Miss Brasil dez anos depois: “O que resta quando o sonho acaba”
1 de junho de 1977, quarta-feira. Há 47 anos
Carmem Sílvia de Barros Ramasco, 21 anos, natural de Campinas, onde nasceu em 07/04/1946, Miss São Paulo, foi eleita Miss Brasil em 1967.
A terceira filha de Carlos, industrial aposentado, e Íris de Barros Ramasco, irmã de Neusa, 24 anos, estudante de Ciências Sociais, e de Carlos Afonso, 23 anos, estudante de Engenharia, tinha o Curso Normal completo, frequentava o aristocrático Tênis Clube de Campinas, adorava bossa-nova e cinema.
Em junho de 1977, a revista Cosmopolitan-NOVA publicou uma reportagem de Raquel Salgado com o título "Miss Brasil – O que resta quando o sonho acaba," focalizando três paulistas que tinham sido eleitas Miss Brasil:
Carmem Sílvia de Barros Ramasco, Miss Brasil 1967; Sandra Mara Ferreira, Miss Brasil 1973; e Kátia Celestino Moreto, Miss Brasil 1976. Abaixo, os trechos da matéria envolvendo as confissões de Carmem Sílvia de Barros Ramasco.
VENDIDA COMO SABONETE
O sonho acabou muito depressa para Carmen Sílvia de Barros Ramasco, e do concurso só lhe restam mágoas. Talvez porque tenha uma sensibilidade especial no modo de sentir as coisas ou talvez porque teve pouca sorte.
No dia da escolha de Miss Universo, Carmem, queimou as pernas com água-viva, quando as misses se reuniam na praia para serem fotografadas.
Depois, na hora do desfile final, um ventilador caiu sobre ela, o que quase a fez desmaiar. Mas se Carmen saiu marcada, ela também deixou suas marcas:
foi a primeira a levantar uma enorme polêmica em torno do concurso, rompendo com o contrato e renunciando ao título, enquanto denunciava, através de uma rede de televisão, a péssima organização e o desrespeito de que vinha sendo vítima.
Foi a primeira a ter a coragem de desmascarar o sonho e expor a dura realidade do “sabonete sendo vendido”, a contar publicamente que a Miss é apenas o disfarce de uma louca corrida atrás de maiores lucros.
Hoje, dez anos passados, Carmem ainda conserva a mesma beleza loira, com seus olhos azuis e traços delicados.
A moça rebelde e preocupada em denunciar injustiças e abusos ficou no passado e em seu lugar está a pacata esposa de um ortodontista, preocupada exclusivamente com os quatro filhos.
Seu corpo, apesar dos quatro partos, ainda é jovem e vigoroso, lembrando a campeã paulista de voleibol e as muitas medalhas que ganhou nadando, desde os 6 anos de idade.
A aparência e as atitudes, os gestos delicados, o falar pausado, revelam sua origem e educação numa das mais tradicionais famílias de Campinas.
“ - Não, o fato de ter sido Miss Brasil não foi um sonho bom para mim. Ao contrário, chegou a ser chocante, porque me proporcionou uma visão muito rápida e brusca do mundo e das coisas que ele tem de ruim.
Eu sempre vivi em Campinas e, acostumada à vidinha tranqüila de cidade de interior, tive um contato muito repentino com uma realidade feita de ciúmes, invejas, jogo de interesses, com pessoas que se utilizavam de outras pessoas como se fossem objetos, sem qualquer respeito.
Tudo isso me marcou muito e, na época, me levou a sentir uma profunda decepção com o ser humano. “
QUANDO SE TEM 20 ANOS...
Há realmente muita mágoa nas palavras de Carmem, mas, embora o título de Miss Brasil não lhe traga boas recordações, ela acha importante falar de sua experiência.
Se não fizer que outras moças desistam de concorrer ao título, pelo menos fará com que elas saibam o que irão enfrentar.
“ - Como muitas outras moças, entrei no concurso por acaso. Um título de beleza jamais havia feito parte dos meus planos.
O convite veio do clube que eu frequentava, o Tênis Clube de Campinas. Respondi que ia pensar, quando, no dia seguinte, vi minha foto no jornal como candidata a Miss Campinas pelo Tênis Clube.
Nessa época eu tinha 20 anos, havia terminado o curso normal e pretendia fazer psicologia, um plano que o concurso atrapalhou inteiramente.”
Para concorrer ao Miss Brasil, Carmem precisou quebrar um tabu, já que os concursos de beleza não eram bem vistos pelas famílias mais tradicionais.
Mas, enfim, este não seria o único preconceito que ela iria desafiar. Já fizera isso antes, quando resolvera trabalhar, apesar da oposição dos pais.
E o faria depois, ao se ligar a um homem desquitado e 10 anos mais velho do que ela, apesar da pressão da família.
“ - Claro que meus pais não gostaram da ideia de me ver concorrendo a um título de beleza. Mas como a oposição deles não era muito fime, de repente eu estava inscrita no concurso e, quando me dei conta, era a representante de Campinas no Miss São Paulo.
Posso dizer que foi exatamente aí que o sonho acabou, pois foi quando eu comecei a ver as coisas e a perceber o que era esse concurso.
As misses eram tratadas com brutalidade, sem qualquer delicadeza ou respeito. Diziam que aquilo era necessário para manter a disciplina, mas o fato é que me chocou muito.
A imagem que me vem à cabeça quando penso nisso é a de um pelotão de soldados, tal a maneira como nos tratavam.”
PROVINCIANA ENTRE AS VEDETES
Naquela ano, São Paulo foi o último Estado a eleger sua miss, o que acabou trazendo novos probelmas para Carmem.
Enquanto ela ainda concorria ao título estadual, todas as outras misses, já eleitas, cumpriam um programa de confraternização, na Bahia.
Dessa forma, quando Carmem chegou ao Rio para a final do concurso, todas as misses estaduais já se conheciam e ela acabou ficando isolada, uma perfeita provinviana entre as vedetes.
“ – Logo eu, que sempre fui tímida e inibida, aquele tipo de pessoa que espera primeiro que os outros se aproximem.
Conclusão: acabei ficando realmente de lado, o que foi interpretado como uma atitude arrogante e antipática. Diziam que eu fui a última candidata a chegar só para fazer charme e chamar a atenção.”
A situação de Carmem não poderia ser mais desagradável. Para completar o isolamento, uma gripe violenta a fez ficar de cama e, na véspera da final do concurso, no ensaio geral, ela estava com 39 graus de febre e quase caindo da passarela.
“ - Do concurso mesmo e do primeiro lugar eu pouco me lembro. Na hora é tanta zoeira, tanto nervosismo, que a gente não sabe quem empurra, quem coroa, quem faz o quê .
Só depois, pelas fotos das revistas é que a gente começa a se lembrar do que aconteceu.”
Carmem teve apenas dois dias para preparar a documentação e fazer algumas compras em butiques antes de embarcar para Miami.
Ela viajou acompanhada apenas pela irmã que, como ela, falava muito pouco inglês. Este foi o primeiro momento, desde que entrou nessa maratona, que Carmem foi deixada só, sem um representante do concurso grudado a seus pés, conferindo seus menores gestos – e justamente quando mais precisava deles.
“QUEM ELA PENSA QUE É?”
“ – As lembranças de Miami são as piores possíveis. Não havia ninguém para nos ajudar entre o aeroporto e o hotel.
Minha ficha de medidas, que precisava ser convertida em polegadas, não foi conferida por ninguém. Fiquei vinte dias completamente isolada, não podia sair, minha irmã ficou em quarto separado e só a vi quando chegamos e na hora de ir embora.
Ensaiávamos o dia inteiro e à noite éramos proibidas de sair do quarto. Numa entrevista com o júri , todas as outras misses tinham intérprete, menos eu, que tive de ficar o tempo todo calada.
Só no final, quando apareceu um jornalista brasileiro, é que pude falar alguma coisa. Na escolha das quinze finalistas fui a única sul-americana a ser classificada.
Mesmo tendo sido avisada desse fato, na hora de chamarem as classificadas ao palco convocaram a a Miss Israel no meu lugar.
E sem qualquer explicação. Nessa mesma noite da final do concurso me avisaram que a estadia no hotel terminaria no dia seguinte ao meio-doa.
E eu que me virasse, se quisesses conhecer a cidade ou pelo menos dar umas voltas depois de todos aqueles dias fechada no hotel.”
Ao voltar para o Brasil, Carmem começou a maratona de viagens pelas capitais e cidades do interior, compromissos que ela deveria cumprir até o final do seu reinado como Miss Brasil.
Mas, a esta altura, Carmem já havia se dado conta de uma grande encenação na qual ela era a peça principal. A começar pelos prêmios a que fizera jus: como Miss São Paulo ela deveria ganhar um carro que nunca apareceu.
Seu prêmio como Miss Brasil era outro carro e mais 24.000 cruzeiros. O carro, um Volkswagen, ela recebeu quatro meses depois. Quanto ao prêmio em dinheiro, não era mais do que um contrato de trabalho pelo qual ela receberia 2.000 cruzeiros mensais.
Embora seu salário fosse fixo e ela não recebesse nada além do estipulado – mesmo precisando estar à disposição dos organizadores do concurso a qualquer hora do dia ou da noite - , em suas apresentações pelas capitais era cobrado um cachê altíssimo.
Quando Carmem começou a sentir a hostilidade das pessoas e a ouvir, não raras vezes, comentários desagradáveis do tipo “quem ela pensa que é para cobrar esta fortuna?", resolveu parar de viajar e denunciar os organizadores do concurso através da televisão e da imprensa.
Feito isso, não havia mais motivos para continuar participando daquele jogo e ela renunciou ao título para se casar.
“ - Claro que é bom saber-se bonita e admirada. Mas não dessa forma, em que a gente é usada como um objeto com a única finalidade de enriquecer uma indústria: a indústria dos concursos de miss.
Ao final de tudo, desiludida e magoada, eu só tinha uma vontade: voltar à minha vida normal e fazer o que sempre sonhei – casar e ter filhos.”
O que restou quando o sonho acabou para Carmem Sílvia de Barros Ramasco?
Lembranças desagradáveis, conforme lemos acima. Acredito que o seu gesto na época tenha contribuído para algumas mudanças positivas no concurso Miss Brasil, pois no ano seguinte a baiana Martha Vasconcellos, Miss Brasil, foi eleita Miss Universo, cumpriu seu reinado até o fim, e sempre declarou que valeu a pena ter sido Miss.
Revendo minhas revistas sobre o Miss Brasil 1967, encontrei na Fatos & Fotos, de 15/07/1967, uma declaração de Carmem, a respeito das vaias que recebeu quando foi eleita Miss Brasil, já que a maioria do público do Maracanãzinho preferia Anísia Gasparina da Fonseca, Miss Brasília, quarta colocada:
“ - Não fiquei zangada, apenas surpresa. Não vou culpar, em absoluto, o povo carioca por uma incompreensão momentânea. Além disso, fiquei tão feliz com o título que não poderia ter raiva de ninguém.
Perdoaria até o meu maior inimigo. Mas quero deixar bem claro uma coisa: o gesto de solidariedade de Miss Paraná me comoveu bastante. Foi ela a primeira a me consolar quando comecei a chorar. Nunca esquecerei isso.”
Talvez seja essa a melhor e mais bela recordação que Carmem Sílvia de Barros Ramasco guarde do seu reinado, a solidariedade de Wilza Rainato, Miss Paraná, segunda colocada no Miss Brasil 1967.