés.
Este monte, indo da vila para ele, apresenta uma face muito alongada na direção quase norte sul ; e conta na maior extensão duas léguas pouco mais ou menos; todo ele é coberto de matas, exceto no lugar das furnas; grande vale central domina por todos os jugos, que formam este monte. Ele se divide em três grandes cabeços, denominados pelos do país Morro do ferro, Morro vermelho, e Morro de Araraçoiaba propriamente dito, além de outros menores, os quais todos são cortados por diferentes vales.
Todo o terreno deste morro é um barro vermelho escuro com muito talco amarelo de ouro; ele está cheio de mineral de ferro magnético, e algum já imã perfeito, em pedras soltas e desarrumadas de diferente grandeza, e possança; o qual umas vezes entranha- se por terra dentro, como eu observei em alguns socavões feitos de propósito, outras vezes prolonga- se em grandes cintas, ou manchas ao longo dos córregos, das quebradas, e vales.
Em um dos socavões, que mandei fazer, apareceu uma camada de barro azul fixo e mais claro com muito talco amarelo, que julgo ser argila misturada com azul da Prússia nativo; igualmente não devo esquecer, de que no Morro-vermelho achei uma pedra quartsoze cristalizada com ocre de ferro de permeio, tapizada nas fendas, e por fora de cristais de quartzo piramidal brilhante, branco e arrôxado; descoberta esta comum a outro jugo pertencente ao mesmo morro.
Não me demoro em descrever extensamente o mineral de ferro, sua riqueza, e abundância, em marcar o lugar, em que se devem levantar as ferrarias, caso de querer Sua Alteza aproveitar esta mina, em fazer ver os erros, e por conseqüência os prejuízos, que tiveram os que empreenderam trabalhá- la no tempo do Morgado de Mateus, finalmente em dar uma noção sobre a abundância de águas, matas, fundente, e todos os demais misteres necessários a um tal estabelecimento, pelo ter feito em uma memória separada, que a este respeito envio ao ministério.
Asseveraram - me, que em Bacaetava, fazenda duas léguas distante do morro, apareceram bancos de pedra calcárea nas margens de um córrego; examinando este lugar, achei somente bancos de um grés ferruginoso. O terreno, sobre que pousavam, caiu ou desmoronou-se, deixando como uma cavidade, ou gruta, debaixo da qual se viam estalactites ao dito banco, opacos e cor branca suja. Creio, que as águas do córrego, passando por terrenos calcáreos, e mesmo acarretando alguma porção calcárea que o grés contivesse (bem que esta não faça efervescência com ácido nítrico), vieram fazer este depósito; não posso porém afiançar, que se não venham a descobrir bancos calcáreos nas vizinhanças deste lugar, quando for possível examiná-las. [Página 155]
As árvores examinadas em todos estes dias são as mesmas,que as referidas nas excursões antecedentes; devo unicamenteacrescentar, que estes campos abundam de jupecanga (espécie dogênero smilax), e de caiapia (an species althae).
20 de fevereiro - Expedi este dia em examinar os meios minerais, e etiquetá - los; e quando mesmo quisesse fazer alguma indagação por fora, o mautempo o não permitia.
21 de fevereiro - Jornada para a fazenda da Paineira, meia légua distante de Sorocaba
O terreno até meio do caminho é barrento avermelhado vivo, daí por diante muito silicoso por efeito da decomposição do quartzo, que se acha em muita quantidade. Chegado à fazenda, vi em uma plantação um mineral de ferro em pedras soltas entremeadas com quartzo, e às vezes misturado com ele; este mineral é magnético,de fratura granosa, cor grizea de ferro, e em muito pouca quantidade: só o espírito de indagação e o desejo de ver tudo é, que me pôde obrigar a este exame.
22 de fevereiro - Ocupei o dia em fundir a mina de ferro de Araraçoiava, e obtive acima de 60 por 100 em ferro coado.
23 de fevereiro - Jornada para a Aparecida, e daí à fazenda do Maris, onde medisseram, aparecera carvão de pedra
Em todo este caminho só vi pedaços de quartzo comum, e junto aos ribeirões fragmentos do mesmo rolado: chegado aos dois lugares observei o terreno coberto de uma boa camada de terra vegetal devido às queimadas, que se fizeram para as plantações; seguramente aqui se não tem uma verdadeira idéia de carvão de pedra, porque até os homens instruídos em ciências naturais, além de ignorarem a época de sua formação, e o terreno que o costuma acompanhar, chegam ao delírio de se persuadirem, que ele se acha em massas, ou porções espalhadas.
Fiz também nesta digressão o achado de diferentes plantas, como o alcaçuz (glycyrrhiza glabra), jupecanga, ruibarbo ou bariçó (espécie do gênero rhsum), além de outras árvores, que também se dão no morro, como, por exemplo, o pau- ferro, jacarandá, caburoúba, peroba, etc. [Página 158]
24 de fevereiro - Segunda jornada de Sorocaba para o morro a observar os arredores dele do lado do sul
O terreno de toda esta digressão é o já mencionado. Somente em alguns jugos vi descobertos bancos de chisto argiloso, paralelos ao horizonte, com a direção já dita, alternando com os do chisto novacular; em outros jugos mais elevados bancos de grés esbranquiçado.
No cimo de um deles acha-se uma lagoa não pequena, e algum tanto piscosa, que conserva as águas inda no tempo das secas; à esquerda dela em não pequena distância, junto a uma quebrada, por onde passa um córrego, que deságua no Ipanemerim, isto é, cabeceiras do Ipanema, observa- se um terreno turfáceo assaz denegrido, no qual será bom fazer uma sonda:
este terreno turfáceo entranha-se muito, como se vê naquelas partes, em que foi profundamente desmoronado por efeito das enxurradas, provenientes das grandes pancadas de água, que acompanham as trovoadas, tão usuais neste país, particularmente na estação do calor, facilitam a cultura das terras, e por conseguinte as fertilizam. Quanto aos arredores deste rio, estão cobertos de bosques desvairados.
25 e 26 de fevereiro - Excursão para o morro do ferro propriamente dito
Depois de ter subido até o ponto mais elevado deste morro,que são os socavões, e caminhado ao longo dele, desci por umaencosta assaz alantilada, onde observei rochas contínuas de umapedra composta de partículas miúdas, unidas e compactas, comaparência térrea, opaca, manchada de diferentes cores, verdemar,amarela, cor de rosa desmaiada, branca, e em partes negra, quebrando- se em pedaços sem figura determinada, não cristalizada, efazendo fogo com o fuzil; parece- me ser o jaspe universal deDaubenton. As fendas e superfície desta pedra estão tapizadasde cristais de quartzo piramidal, nos quais já se observam os rudimentos do prisma.
Daí fui ter a um córrego, que deságua da banda do sul noribeirão do Iperó, por me noticiarem, se tinha nele descoberto umamina de estanho, notícia esta que se não verificou, e a que nãodevia dar crédito por vir de um rústico totalmente ignorante, eaté costumado a embriagar- se. Findo este exame, passei a umcórrego oposto, que deságua no ribeirão da antiga fábrica, ondeme asseveraram, que se tinha achado enxofre nativo.
Examinei este córrego com todo o cuidado, e só achei bancosdo mencionado grés esbranquiçado: é mania geral do povo querer que a natureza naquele mesmo lugar, em que nos apresentaalgumas riquezas, seja pródiga de tudo o que é capaz de dar.
O morro está todo coberto de arvoredos, principalmente destelado, e os campos de Quitaquera, que o terminam, além da grandeabundância de bosques, têm excelentes campos para pastagemda mor parte dos gados precisos ao costeio do futuro estabeleci- mento.
27, 28 de fevereiro, e 1º de março - Jornada para o Paiol, e Lambari, no caminho de Sorocaba para Itapetininga
Em toda esta digressão o terreno foi sempre o mesmo, queos dos dias antecedentes; somente em um dos córregos do Paiol,e Lambari achei em muita quantidade calháos semitransparentes,da natureza da ágata, porém de pasta menos fina, de cor cinzentadenegrida ; estas pederneiras são de mui boa qualidade, delas usatoda a capitania, e até as vende para as adjacentes .Nestes córregos costumam cair troncos, e ramos de árvores,os quais com o tempo tornam- se petrificados pela insinuação emsuas fibras da parte silicosa, que concorreu para a formação dosilex, tanto assim que já fazem fogo com o fuzil ; e como em todoo petrificado vegetal a substituição da substância pedrosa é sucessiva, não só se conserva a forma externa, mas também a interna .Veja-se a este respeito uma excelente memória de Mongez noJornal de Física de 1781, t . 18, p. 255.
2, 3, 4, 5 de março
Jornada para a fazenda do capitão- mor, sita na distância de légua e meia de Sorocaba, junto às margens do rio do mesmo nome
No tempo em que Portugal e suas colônias estiveram debaixo do jugo dos Felipes, Espanhóis, que vieram estabelecer-se nesta capitania, sempre cheios de riquezas de suas minas de prata do Peru, e desejosos de achar iguais aqui, fizeram diversos socavões, e entre estes um grande buraco perpendicular com treze braças de altura num banco 1/4 de légua distante da mencionada fazenda, talvez enganados por ser o terreno um barro avermelhado muito talcoso.
Desci a ele, e entre muitas escavações, que fiz, só obtive quartzo comum: não posso deixar de espantar-me do modo, por que deram começo a este trabalho, sem acautelar o grande risco de desabarem as paredes sobre os trabalhadores.
Não muito perto deste lugar achei em pequena quantidade um mineral de ferro duro e compacto, muito pesado, não atraível pelo ima, de fratura granoso, cor branca; às vezes está incrustado do dito quartzo. [Páginas 159 e 160]
Ocupei os seguintes dias em examinar os bancos de pedracalcárea, gerais até a borda do rio Sorocaba, em distância dequase meia légua . Eles são de pedra calcárea secundária densagrizea, e grizea de fumo; entranham- se perpendicularmente coma direção lesnordeste oessudoeste, e são cortados por veios deespato calcáreo.Da outra banda do rio, junto às margens, se tornam a observar os ditos bancos com a mesma direção: o rio, aluindo asterras, sobre que pousam deixou - os em falso, formando como umagrande gruta estlactítica, que os do país denominam palácio, alémde outras mais pequenas, que também examinei ; as águas correndo por entre estes bancos, acarretaram consigo porções calcáreas, e deixaram apegadas no fundo deles imensidade de estalactites; pouco brancas e brilhantes. Só aqui há pedras paraséculos; não sei como este povo se tem descuidado de fabricar acal, tão precisa nesta capitania, pois que apenas o capitão- moré que tem um forno, e este muito pequeno, e sem proporções.Passei daqui a ir examinar o grande salto de Ituparanangado mesmo rio, que fica muito mais distante. Chegado a ele,demorei- me por algum tempo assombrado de ver o grande esforçoda natureza . É quase perpendicular, e há de ter perto de trintabraças de altura ; o que não sucede com o de Uvuturanti, próximoà vila, que, além de não ser tão alto, é bastantemente inclinado.As águas despenhando- se umas vezes por entre rochedos escalvados, fazem em baixo como brancas toalhas de espuma, outrasvezes achando resistência nas fendas, que elas mesmas abriramrefletem em lágrimas, fazendo diferentes arcos de curvas.Junto ao salto o rumor e correnteza das águas é incompreensível, mas passado ele, correm tão pausadamente, que não pudedeixar de lembrar- me do que diz Delile no seu Homme des champs,falando do Orenoco e Amazonas:Tantot se deployant avec magnificenceVoyage lentement, et marche en silence ;Tantot avec fracas precipitant leurs flotsDe ses mugissements fatigue les echos.Se a nenhuma indústria de seus habitantes tem negado àAmérica as risonhas belezas da arte, a natureza, que nunca éescassa, a tem recompensado ao menos com a grandeza, e varie- dade de cenas.7, 8 de marçoO desejo de indagar todas as raridades do país, e de fazerdescobertas, que sejam úteis, moveu- me a mandar fazer, à minhacusta, uma estrada de seis léguas por mato dentro, até dar com um córrego de águas termais; gastou- se nisto dez dias . Se estanotícia se não verificou , e tive o desgosto de ser enganado comprejuízo meu, tive ao menos em recompensa o prazer de acharjunto às margens do mesmo córrego, entre um barro vermelhocarregado e talcoso, o ferro cristalizado em octaedro, de facetasbrilhantes e polidas como o aço, algum tanto sensível ao imã, ejuntamente o talco branco cristalizado, tecido laminoso, e muitoliso ao tato, propriedade comum a todas as pedras magnezianas.9 de marçoDepois de arranjados os meus caixões de minerais, partipara Porto- feliz. O caminho desta excursão foi em partes umbarro vermelho, em partes o mesmo muito silicoso , e junto à vilaum misto de pouca argila corada, e bastante areia grossa , queos do país chamam massapê. Matas virgens anosas árvores,algumas lançadas por terra pelos grandes furacões de vento,péssimos caminhos, e piores presentemente pelas muitas chuvas,eis as observações deste dia , até chegar à vila , nada agradáveisao leitor, e muito menos ao viajeiro. Chegado a ela fui ter coma ordenança da terra para me mandar aprontar casas, em quepudesse acomodar- me.Porto- feliz está situada nas margens do Tietê, quatro léguasdistante de Itu , e cinco de Sorocaba; floresceu muito no tempodo concurso dos Cuiabanos; verdade é que, esta falta não tem sidomuito sensível, e de algum modo tem sido remida com as grandesriquezas, que lhe tem trazido a cultura da cana de açúcar. Aplica- sedemais à plantação dos mesmos gêneros, que em Itu : a gente éboa, e muito dada. Sua povoação anda por 4.000 habitantes.Contém duas igrejas, a matriz, e uma capela da Penha.10 de marçoDesci o porto da vila , e vi uma grande rocha cortada a piquecomposta de bancos apostos uns sobre os outros na seguinteordem : de um grés esbranquiçado anuveado de amarelo, de umgrés grosseiro já muito calcáreo, de uma pedra calcárea grosseirabranca acinzada , todos paralelos ao horizonte com direção quasenorte sul , cobertos de eflorescências salinas, que pelo seu saborsalgado um tanto fresco, e levemente desagradável , me pareceramser de nitrato de potássio: delas costumam as aves vir aqui todosos dias comer.Findo este exame, passei a uma colina, que fica ao lado davila , e observei à superfície do terreno o basalto em bolas, corgrisea escura, fratura granosa: este achado em lugar, onde nuncahouve, e nem há aparência de focos extintos, destrói a opinião dosmineralogistas, que têm o basalto por um produto vulcânico. [Páginas 161 e 162]
Saí em uma canoa a correr todos os barreiros , que ficam ouse acham nas margens do Tietê, de cujo barro comem os gados,talvez por ser salgado; parece- me, que eles contém sua porçãode muriato de soda, mas nunca salitre, como aqui tinham pensado:eu pudera mostrar o nenhum fundamento de semelhante suspeita ,porém como estas indagações me não competem por delas estaremoutros encarregados, eles terão o cuidado de destruir opinião tãoabsurda. Na volta encontrei o sujeito encarregado da fábrica desalitre , bom prático , que vinha examinar os ditos barreiros, a quemdesenganei .De tarde parti de volta para Itú . O terreno foi o mesmo, queo da jornada de Itu para Sorocaba ; somente observei em partesbancos superficiais de argila branca muito impura , e em outraspartes belas ocres de ferro de diversas cores, disseminadas peloterreno. Esta estrada é das melhores da capitania , e me agradoubastante pela abundância de fazendas próximas a ela , as quais provam mais cultura e mais amor ao trabalho.12, 13, 14, 15 e 16 de marçoVi- me na necessidade de nos primeiros dois dias descansardos trabalhos de uma jornada tão laboriosa ; porém nos seguintesdias saí a correr grande parte dos engenhos circunvizinhos a Itu .Referir a natureza do terreno, por onde fiz estas diferentes excursões, julgo baldado, por ter já mencionado da primeira vez, queestive nesta vila : basta somente lembrar, que em uma destasfazendas observei bancos de um grés algum tanto calcáreo, pelosquais se despenharam as águas de um pequeno regato; estas,atravessando por terrenos calcáreos, como, por exemplo, de crépulverulenta, e mesmo pelos ditos bancos de grés, carretaramconsigo porções calcáreas, e deixaram apegadas aos ditos bancosestalactites de má qualidade, cor branca suja , e opacas.17 e 18 de marçoFindos todos os meus trabalhos, recolhi- me à cidade, vindopela vila de Paranaíba.Martim Francisco Ribeiro de Andrada [Página 163]