A história do alemão enterrado em faculdade de SP que fundou uma poderosa sociedade secreta
10 de agosto de 2019, sábado. Há 5 anos
Nascido em 1808, ele migrou para o Brasil em 1828. Erudito, começou a ganhar a vida dando aulas particulares em repúblicas estudantis de São Paulo e acabou se tornando professor na Faculdade de Direito. Em 1834, foi nomeado professor de História, Filosofia e Geografia do curso anexo da instituição - que funcionava como escola preparatória.
Mas o que lhe renderia, anos mais tarde, o direito de ser sepultado com destaque no interior do prédio universitário viria de uma sociedade secreta que Frank fundou a Burschenschaft Paulista, mais conhecida como Bucha.
Um personagem misterioso
Conforme definiu o jornalista Afonso Schmidt (1890-1964) no livro A Sombra de Júlio Frank, o alemão era admirado e ignorado na mesma medida.
"Apesar das diversas pesquisas e análises publicadas, resta ainda certo mistério a respeito de Júlio Frank, especialmente sobre motivo de sua vinda ao Brasil pelos idos de 1828", comenta à BBC News Brasil o historiador Luís Soares de Camargo, diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.
Frank é de Gotha, na Turíngia, Alemanha. Diferentemente do que está gravado na sua lápide, não nasceu em 1809 - mas, sim, em 1808, conforme foi descoberto quase cem anos depois de sua morte em pesquisa realizada nos registros de sua cidade natal por Schmidt. Seus pais eram um encadernador e a filha do encadernador oficial da corte - o que permite pressupor que sua infância foi rodeada de livros.
Na juventude, frequentou a Universidade de Gottingen, na Baixa Saxônia, região central da Alemanha. Era aluno de destaque em Filosofia, Letras, História e Matemática. Mas, envolvido em brigas e imerso em dívidas, acabou expulso da instituição e pronto para fugir.
Destino: Brasil
Cruzar o Atlântico naquele tempo era uma aposta improvável. Imigrar para o Brasil era como brincar de roleta russa – era possível sobreviver, mas também era possível dar muito errado, escreveu Schmidt.
A viagem do Júlio Frank não foi fácil. Sentiu enjoo durante dias no navio, e assim que melhorou teve que começar a fazer duros trabalhos de faxina impostos pelo capitão – ele trocou a passagem por trabalho no navio.
Nem bem chegou ao Rio de Janeiro, soube de uma caravana que iria para São Paulo, a cavalo, em uma viagem de cerca de um mês. Passou pela capital paulista e prosseguiu até Sorocaba, no interior.
Aos poucos, sua vocação para professor passou a chamar a atenção da elite sorocabana. Frank começou a dar aulas particulares para filhos de fazendeiros, preparando-os para o ingresso na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, fundada em 1827 na capital.
Com seu conhecimento e sua personalidade, cativou os alunos. De modo que, três meses depois, quando os estudantes se preparavam para ir a São Paulo prestar os exames do então curso anexo à Faculdade de Direito, "alguém observou que, dessa maneira, iam perder o professor", diz Schmidt. "Depois de cada um deles conversar com os pais, chegaram a uma conclusão: levar consigo o mestre."
São Paulo
Naquele finzinho de anos 1820, São Paulo era uma cidade de 11 mil habitantes e 300 estudantes universitários. Frank e seus pupilos logo se ajeitaram em uma república estudantil. O formato era semelhante ao que hoje existe. Aquele que tinha como melhor comprovar renda alugava um imóvel, garantindo o pagamento ao proprietário, mas todas as despesas eram dividas entre os moradores.
Júlio Frank vinha na companhia de estudantes sorocabanos, quase todos de famílias ricas, e a sua chegada já era esperada, narra o biógrafo. Prosseguiu fazendo o que sabia: dava aulas particulares aos estudantes, não só de sua república, mas de outros também.
"Mas, apresentando uma sólida formação e um conhecimento ímpar em línguas, História e Geografia, ele logo se destacou entre os intelectuais da pacata São Paulo", completa o historiador.
"Num curto espaço de tempo, Júlio Frank transformou-se num dos mais prestigiados professores da faculdade, tanto pela sua preocupação com o ensino, quanto pelo seu interesse em auxiliar os estudantes menos favorecidos."
Algum tempo depois de chegar ouviu uma conversa de um grupo de estudantes. Estavam preocupados com o fato de que muitos alunos não conseguiam manter-se longe dos pais. Os custos com aluguel, comida e livros eram altos para algumas famílias.
"Na Alemanha, como em muitos países da Europa, a assistência ao estudante pobre está mais ou menos assegurada pelos próprios colegas", disse Frank. "Nas universidades, temos associações de estudantes a que chamamos de burschenschaften."
Ninguém entendeu nada."Burschenschaften", precisou repetir. "São associações que datam de tempos muito afastados e dispõem de um código moral e uma espécie de ritual que, em rigor, servem para atrair pelo esoterismo os rapazes das escolas, mas cujo intuito principal é este: formar uma caixa e assistir aos que necessitem de auxílio."Em português, seria algo como "fraternidade ou confraria dos camaradas". Ou, como prefere o historiador Paulo Rezzutti, "sociedade de camaradas"."Foi o contato com os alunos que influenciou a formação da Burschenschaften. Embasada por ideais liberais e antiabsolutistas, a Bucha - como ficou conhecida em sua adaptação ao português - auxiliava estudantes sem recursos mas com potencial e vontade de estudar", diz Rezzuti à BBC News Brasil.As contribuições eram dadas pelos mais abastados, conforme as possibilidades de cada um. Segundo Frank, a sociedade precisava ser secreta para não causar constrangimentos aos beneficiados.
A Bucha
Oficialmente, a Bucha foi fundada em 4 de julho de 1830, com professores, alunos e pessoas importantes da sociedade como associadas. Coube ao alemão organizar seus estatutos e seu código moral. "A não ser meia dúzia de membros, os demais ignoravam os fins, aliás louváveis, dessa instituição", escreve Schmidt. "O número de sócios elevou-se logo mais de 200. As mensalidades e joias ficaram a critério dos doadores."
O historiador Luís Soares de Camargo lembra que a sociedade, embora primasse o cunho filantrópico, também servia para propagar "o ideal liberal e republicano". "A necessidade de ser secreta impunha-se naquele momento porque tanto os estudantes agraciados quanto os doadores exigiam sigilo", comenta ele.
"Outro motivo era a atuação política, algo que demandava muito cuidado tendo em vista o recente assassinato do jornalista italiano Líbero Badaró (vítima de um atentado no centro de São Paulo em 1830, aos 32 anos, por suas posições políticas)."
"A Bucha permaneceu como sociedade secreta até as primeiras décadas do século 20, quando, então, deixou de existir", afirma Camargo.
Influência
A Bucha tinha uma estrutura própria, dividida em graus hierárquicos. Um braço funcionava dentro do Largo São Francisco: os alunos eram divididos em Catecúmenos, Crentes e Doze Apóstolos. Fora da academia, os já formados tinham outros graus: eram os Chefes Supremos e constituíam o Conselho dos Divinos.
De acordo com Paulo Rezzutti, a Bucha foi ampliando seu poder quando começou a ultrapassar as fronteiras da Faculdade de Direito. "A medida que iam se formando, os ex-alunos buscavam colocações para os que estavam terminando o curso", diz ele. "O ideal inicial também foi sendo modificado: no início, a organização era liberal, abolicionista e republicana. Mas, conforme os ardores juvenis iam se arrefecendo, passou a contar com membros conservadores, escravocratas e monarquistas."
Para entrar para o clube, era preciso convite. Os membros tinham de fazer um juramento.
Aproveitando-se do fato de estar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, logo a Bucha passou a ter seus adeptos nos postos mais importantes do país. "Acredita-se que, durante a República Velha, período entre 1889 e 1930, não havia ministro, juiz ou candidato à Presidência da República que fosse indicado sem deliberação do Conselho dos Divinos", diz o historiador.
Em depoimento publicado pelo Jornal da Tarde em 1977, o jornalista e político Carlos Lacerda (1914-77) comentou sobre a importância política da Bucha.
"O fenômeno não tem nada demais, é o mesmo que ocorre com a maçonaria. Uma sociedade secreta em que os sujeitos confiavam nos companheiros, vamos falar assim "da mesma classe", que passam pelas faculdades, futuras elites dirigentes. Um dia, um sobe e chama o outro para ser governador, para ser secretário, para ser ministro e assim por diante", afirmou.
No livro Os Bacharéis na Política - A Política dos Bacharéis, o cientista político Teotonio Simões afirma que, de todos os presidentes da República Velha, apenas Epitácio Pessoa (1865-1942) não foi membro da Bucha.
Todo ano um evento acontecia na Faculdade de Direito: a Festa da Chave. Como o líder estudantil da Bucha era sempre um aluno do último ano, a formatura coincidia com a passagem de bastão a um mais novo. Esse líder era chamado de chaveiro, daí o nome da solenidade. "Durante a República Velha, a Festa da Chave contava com a presença do presidente do País, autoridades do Estado, prefeito, ministros e juízes", diz Rezzutti.
O historiador conta uma passagem que se tornou anedótica. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18), um delegado de polícia estranhou a movimentação no Jardim da Luz. A Bucha se reunia no subsolo do prédio hoje ocupado pela Pinacoteca do Estado. "Pensando tratar-se de espiões, o delegado invadiu o encontro, dando voz de prisão a um grupo fantasiado, que usava capas de cavaleiro com insígnias coloridas em forma de coração e espadas", relata.
Um dos presentes à reunião era Altino Arantes (1876-1965), então governador de São Paulo. Washington Luís (1869-1957), ainda prefeito de São Paulo, também estava lá. E ambos tiveram de explicar ao delegado o que acontecia ali. "O delegado foi iniciado na organização para preservar seu segredo", diz Rezzutti.
Os integrantes da Bucha foram fundamentais para a criação da Liga Nacionalista de São Paulo, grupo organizado em 1916. "Entre outras coisas, pregavam a melhoria e a ampliação da instrução pública no Brasil", explica o historiador. "Ajudaram a montar hospitais e a cuidar das viúvas e órfãos durante a epidemia de gripe espanhola, em 1918."
Mas a Liga significaria o fim da Bucha. Após a Revolução Tenentista de 1924, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) proibiu o funcionamento da organização - decretando, por extensão, o fim do clube criado por Júlio Frank.
Teorias da conspiração
O mistério que ainda envolve a vida de Júlio Frank, bem como a natureza secreta de sua instituição, alimenta teorias e histórias.
Em História Secreta do Brasil, o controverso e polêmico intelectual Gustavo Barroso (1888-1959) defendeu que Júlio Frank seria um heterônimo de Karl Ludwig Sand (1795-1820), estudante da Universidade de Jena, na Turíngia, integrante da Burschenschaft de lá. Oficialmente, Sand foi decapitado em 20 de maio de 1820, condenado pelo assassinato do dramaturgo August von Kotzebue (1761-1819).
"As últimas testemunhas falaram de Júlio Frank como de um homem singular, aparecido em São Paulo ali por 1830, calando avaramente tudo quanto se referia ao seu passado", escreve Barroso.
No livro Bilder aus Brasilien, o jornalista Carlos von Koseritz (1830-1890) apresenta outra teoria: Frank seria um príncipe alemão, desterrado e ilegítimo. Considernado que o registro localizado na igreja Sankt Margarethen, em Gotha, aponta para o casamento de seus pais apenas um mês antes de seu nascimento, há quem suspeite que seus pais oficiais tenham o adotado para limpar a barra de alguma princesa. E, por isso, ele seria protegido de Adam Weishaupt (1748-1830), professor da Universidade de Ingolstadt, na Bavária, fundador da Ordem dos Perfeitos, os Illuminati.
Seja como for, seu túmulo é ornamentado com a figura do mocho, ou coruja de minerva - distintivo das lojas maçônicas frequentadas pelos "iluminados" bávaros.
Morte
Frank não presenciou o auge da instituição. Ele morreu precocemente em 1841, aos 32 anos, vítima de pneumonia. E foi por ter nascido em família protestante, a despeito de não ser praticante de nenhuma religião, que a ele acabou sendo destinado um inusitado túmulo dentro da Faculdade de Direito.
"Na época não existiam cemitérios públicos na cidade. Os sepultamentos eram realizados no interior das igrejas católicas ou em pequenos cemitérios anexos", pontua o historiador Camargo.
"A cidade contava também com o Cemitério dos Aflitos [no bairro da Liberdade], muito desprestigiado, posto que destinado aos condenados pela Justiça, aos escravos ou aos extremamente pobres. Vale lembrar que este cemitério também era administrado pela Igreja Católica", acrescenta o historiador. "Todos sabiam que o protestante Júlio Frank não seria aceito em nenhuma igreja. Já o enterro no Cemitério dos Aflitos seria muito humilhante."
Como ressalta Camargo, destino assim não seria cabível para um "eminente professor da Faculdade de Direito, com largo círculo de amigos entre alunos e professores".
Houve protesto de seus alunos. Uma alternativa foi pensada, então. Coube ao conselheiro José Maria de Avellar Brotero (1798-1873), político e jurista, fazer uma solicitação especial ao bispo de São Paulo, Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade (1767-1847). "Então surgiu a ideia por todos aceita: Júlio Frank seria sepultado no pátio da Faculdade. E assim foi feito", relata Camargo.O túmulo de Júlio Frank, no interior da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, é patrimônio histórico tombado em São Paulo.