“Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração”. Benedito Antônio Genofre Prezia, PUC-SP
2008. Há 16 anos
penetravam a região mais ao sul, tornando o rio Grande a divisa natural103. O nome bilreirolhes foi dado pelo fato de usarem uma pequena e mortífera arma, um cacete, chamada pelosportugueses de bilro104. Foram denominados de forma genérica pelos Tupi de Ibirayara ouIbirabaquiyara (o povo da borduna, da madeira)105. Seriam os que posteriormente foramchamados de Kayapó Meridionais, que ocupavam o nordeste do Mato Grosso do Sul, oTriângulo Mineiro e o Sul de Minas106.
Seguindo para o Oeste, o território continuava pelo médio Tietê, até provavelmentea altura do rio Jaú, afluente do Tietê, como confirma a pesquisa arqueológica na região deCapivari107. Em 1551, o jesuíta Pero Correia foi buscar, no médio Tietê, a nove dias deviagem de Piratininga, um português que vivia numa aldeia Tupi “como índio”108. Paraalém deste limite, habitavam os Kaingang, que na época eram também chamados deBilreiros109.
Na direção Sudoeste, o território se expandia pela margem esquerda do Tietê, poronde devia passar um dos ramais do Peabiru, que era o grande caminho indígena que ligava o Paraguai ao litoral atlântico, como se verá mais à frente.
O mercenário alemão Ulrich Schmidel, numa viagem que fez a pé, em 1553, doParaguai ao litoral de São Vicente, deu algumas informações da presença tupi nessa região.É possível que tivesse vindo pelo ramal do Paranapanema e não pelo rota principal do Peabiru. Ao atravessar o rio Paraná, afirma que entrou numa região hostil, deparando-secom os Toupins [Tupi], indígenas “fiers, orgueilleux et insolent” que ali viviam110.
O território tupi na região Sul devia chegar até a foz do rio Tibagi, no atual estadodo Paraná. Há dois relatos que ajudam a comprovar esta hipótese. Um deles é o do jesuítaRoque Gonzalez, que viveu na redução de Santo Inácio do Paraná, próximo ao rioParanapanema. Numa de suas cartas afirmava que indo para o Sul, em direção ao Iguaçu,vivia um povo bastante belicoso, chamado Paraná, que “compram índios cativos de outrasnações e os trazem às suas terras e os matam com grandes bebedeiras”111. Um segundo texto é da documentação paraguaia, que mostra o Tibagi comofronteira, sendo que os Guarani permaneciam à margem esquerda e “sus inimigos losTupies y Tobayares del Brasil” à margem direita.
Numa abordagem, escrita a partir de Assunção, o cronista narra: “Después determino el governador[Domingo de Irala] despachar Nuflo de Chaves á la Província Del Guairá (...). Nuflo Chaves llegó al [rio]Paraná (...). Pasó adelante, y entro por outro rio que viene de la costa de Brasil, llamado Paranapané (...),dejando este rio, navegó por otro que entra á mano derecha llamado Latibajiba [Tibagi] (...), y pasando porlos pueblos que está à su margenes [esquerda], llegó á los fronterizos [Guarani] que estaban cercados, confuerte palizadas á precaución de sus inimigos los Tupies y Tobayares del Brasil” (DÍAZ DE GUZMAN, LaArgentina, historia del descubrimiento... [1612] 1882, p. 156. Ap. EDELWEIS, Tupis e Guaranis, estudos deetnonímia e lingüística, 1947, p. 49).
Convém observar também que todasas reduções jesuíticas da província do Paraná/Guairá, da primeira metade do século XVII,se instalaram na parte ocidental do Tibagi, isto é, à margem esquerda113. Por isso, não há fundamento documental para situar uma população de 25 milKarijó/Guarani, na região do Anhembi/Tietê, como faz Hemming num levantamentopopulacional indígena do Brasil quinhentista114.
A partir da margem direita do Tibagi, os Tupi controlavam uma extensa região queia até o litoral paranaense. É o que relata Hans Staden, quando em 1550, seu navioconseguiu escapar de um naufrágio, aportando na baía de Superagi, perto da atualParanaguá. Ali ele e os sobreviventes espanhóis encontraram alguns portugueses que moravam entre os indígenas e que afirmaram que “os tupiniquins [ali residentes] eramamigos, e deles nada tínhamos que recear” 115. Todo o litoral sul paulista, de Paranaguá à Bertioga, foi povoado porpopulação Tupi, chamada também Tupiniquim/Tupinikim. Portanto não é Cananéia e simParanaguá, o limite sul da terra Tupi, ao contrário do que afirmam vários autores modernos,repetindo o erro de Soares de Sousa116. Aliás, Cananéia até o século XVII, foi conhecidacomo “o porto principal dos tupis”, como registrou Vasconcelos117. No litoral norte, a partir de Bertioga, iniciava-se o território dos Tupinambá ouTamoio, que se estendia até Cabo Frio, região norte do atual Rio de Janeiro. Emborafossem da mesma tradição cultural e lingüística, estes dois povos eram tradicionaisinimigos e viviam em constantes conflitos.Depois de Mogi das Cruzes, no alto Tietê, começava uma região que de certa formaera controlada pelos Tupinambá do litoral, pois Anchieta fala dos “contrários”, isto é, dosinimigos que viviam à beira do rio Paraíba118. Há também uma dificuldade em identificar estes indígenas do Vale do Paraíba,geralmente chamados de Tupi do Campo e que atacavam periodicamente os portugueses eos Tupi de Piratininga. Achados arqueológicos comprovam a presença Tupi no altoParaíba119. As serras de Bocaina e Mantiqueira não faziam parte do território tupi, vivendo aípopulações coletoras como os Maromomis e os Guaianá, além dos Puri e, talvez dosKarajá120, todos expulsos do litoral, como registrou Anchieta: [Páginas 37, 38 e 39]
uma unidade política ou territorial contínua, mas antes uma composição sujeita a freqüentese, do ponto de vista europeu, inesperadas mudanças”147. A partir das referências históricas, pode-se fazer um mapeamento dasmesmas ao longo dos rios do planalto, sendo que muitas delas tornaram-se aldeamentosmissionários ou núcleos portugueses.
1.3.1 As aldeias do TamanduateíPelo fato de o rio Tamanduateí ser uma importante via de ligação para quem subia olitoral para o planalto, deve ter havido em suas proximidade várias aldeias, embora ahistória tenha conservado apenas o nome de uma delas, Piratininga.Piratininga Foi a primeira aldeia que Martim Afonso conheceu quando esteve no planalto, em 1532, e onde fundou um núcleo português. O seu nome deriva do rio Tamanduateí, que naépoca era chamado de Piratininga148.
Duas décadas mais tarde, em 1550, o Pe. Leonardo Nunes encontrou no planalto várias outras aldeias. Numa delas, vivia um Principal, que, segundo seu relato, “[él] mellevó por fuerça a su casa, y luego se hinchió la casa de Índios, y otros que no cabíanquedaron fuera” 149.
Tal passagem identifica um cacique “principal”, que deveria ser Tibiriçá, comotambém a existência de muitas outras aldeias. Tibiriçá, como se verá mais à frente, teve um papel de destaque na região, por ocasião da chegada dos portugueses.
Se há consenso de que esta aldeia seria do cacique Tibiriçá, há controvérsias quantoà sua localização. É possível que Piratininga fosse um local mais próximo ao Tietê, “junto
147 Dos Campos de Piratininga ao Morro da Saudade... (In: PORTA, História da cidade de São Paulo, 2004,v. 1, p. 25).148 Naveguaçam q’ fez... ([c.1534], PLMH, v. 1, V-VIII parte, p. 503).
149 Carta aos padres e Irmãos de Coimbra, 11.1550 (CPJ, v. 1, p. 208). [“Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração”, 2008. Benedito Antônio Genofre Prezia, PUC-SP. Página 44]
de uma lagoa, pelo Rio Grande [Tietê] abaixo, à mão esquerda”, onde os jesuítas, maistarde, pediriam a Martim Afonso uma gleba de terra (150).
Segundo Freitas, a aldeia deveria estar localizada, não próximo à foz do Tietê, masnum lugar mais alto, livre das enchentes, onde mais tarde seria construída a ermida deNossa Senhora da Luz, hoje convento da Luz (151). Este autor distingue a região dePiratininga, da aldeia de Tibiriçá, que afirma chamar Inhapuambuçu (152). Além de Tibiriçá, num dos escritos de Anchieta, aparece o nome de Tamandiba como importante liderança desta aldeia153.
Outras aldeias Sobre as demais aldeias do Tamanduateí, não há referências. Por ocasião do ataque à missão, em 1562, ao citar os familiares de Tibiriçá, Anchieta escreveu que este cacique “recolheu toda a sua gente, que estava repartida em três aldeias” [ANCHIETA, Carta ao Pe. Diogo Laínes, 16.04.1563, CAP, p. 194], sendo que a tradição identifica apenas a aldeia de Ururay. Desta forma, não se pode afirma se seus parentes viviam nas aldeias do Tamanduateí ou do Tietê.
É possível que o Ipiranga (= rio Vermelho), onde hoje se encontra o Museu Paulista,pudesse ter sido uma aldeia, pois é um sítio típico, segundo os padrões tupis. Além de serum local de ocupação antiga, continuou sendo pouso português para os que chegavam dolitoral155.
150 “(...) somente se podia pedir a Martim Afonso de Sousa sete ou oito léguas de terra para o colégio de Piratininga; e as mais convenientes (...) eram a começar no porto que agora chamam Piratinim, junto de uma lagoa, pelo Rio Grande [Tietê] abaixo, à mão esquerda” (NÓBREGA, Carta ao P. Miguel de Torres, 2.09.1557. CPJ, v. 2, p. 414-415). Um documento sobre a demarcação das terras de Brás Cubas, de 1567, confirma esta localização na foz do Tamanduateí: “[a propriedade] começará a partir pela banda oeste que vae daí [ao] caminho de Piratininga (...) sempre pelo dito caminho assim como vae passando o rioTamanduateí e daí corta direito sempre pelo dito caminho que vae a Piratininga que está na borda do rioGrande [Tietê] que vem do Piquiri [no atual Tatuapé] e ai vae correndo direito para o sertão” (Livro de Sesmarias, v. 1, p. 54).
151 Apesar da confusão que faz com o nome dos indígenas do planalto e com a etmologia rio Anhembi, este autor traz interessante contribuição sobre a localização desta aldeia (Piratininga exumada. In: Tradições e reminiscências paulistanas, 1978, p. 183-192).
152 Id., p. 183. Este nome foi identificado num manuscrito anônimo do século XVII, “Explicação da geração de Pedro Afonso da povoação de Santo André, donde povoaram a de S. Paulo, que primeiro tiveram oshomens que vieram povoar, os quaes se casaram nas aldeias com as filhas dos principais”, e foi reproduzidopor Ricardo Gumbleton Daunt (RIHGB, v. 51, 2ª parte). É de se estranhar que não aparece este topônimo emnenhuma documentação quinhentista.153 Informação dos casamentos dos índios do Brasil (TH, p. 77).154 ANCHIETA, Carta ao Pe. Diogo Laínes, 16.04.1563, CAP, p. 194.155 ACSP, 7.12.1589 (v. 1, p. 374) [“Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração”, 2008. Benedito Antônio Genofre Prezia, PUC-SP. Página 45]
1.3.2 As aldeias do Tietê
À beira do Tietê, deve ter havido várias aldeias; a documentação conservou o nome de algumas delas, aqui identificadas.
Ururay
A aldeia de Ururay (= rio do jacaré de papo amarelo), segundo a tradição paulista, foi a moradia de Piquerobi, irmão de Tibiriçá. A chegada dos jesuítas em Piratininga deve ter provocado desavenças entre estas lideranças, o que levou a uma ruptura e um abandono desta aldeia.
PenhaEmbora a documentação não faça nenhuma referência da existência de aldeia noalto da colina da Penha, em 1920 Afonso de Freitas descobriu uma igaçaba com umesqueleto completo. Este fato, que foi esquecido, assim como a urna funerária que não foimais identificada, veio a público recentemente, quando no final de 2004, Astolfo Gomes M.Araújo, pesquisador do Departamento do Patrimônio Histórico, da Secretaria Municipal deCultura, encontrou casualmente 14 fragmentos de cerâmica tupi próximo à igreja matriz.Segundo ele, “podemos dizer que a cerâmica é indígena com 100% de certeza. E adecoração é tupi-guarani, típica do período pré-contato”. Segundo o mesmo pesquisador,é bem provável que o lugar tenha abrigado uma aldeia préhistórica (sic), já que as urnas funerárias tupis só eramdepositadas dentro de áreas povoadas. De quebra, o lugar devia [“Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração”, 2008. Benedito Antônio Genofre Prezia, PUC-SP Página 46 do pdf]
Outras aldeias
É possível que outras aldeias indígenas se localizassem onde mais tarde surgiram aldeamentos missionários e vilas portugueses, pois como diz Petrone, os quadros do povoamento pré-cabralino forneceram os elementos que, utilizados pelos jesuítas na sua ação catequizadora, resultaram na definição, pelos aldeamentos, de importantes instrumentos do processo de civilização. (...) Isto tendo em vista que o colono e o europeu, de um modo geral, conseguiu sobreviverna nova terra em especial porque soube utilizar-se, a seu proveito,da experiência indígena 164.Portanto, não é de todo impossível supor que poderia ter havido outras aldeias aolongo do Tietê, como Barueri, que possui também características próprias de uma povoaçãoindígena. As pesquisas arqueológicas serão de grande valia165.
1.3.3 As aldeias do Jurubatuba
Este rio foi igualmente importante, pois servia de ligação com o litoral. Assimvárias aldeias ali se instalaram, sendo que algumas tiveram seus nomes conservados.
Jurubatuba
É uma deformação de Geribatiba (= lugar onde há muito jerivá, espécie depalmeira) e esta aldeia devia ficar no médio rio Jurubatuba-açu, atual rio Grande, onde hoje está a represa Billings. Ficava a seis passos de Piratininga (9,7 km.), segundo Anchieta [O passo, medida antiga, correspondia a cinco pés ou 1,65m]166, ou a 2,5 léguas(11 km), segundo o Pe. Luís da Grã, que ali viveu [Carta de 7 de abril de 1557 (CPJ, v. 2, p. 361). A légua terrestre antiga correspondia a 4,4 km. (DeltaLarousse, v. 11, p.5159)]. Por estar próxima ao caminho do litoral, seus moradores costumavam abandoná-la, quando iam “ao mar fazer sal”, permanecendo ali por um bom tempo [GRÃ, Carta a Inácio de Loyola, 8 de junho de 1556].
Devia ser um ponto estratégico na descida para a costa, pois, por ocasião de umlevante Carijó, visando um ataque contra os moradores de São Vicente, a estratégia destesindígenas era atacar “os [índios] christãos de Gerabatiba”, liberando a descida para SãoVicente. Isto só não ocorreu porque “dois Principaes do campo [provavelmente os dePiratininga] detiveram a muita gente que já caminhava com aquelle mau propósito”169.Sabe-se que foi a aldeia de Cay Obi170, uma das lideranças que acolheu os jesuítas.Em 1554 este mudou-se com seu grupo familiar para a colina de Piratininga para reforçar afundação da missão de São Paulo, mas manteve sua roça nessa região, para onde ia comuma certa freqüência171.Anchieta afirma que Caiobi teve um filho, que foi também grande liderança, alémde várias filhas, casadas com líderes indígenas e com portugueses172.GuarapirangaÉ possível que a aldeia de Guarapiranga ficasse às margens do rio Guarapiranga(Yguarapiranga = rio da garça vermelha), afluente do rio Pinheiros, na região sul de SãoPaulo, onde atualmente se localiza o bairro do mesmo nome173.Há poucas referências sobre ela. Sabe-se de sua existência a partir da já citadacertidão do Pe. Francisco Morais, na qual afirma que os indígenas de lá haviam sidolevados para Ururay 174.167 Carta de 7 de abril de 1557 (CPJ, v. 2, p. 361). A légua terrestre antiga correspondia a 4,4 km. (DeltaLarousse, v. 11, p.5159).168 GRÃ, Carta a Inácio de Loyola, 8.06.1556 (CPJ, v. 2, p. 292).169 Ver NOBREGA, Carta a Tomé de Sousa, 1559. CN, p. 217.170 Assim foi grafado por Anchieta (Informação dos casamentos dos índios do Brasil, TH, p. 76) e que sugereuma outra etimologia (kaí= macaco + obi= azul), diferente daquela que é apresentada comumente (caa= mato+ obi= verde), como registra VIOTTI (nota 2, Informação dos casamentos..., TH, p. 81).171 ANCHIETA, Carta ao Pe. Diego Laynes, 30.07.1561 (CAP, p. 176).172 Optamos por manter esta grafia, por ser a mais usual (CCJ, L. 1, n. 158, v. 1, p. 256).173 Ver nosso estudo sobre as populações indígenas do planalto paulista e a toponímia (Indígenas do planaltopaulista..., 2000, p. 147-153).174 In: LEITE, Novas Páginas de História..., 1965, p. 337-338. [Páginas 48 e 49]
na relação aproximada que guardam entre si no desenho; a formade cada montanha aparece igualmente modelada na areia úmida217.O que escapou a este autor foi a importância da toponímia, cujos nomes indígenastornaram decisivas marcas descritivas, que perduram até hoje e que foram as grandesreferências nos caminhos bandeiristas.No Peabiru, que ia para o Sul, há os topônimos Pirapora (= local onde o peixepula), Sorocaba (= lugar da erosão), Itapetininga (= no caminho seco de pedra), Itapeva (= no lageado), Itararé (= no sumidouro). No caminho para o sertão das Minas, encontram-seAiruoca (= morada da ararinha), Baependi (= rio da coisa pontuda), Itumirim (= cachoeirapequena), Itutinga (= cachoeira branca), Itaúna (= pedra preta), Sabará (var. de Itaberá ou Itaberaba = pedra que brilha), Itacolomi (var. de Itacurumi = pedra em formato de criança). No caminho para Goiás o viajante encontra Mogi Mirim (= rio da cobra, opequeno), Mogi Guaçu (rio da cobra, o grande), Jaguari (= rio da onça), Uberaba (= riobrilhante), Araguari (= rio do vale do sol), Paranaíba (= rio da Pindaíba, espécie depalmeira).É possível que muitos destes nomes tenham sido dados por paulistas, falantes dotupi, o que mostra que estes mestiços herdaram do indígena a prática de nomear osacidentes geográficos para marcar o caminho.Recentemente, começou-se a dar mais importância aos topônimos para o resgatehistórico e, sobretudo, cultural dos povos que os criaram218. Como diz Bofil Batalla, “elhecho de nombrar, es conocer, crear”. E, analisando as raízes culturais do México, afirmaquela existencia de esta vasta terminología que da nombre ysignificado a la naturaleza que nos rodea y la revela y hacecomprensible en el contexto semántico de docenas de lenguasaborígenes, es una prueba contundente de la ancestral apropiación217 Índios e mamelucos na expansão paulista, AMP, v. 13, 1949, p. 182.218 Ver DICK, A motivação toponímica e a realidade brasileira (1990), além da clássica, obra, mas nemsempre confiável de SAMPAIO, O tupi na geografia nacional ([1901], 1987). (Página 59)
de esa naturaleza por parte de los pueblos que han creado ymantenido la civilización mexicana profunda 219.E, à medida que se estudar mais a fundo esta toponímia, se terá, como diz o mesmoautor,una información de singular importancia sobre los diversosprincipios y códigos que el hombre mesoamericano [ysudamericano] ha empleado para clasificar y entender el mundonatural en el que se ubica y del que forma parte 220.É possível distinguir algumas rotas indígenas, a partir da documentação colonial,mostrando os caminhos que uniam os vários territórios tupis entre si e estes, com outrasregiões mais distantes.
1.5.1.1 O PeabiruQuanto aos caminhos que partiam do planalto ou passavam por Piratininga, o mais importante deles, sem dúvida, foi o Peabiru, que significa “caminho pisado” (pe= caminho de gente + apyrun= amassado)221. Através de ramais, ligava as várias regiões do litoral – fluminense, paulista, paranaense e catarinense – com um tronco principal que ia ao Paraguai, chegando provavelmente até a Bolívia, como mostra o trabalho de Chmyz & Sauner, que retomou o traçado de Maack222 (fig. 1).
A ligação do litoral do Rio de Janeiro com o planalto de Piratininga foi assinalada por Montoya, quando descreveu a vila de São Paulo, com suas comunicações terrestres, sendo que um caminho vinha “desde o rio Ginero, abrindo-se um trecho de mato, mas isso repugna muito aos de São Paulo”. Certamente era o trecho que atravessava a Serra do Mar, na forte súbita da Serra das Araras. [Conquista espiritual..., [1639] 1985, p. 125.]
Este percurso foi feito também por um grupo português, por ocasião da viagem de Martim Afonso de Sousa, relatada no diário de Pero Lopes. Percorreram-se 115 léguas, gastando dois meses entre ida e volta, passando por “montanhas mui grandes”.
O outro ramal foi utilizado pelo português Pero Lobo, que em 1532 foi enviado por Martim Áfonso de Sousa, com cerca de 80 indígenas para trazer riquezas do Peru. Esperava retornar dentro de 10 meses, com mais de 400 escravos carregados de ouro e prata, como se lê no diário de Pero Lopes de Sousa.
Foi este mesmo caminho que o irmão jesuíta Pero Correia usara para alcançar a terrado Ybirajara, passando pela terra dos Carijó226 e que, mais tarde, o levaria ao litoral nortede Santa Catarina, próximo à foz do rio São Francisco do sul, onde encontraria a morte227.
O outro ramal saía de São Vicente, passando pela serra de Paranapicaba, subindopela Piaçaguera de cima, até alcançar o planalto de Piratininga, num trajeto proposto pelo engenheiro Bierrembach de Lima (Fig. 5, no último capítulo). Este caminho é apenas citado no Diário de Pero Lopes, quando relata sobre um grupo de portugueses que Martim Afonso deixara no planalto, em vista da instalação de uma povoação.
Chamado de Trilha dos Tupiniquins tal rota apresentava muitos riscos, pois, como escreveu Vasconcelos, “os Tamoios contrários, que habitavam sobre o rio Paraíba, neste lugar vinham esperar os caminhantes de uma e outra parte, e os roubavam e cativavam e comiam”229. Com o tempo foi abandonado, quando se abriu o Caminho Novo ou o Caminho do Pe. José, que se tornou a comunicação mais utilizada para o planalto.
A partir de Piratininga, o caminho alcançaria a rota-tronco na divisa do Paraná,provavelmente na altura da atual Itararé. Foi por esta rota que o Pe. Nóbrega deve ter alcançado Maniçoba, na divisa entre Paraná e São Paulo, onde realizou trabalhos missionários, como se verá mais à frente.
Este trajeto deve ter sido usado pelos Carijó, quando alcançaram Piratininga, aotentar atacar os moradores de São Vicente, pois fala-se que haviam se confrontado com as aldeias do rio Grande [Tietê] [NOBREGA, Carta a Tomé de Sousa, 1559 (CN, p. 217).]. Foi também por esta rota que atingiram os paulistas asreduções jesuíticas do Guairá, no século XVII, levando-as à destruição231.
Havia mais dois ramais que corriam paralelos aos rios Tietê e Paranapanema,encontrando-se com a rota-tronco na altura da antiga povoação paraguaia de Vila Rica, naregião central do Paraná, como sugerem Chmyz & Maack232.O ramal do Paranapanema levava à região do Itatim, no atual Mato Grosso do Sul,costeando a direita do rio, caminho feito pela tropa de Antônio Pereira de Azevedo, que fezparte da grande expedição de Raposo Tavares, em 1647, e não pelo ramal do Tietê, comosugere Cortesão233. Isto pela simples razão de que os caminhos indígenas costumavam serem linha reta. Parece ser a mesma rota que foi localizada numa documentação dogovernador Morgado de Mateus e que apresenta um itinerário mais detalhado: Eu tenho um mappa antigo, em q’ se ve o rot.o[roteiro] de humcam.o [caminho] q’ seguião os antigos Paulistas, o qual saindo deS. Paulo p.a Sorocaba, vay dahy a Fazenda de Wutucatú q’ foydos P.es desta S. Miguel [Missão de S. Miguel] junto doParanapanema, q’ hoje se achão destruido, dahy costiando o R.o[rio] p.la esquerda, se hia a Encarnação [redução jesuítica àbeira do Tibagi], a St.o X.er [redução S.Francisco Xavier, nomédio Tibagi] e a St.o Ignácio [redução no Paranapanema] edesde o salto das Canoas, emté a barra deste rio gastavão 20dias, dahy entrando no [rio] Paraná, navegavão o R.o Avinhema,ou das três barras, e subindo por elle emté perto das suasvertentes, tornavão a largar as canoas, e atravessavão por terraas vargens de Vacaria [no atual Mato Grosso do Sul]234. [Páginas 60, 62 e 63]
Um outro ramal importante partia da Ilha de Santa Catarina, atual ilha deFlorianópolis, unindo-se à rota-tronco, na altura do alto Tibagi. Por este caminho seguiu acomitiva do governador Alvar Ñunez Cabeça de Vaca, que em 1541 deixou o litoral deSanta Catarina235.Alguns anos mais tarde, em 1553, um outro grupo de espanhóis, que naufragou nolitoral brasileiro, adotou a mesma rota, como relata Anchieta, partindo da mesma ilha deSanta Catarina, então território espanhol, já que o governador Tomé de Sousa proibiu o usodo caminho terrestre236.Havia um outro ramal, que saía do Tape, onde se localizaram as reduções jesuíticasda parte oriental. Por esta rota chegaram os paulistas, em meados do século XVII, paraatacá-las237.Segundo as pesquisas arqueológicas de Chmyz & Sauner, foram identificados cercade 30 quilômetros do Peabiru no estado do Paraná, abaixo da foz do rio Cantu, próximo aomunicípio que leva o mesmo nome de Peabiru. Era uma trilha medindo 1,40m. de largura,por 0.40 de profundidade, não apresentando revestimento no seu leito, mas com a terracompactada, vindo daí este nome tupi238.Isto mostra que este caminho atravessava territórios de vários povos, havendosempre riscos de morte nas terras de povos inimigos.1.5.1.2 Outros caminhosDiversos foram os caminhos que partiam de Piratininga para as várias regiões dointerior. Seguem algumas rotas, que foi possível identificar a partir da documentaçãocolonial.Os caminhos para o litoral norteHavia vários caminhos que ligavam o interior ao litoral. Um deles ia para o litoralnorte, passando pelo Vale do Paraíba. [Página 64]
Saindo de São Paulo, depois de passar o Tietê, fazia-se pouso no mato de Jundiaí, aquatro léguas da vila. Seguindo em frente, alcançava-se o rio Mogi, “que é rio de canoa”,alcançando depois o rio Pardo. A seguir passava-se por alguns córregos, entrando-se numcórrego que ia desaguar no rio Grande, que era atravessado com a ajuda de balsa.A partir desse local, o relato do Pe. Araújo dá detalhes do caminho da rota quelevava ao rio Iabeberi (rio das Arraias), em Goiás, que, pelos detalhes da localização,deveria ser o atual rio Araguaia246.“No dito rio fizeram suas canoas pera navegarem ao som de sua corrente. Seguindoa esta derrota a poucas jornadas tiveram vista de algumas 500 canos de gentio (...)embarcado com suas famílias, ia fugindo a mais levar”. Navegando a contra corrente, aduas léguas da barra do Iabeberi, que deixavam atrás à mão esquerda, que era um afluentedo Pará, isto é, do rio Amazonas. (...) “Depois desta barra do Pará ao chamado vulgar eimpropriamente Maranhão, onde estão os nossos Portugueses, há 55 léguas”. E apóspercorrer este percurso, foram chegar ao litoral, no atual Pará247.Entre a ida ao Norte e a volta à Piratininga, o grupo gastou 19 meses. É interessanteobservar que esta expedição ocorreu três anos antes da ocupação portuguesa do baixoAmazonas.
O caminho dos Bilreiros
Havia também o caminho que mais tarde levou a Cuiabá e que foi chamado de “estrada dos Bilreiros”. Segundo um relato anônimo do século XVIII, este caminho é
o caminho ordinário e viagem, que fazem os Paulistas (...) que alguns dizem-se poder fazer todo por terra de S. Paulo para o Cuiabá (...) e de Itu caminhar para o Rio Pirachicaba aberto caminho pelo mato. Em quatro dias se pode chegar ao Campo de Aracoarara [Araraquara], daí ao Nordeste levando a mão esquerda a mata do Rio Tietê, chegasse ao rio Grande, julgam alguns será caminho de um mês; mas outros julgam que feito o caminho e abatidos os pastos, que são altos, com fogo, em menos de dias se fará esta viagem.
Passado o rio Grande, seguia até o ribeirão Guacuri, depois tomava o rio Verde, entrando pelo rio Pardo, até chegar às terras de Cuiabá. [Demosntração dos diversos caminhos que os moradores de São Paulo se servem... [c. 1740]. (In: TAUNAY, Relatos sertanistas, 1981, p. 204).]
Embora realizado por paulistas, este e outros roteiros mostravam que tais viagens eexpedições aconteciam graças às antigas rotas indígenas que interligavam os váriosterritórios.1.6 A sociedade TupiPara entender melhor o povo Tupi é importante apresentar, mesmo quesucintamente, sua organização social e seu universo religioso, através dos quais relacionouse com os missionários e colonos em Piratininga.Numa sociedade guerreira, como a Tupi, os chefes e as lideranças políticas tiverampapel primordial, sem, entretanto, desenvolver um modelo de sociedade hierarquizada,como ocorreu com alguns povos da Amazônia, como os Tapajós e Omagua249. Nasociedade Tupinambá e Tupi, pelo contrário, “a estrutura da chefia era tão difusa quanto adas unidades locais”, como observa Fausto 250.1.6.1 A chefiaO tubixaba ou morubixaba251, que hoje é traduzido por cacique, eram lideranças quese destacavam por atos de bravura, passando a ter maior responsabilidade e assumindo afunção do chefe político. D’Abbeville, ao descrevê-lo, aponta alguns requisitos como [Páginas 67 e 68]
Decidiu investir na formação das crianças, reforçando o trabalho do Colégio dosMeninos já existente627. Vários eram trazidos de Piratininga, não sem uma certa resistênciade seus pais, embora vissem, nestes novos pajés, pessoas de grande poder628.Foram aceitos também “os meninos de fora”629, mamelucos e filhos de portugueses.Pensava nos futuros missionários nativos, como de fato ocorreu com dois mestiços queentraram para a ordem630.Mas não escondia os problemas em relação aos portugueses, na sua maioriaaventureiros e degredados, como se viu atrás. Escrevia ele: “Esta terra está tão estragadaque é necessário levar alicerces de novo”631. O escravismo era o maior problema, ereconhecia que “os [indígenas] que estão livres desta praga, amam-nos muito”.
Espírito empreendedor, Nóbrega sonhava ir mais longe, para atuar junto a povos decultura menos “bárbara”, isto é, mais próximos do modo de viver europeu, com ter umúnico chefe, adotar a agricultura e, sobretudo, não realizar rituais antropofágicos633. Estadescrição parecia referir-se aos Carijó, que viviam em terras de Castela, e que semostravam propensos ao cristianismo, como diziam as notícias que chegavam a SãoVicente:
Veio cá um principal destes índios, que chamam carijós, que ésenhor daquela terra, com muitos criados seus, e não veio senão abuscar-nos para que vamos a suas terras a ensiná-los. Diz-nossempre que lá vivem eles como animais sem saber as coisas deDeus. E afirmo-lhes que é bom cristão, muito discreto, quenenhuma coisa tem de índio 634.Entusiasmado, Nóbrega escreveu a Dom João III, manifestando desejo deevangelizar os povos do interior:
5 “(...) somente lhe darei alguma conta desta capitania de S. Vicente, onde a mayor parte residimos, por serella terra mais aparelhada para a conversão do Gentio que nenhuma das outras, porque nunca tiveramguerra com os Christãos, e é por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas gerações dosertão, de que temos boas informações; há muitas gerações que não comem carne humana, as mulheresandam cobertas, não são cruéis em suas guerras, como estes da costa, porque somente se defendem; algumastêm um só principal, e outras cousas mui amigas da lei natural, pela qual razão nos obriga Nosso Senhor amais presto lhes socorrermos, maiormente que nesta capitania nos proveu de instrumentos para isso, que sãoalguns Irmãos línguas, e por estas razões nesta capitania nos occupamos mais que nas outras (Carta paraEl-Rei D. João (1554), CN, p. 144-145).
Porém foi barrado pela prudência de Tomé de Sousa,que via neste futuro trabalho missionário uma violação ao Tratado de Tordesilhas, podendocriar problemas com Castela636. A solução foi instalar-se, a meio caminho, no planalto dePiratininga, deixando para mais tarde o missão junto aos Carijó.3.3 A fundação da Casa de São PauloA criação de uma casa em Piratininga mostrava ser uma medida estratégica, pois era“escala para muitas nações de índios”637 e “porta e o caminho mais certo para entrar nasgerações do sertão”638.Ademais, era uma região rica, pela fertilidade do solo, contrastando com a penúriado litoral, que, com muita dificuldade, podia manter um internato.
“(...) a mantença delles e na terra [São Vicente] haver poucas esmolas para tanta gente, foi-me forçado,des que á esta capitania vim, a passar os meninos a uma povoação de seus paes [Piratininga], donde era amaior parte delles (Id., Carta a Inácio de Loyola, [1556], CN, p.152). Anchieta também confirma este dado:No ano de 1554 mudou o P. Manoel da Nóbrega os filhos dos índios ao Campo, a uma povoação nova, queos índios faziam por ordem do mesmo Padre (Informação do Brasil e suas capitanias, 1584. TH, p. 50).
626 Carta de 1559, CN, p. 195-196.627 “A gentilidade desta capitania algumas vantagens tem às das outras, ainda que tem os mesmos costumes.Dão os filhos de boa vontade e, se tivéssemos com que os manter e criar em Cristo, todos os dariam”.(NÓBREGA, Carta ao Pe. Luís G. da Câmara, 15.06.1553, CPJ, v. 1, p. 496).628 “Padre Leonardo (...) atravessou a pé aquelas fragosas serranias [Serra do Mar], naquele tempo maisbravias, das aldeias dos gentios, que por aquelas matas viviam: teve poder com sua autoridade, ajudada dalíngua eloqüente do companheiro, para negociar, que lhe entregassem os filhos pequenos, porque queriatrazê-los para o mar [São Vicente] e ensinar-lhes entre os portugueses as cousas da fé, e dar-lhes a água dobatismo. Dura cousa acometeu o padre; porque o mesmo é a esta gente arrancar-lhe os filhos, que arrancarlhes o coração; porém entrava aqui a mão de Deus” (CCJ, L. I, 71, p. 210).629 BMN, p. 87.630 “De alguns mestiços da terra, que nesta Capitania de S. Vicente se receberam, escolhi um ou dois esseano e mando-os ao colégio em Coimbra, dos quais tenho alguma esperança que serão de Nosso Senhor e queserão proveitosos para nossa Capitania se lançarem boas raízes em virtudes” (NOBREGA, Carta de 31 deagosto de 1553, NCJ, p. 59. Ver também Leite (Breve Itinerário... p. 87). Um deles, Cipriano, morreu emPortugal por volta de 1563 (HCJB, T. 1, L.1, c. 5, nota 35, p. 31).631 Bras. 3 (1), 97. HCJB, T.1, L, 3, c. 5, p. 87.632 HCJB, ib., p. 104.633 “(...) day a pocos días llegaron unos hombres que eran idos a la tierra firme dentro a descobrir la noticiade oro, adonde anduvieron passantes de dos años, y nos contaron grandes nuevas de la gentilidad quehallaron(...) Y entre otras cosas dice[n] que la gentilidad no comen carne humana, ya a los contrario, queles hazen mucho mal y los comen, si acertan tomar alguno no lo matan ni comen, y trátanlo muy bien(...).Tienen grandes poblaciones, y tienen un principal a quien todos obedescen . (...) Son labradores y hazenmantenimientos” (NÓBREGA, Carta ao Pe. Luís Gonzaga da Câmara, 10.06.1553, CPJ, v. 1, p. 493). [Páginas 158, 159 e 160]
Este percurso foi feito também por um grupo português, por ocasião da viagem deMartim Afonso de Sousa, relatada no diário de Pero Lopes. Percorreram-se 115 léguas,gastando dois meses entre ida e volta, passando por “montanhas mui grandes”224
.O outro ramal foi utilizado pelo português Pero Lobo, que em 1532 foi enviado por Martim Áfonos de Sousa, com cerca de 80 indígenas para trazer riquezas do Peru. Esperava retornar dentro de 10 meses, com mais de 400 escravos carregados de ouro e prata, como se lê no diário de Pero Lopes de Sousa.225
.Foi este mesmo caminho que o irmão jesuíta Pero Correia usara para alcançar a terrado Ybirajara, passando pela terra dos Carijó226 e que, mais tarde, o levaria ao litoral nortede Santa Catarina, próximo à foz do rio São Francisco do sul, onde encontraria a morte227.O outro ramal saía de São Vicente, passando pela serra de Paranapicaba, subindo pela Piaçaguera de cima, até alcançar o planalto de Piratininga, num trajeto proposto pelo engenheiro Bierrembach de Lima (Fig. 5, no último capítulo). Este caminho é apenas citado no Diário de Pero Lopes, quando relata sobre um grupo de portugueses que Martim Afonso deixara no planalto, em vista da instalação de uma povoação228.
Chamado de Trilha dos Tupiniquins tal rota apresentava muitos riscos, pois, como escreveu Vasconcelos, “os Tamoios contrários, que habitavam sobre o rio Paraíba, neste lugar vinham esperar os caminhantes de uma e outra parte, e os roubavam e cativavam e comiam”229.
Com o tempo foi abandonado, quando se abriu o Caminho Novo ou o Caminho do Pe. José, que se tornou a comunicação mais utilizada para o planalto.
A partir de Piratininga, o caminho alcançaria a rota-tronco na divisa do Paraná,provavelmente na altura da atual Itararé. Foi por esta rota que o Pe. Nóbrega deve teralcançado Maniçoba, na divisa entre Paraná e São Paulo, onde realizou trabalhosmissionários, como se verá mais à frente.Este trajeto deve ter sido usado pelos Carijó, quando alcançaram Piratininga, aotentar atacar os moradores de São Vicente, pois fala-se que haviam se confrontado com as224 Naveguaçam q’ fez..., [1532], PLMH, p. 467.225 Id., p. 470.226 “Foi agora enviado o Irmão Pero Correia, com dois outros irmãos, a umas aldeias de índios, que estão aolongo do mar, para lhes pregar a palavra de Deus e sobretudo, se puder ser, para abrir caminho até certospovos que chamam ibiraiaras” (ANCHIETA, Carta quadrimestral de maio de 1554, CAP, p. 79).227 RODRIGUES, Pe. Jerônimo. Relação sobre a Missão dos Carijós (In: LEITE, S. Novas Cartas Jesuíticas,1940, p. 197).228 Naveguaçam q’ fez... PLMH, v. 1, parte V-VIII, p. 503.229 CCJ, L. 2, n. 85, v. 2, p. 51. [“Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração”, 2008. Benedito Antônio Genofre Prezia, PUC-SP. Página 62]
Maniçoba - Apesar desta proposta inicial de catequese itinerante, houve tentativa de uma missão sedentária, que ocorreu, talvez devido à distância, em Maniçoba, aldeia tupi que ficava no caminho para o Paraguai. Como já foi assinalado atrás, o objetivo de Nóbrega era atingir a terra dos Carijó; e por isso, sua primeira experiência missionária no planalto foi junto a esta aldeia, chamada também de Japiúba717, que ficava provavelmente à beira do ramal do Peabiru, que ligava Piratininga ao Paranapanema718.
Foi para lá que Nóbrega se dirigiu, ao passar por Piratininga, em agosto de 1553, quando deixou as bases para a fundação da Casa de São Paulo719.
Esta aldeia ficava a 50 léguas (330 km) de Piratininga no dizer de Pero Correia720. Um jesuíta anônimo, certamente Quiricio Caxa, afirmava que ela estava “junto de um rio donde se embarca para os Carijós [Guarani]”721. Como demonstrei em minha pesquisa anterior, este rio deveria ser o Paranapanema e não o Tietê722, como desejaram os defensores da tese de que esta aldeia estaria onde hoje se encontra a cidade de Itu723.
O contato inicial havia sido feito por Pero Correia, em julho de 1553, e seu trabalhomostrava-se bastante promissor, como escreveu Nóbrega: “Os moços [Guarani]principalmente vem-se para nós de todas as partes”724.A notícia da chegada de Nóbrega, que fora com o filho mais velho de JoãoRamalho, espalhou-se logo. Sua fama alcançara também a região do Guairá e muitasfamílias Guarani mudaram-se para lá, num movimento típico destas populações, quebuscam estar próximo do “homem de Deus”725. Havia a perspectiva de se criar uma missãoe por isso foi construída uma pequena igreja, onde se começava “a ensinar a doutrina cristã,dando princípio a uma residência, que continuou alguns anos”726.Quando voltou para Piratininga, Nóbrega deixou ali os padres Francisco Pires,Vicente Rodrigues e alguns irmãos, entre os quais Gregório Serrão, além de vários [Páginas 179 e 180]
y volvería la tierra de abajo arriba. Con que todos los indioscreyeron y temieron, como le temían siempre 1072. Infelizmente não comporta aqui uma análise deste discurso, e além das figurasmíticas já citadas, chama a atenção o ato de “desbatizar”, praticado pelo pajé, devolvendo,concomitantemente, os nomes guaranis às crianças. O mesmo fez Tibiriçá, quando deixouseu nome cristão de Martim Afonso. Desta forma, abandonar o nome cristão, seria umaprova do abandono da religião forasteira.Para fazer frente a uma conquista político-religiosa lusitana, os Tupi, em meadosdo século 16, e seus parentes Guarani, um pouco mais tarde, foram mobilizados por umdiscurso religioso que levava a atitudes políticas, pois, para estes povos, não há separaçãoentre o religioso e o político. Como observa Melià, “a unidade dialética entre religião epolítica é uma categoria fundamental de seu modo de ser [Guarani]”1073.4.6.2 A guerra da Piratininga
A ameaça de morte aos padres e de destruição da igreja da vila de São Paulo concretizou-se em julho de 1562, liderada pelo grupo dissidente de Ururay, entre os quais havia jovens que freqüentaram “a doutrina dos padres”. Como escreveu Simão de Vasconcelos (1597-1671), aqueles nativos “eram filhos da Igreja”, isto é, que já tinham passado pela catequese, sendo que, possivelmente, alguns já tivessem sido batizados.
Os protagonistas deste ataque foram diversamente identificados, sobretudo em obras da história regional mais antigas. Aparecem como Guaianases de Ururaí ou como Carijó. Até o grande estudioso da São Paulo quinhentista, Affonso de Taunay, coloca esta guerra como uma articulação de vários povos, como Guaianases, Carijós e Tupis, repetindo Azevedo Marques. A historiografia recente, com Monteiro, conseguiu recuperar a verdadeira identidade destes guerreiros.
A preocupação com a segurança da missão e dos moradores da vila parece ter sidoalgo fundamental, pois, nos primeiros meses daquele ano, não houve, efetivamente, sessãoda Câmara, parecendo que todos se preparavam diante das “novas q’ eles [os Tupirebelados] se ajuntavão”1080.Sentindo a gravidade da situação, os vereadores e o capitão de São Vicente, JoãoColaço, convocaram João Ramalho para que aceitasse ser “capitão para a guerra”. Eexigiam, também, a adesão de todos os moradores às suas ordens, sob pena de serempresos, pagando uma multa de 20 cruzados, ficando a metade do valor para o denunciante ea outra metade para custear a guerra. Caso não se tivesse este valor, o infrator deveriapassar um ano degredado em Bertioga1081.Chama a atenção este estímulo oficial ao denuncismo, como se vê em várias leisdas Ordenações Reais Filipinas, que confirmaram as Ordenações Manuelinas, vigentes naépoca1082, além do alto valor da multa para uma população pobre, como a do planalto 1083.É possível que o próprio João Ramalho colocasse certa resistência em assumir ocargo, pois teria dificuldade em deixar sua morada. Por isso, o escrivão, ao redigir a ata,afirmava que “o dito capitão será obrigado a servir”1084.O levante liderado pelos Tupi de Ururay, agora instalados em Mogi, deve tercontado com a adesão de outros grupos que estavam descontentes com as imposiçõesmissionárias. Como escreveu Anchieta, os moradores de Piratininga viviam [Páginas 270 e 272 do pdf]
A convivência entre portugueses e indígenas foi muito grande, não apenas natroca de mercadorias, como também na convivência nos aldeamentos e taperas. Na épocado núcleo de Santo André, o intercâmbio foi tal que muitos moradores chegaram aparticipar dos rituais guerreiros, como se viu.Com a transferência para Piratininga, as festas restringiam-se a algumascelebrações, sem os rituais guerreiros, mas com muita bebida. Por isso, a Câmara chegou aimpor “que todo homem cristão branco que não seja negro de fora [índio de passagem] quese achar em aldea de negros foros [forros] ou cativos bebendo e bailando ao modo do ditojentio”, ficasse sujeito a uma pena1373.Essa convivência, que ocorria também na vila, acarretava alguns abusos, o quelevou a Câmara a legislar sobre o hábito de moradores resgatar “com índios q’ venham pacaza de seus compadres ou amiguos a trazer ql quer couza [como] cera, redes, peças[escravos] co pena de mil rs pa o conselho’1374.A familiaridade nas aldeias do sertão poderia resultar em excessos, sobretudo, emrelação às mulheres indígenas, desencadeando futuros conflitos. A Câmara mais uma vez interviu, proibindo “que nenhuma pesoa fose as aldeas a reguatarem os índios pr causa dos muitos agravos que lhes fazem”1375. Elas tornaram-se também locais de refúgio para os que praticavam assassinatos ou outros delitos graves, como se viu num episódio, ocorrido por volta de 1570, envolvendo a Domingos Grou, o primeiro capitão de Índios. Ao praticar o crime, fugiu com sua família para junto de uma comunidade indígena do médio Tietê, na região do rio Sorocaba. Como estes indígenas estavam em conflito com os moradores de Piratininga, Anchieta decidiu buscá-lo, aproveitando para tentar fazer as pazes com este povo. A viagem foi acidentada, tendo o barco virado numa cachoeira, quando afundou parte a carga, juntamente com o missionário. Não sabendo nadar, Anchieta foi socorrido pelo jovem Tupi Araguaçu. Por este motivo, o salto passou a ser chamado Abaremanduaba, isto é, “local que recorda o1373 Id. 19-01.1583 (v. 1, p. 201).1374 ACSP, 14.04.1590 (v. 1, p. 395).1375 Id., ib. (Página 347)
trazem também um extenso rol de vestimentas, como “roupeta [casaco] de pano e de baeta[tecido de lã rústica], chapéu preto, botas de couro de veado, sapatos e espada larga” 1386.Convém realçar que foram estes indígenas e os mestiços, filhos de mulheres Tupie, mais tarde, filhos de mulheres Guarani, que contribuíram para a criação da língua geralpaulista, que tanto caracterizou estes moradores do planalto1387.Quanto à posse do território tradicional, apesar de já delimitado, algumaslideranças indígenas imaginaram poder mantê-lo de forma independente dentro do contextocolonial. Enganaram-se, como ocorreu com a sesmaria de Carapicuíba. Ao não aceitaremque fosse transformada em Aldeamento Real, os indígenas assistiram a sua rápida invasão.
Demarcada em 1580, em 26 de março de 1590 ainda era identificada como aldeia. Por ocasião da ameaça de ataque à são Paulo, os camaristas escreviam: “(...) que se ponha gente na ambuaçava na aldeia de Caiapurui [Carapicuíba]” (ACSP, 26.03.1590, v. 1, p. 391).
Apartir desta data, não há mais referência como “aldeia indígena”, aparecendo em novembrode 1592 como terra de Afonso Sardinha, como se vê no seu testamento.
Preparando-se para combater indígenas que ameaçavam São Paulo, “estando a caminho para uma guerra e sendo mortal”, este sertanista fez um levantamento de seus bens, deixando 500 cruzados para o filho bastardo, Affonso Sardinha, o moço, que incluía parte das
terras onde está no Amboaçava, as quaes se estenderá da ribeira da aguada dos índios do forte até outra ribeira que vem para Amboaçava, entrando pela matta dentro até onde fiz minha demarcação 1389.Esta localização, embora não muito precisa, parece coincidir com as terras doaldeamento de Carapicuíba. Sardinha deixava-as para sua mulher e, após sua morte,seriam “entregue aos reverendos padres da Companhia de Jesus, d’esta [Página 350 do pdf]
casa do Senhor S. Paulo”1390. Era, quem sabe, uma maneira de comprar o céu com seussupostos bens, e não ter a “consciência pesada”1391.Portanto, em menos de 10 anos, as terras de Carapicuíba, que pareciam ser umaconquista indígena, foram negociadas ou, melhor, griladas por este sertanista. Vê-se que apolítica de demarcação de terras indígenas, já naquela época, mostrava-se como um “malnecessário”, visto a fragilidade das lideranças indígenas, que podiam deixar-se subornar.
5.4.3 A resposta guerreira
Os Tupi que haviam recusado a missão, ou os aldeamentos reais ou a convivênciacom a vila portuguesa, assumiram uma postura guerreira, pressionando de vários maneiraso portugueses e realizando alguns ataques contra Piratininga.
A partir de 1590, inicia-se um novo período de confrontos, a ponto de a Câmara convocar pessoas que estavam refugiadas no sertão, por terem cometido crimes e outros delitos, “porquanto o gentio estava já junto nas frontras e era certeza vir já marchando com grande guerra” 1392.
A reação vinha dos remanescentes dos Tupi de Mogi, que continuavam atacando a partir do Vale do Paraíba, e dos Tupi do Tietê. Era também uma resposta ao nascente tráfico de escravos que começava atingir estas regiões.
1390 Id., ib., p. 347.1391 No final de seu testamento afirmava explicitamente que a esposa “terá cuidado de nomear e tratar bemcomo sempre o fiz e della confio que descarregará minha consciência e a sua” (Id., ib., p. 350). 1392 - “(...) todos os omiziados e apelados [os que tiverem processo] q’ na dita villa ouver ou ai estiveren por quoallquer cauzo (...) que aparesão e venhão a dita v a com suas armas p a ajudaren a defender do nosso gentio topianaquin porquanto os ditos officiaes e mais povo me mãdou aqui hun requerimto q’ hos fose socorrer com muita brevidade porquanto o gentio estava já junto nas frontras e era certeza vir já marchandocom grande guerra” (ACSP, Auto que fez o Sr. Capitão Jerônimo Leitão e pregão que mandou deitar 15.04.1590, v. 1, p. 398-399). [Página 351]
Em 17 de março de 1590, a população de São Paulo recebia a notícia através de dois participantes de uma entrada – João Vallenzuella, espanhol, e um índio cristão, tecelão – que na região do rio Jaguari, um dos formadores do rio Paraíba, na tapera de Iaroubi [Jarobi] o grupo português havia sido atacado, morrendo Gregório Affonso, e que Cunhaqueba havia morto a Isaque Dias “e que fiquara [ficara] hu genro de Carobi, Jundiapoen e outros prezos pa os matarem e juntamente dizen q’ he toda gente da entrada morta e acabada”. E deixavam o recado: todo aquele que fosse ao Vale do Paraíba seria morto 1393.
O texto da ata não é claro, mas parece que um grupo, chefiado por Cajapitanga – que parece ser indígena de Piratininga – , estava colaborando com estes contrários. Por isso, a Câmara propunha fazer um devassa para apurar os fatos e caso fossem confirmadas as suspeitas, que fossem presos os traidores. E pedia que a população estivesse “prestes com armas e mãtimentos pa quando for tempo” para ir combater o grupo inimigo. Pedia-seigualmente que os muros da vila fossem reforçados.
O muro que protegia a vila já não era suficiente, pois havia o risco de indígenas que pudessem chegar pelo médio Tietê. Foi então construída uma fortificação na confluência do Tietê com o Jurubatuba (rio Pinheiros) (1395). Era a ambuaçava, que aparece nas atas da Câmara deste período e que era também conhecida como “o forte”1396.
No final deste mês de março, os camaristas pediam que “se ponha gente naambuaçava na alldeia de Caiapurui [Carapicuíba]” (1397).
A situação era tão crítica que, em 9 de abril de 1590, foi solicitada ajuda ao capitão-mor, em Santos, para enviar homens e munições “com mta brevidade”, pois, segundo as informações passadas pelos índios cristãos e pelos espias, estes inimigos deveriam chegar pelo caminho do mar. E confirmavam que a única solução para estes conflitos era “cada hun ir buscar o seu remédio”, isto é que se escravizassem estes insurgentes.
O ataque temido ocorreu em junho desse ano de 90, desfechado pelo grupo do Vale do Paraíba. Segundo o relato dos camaristas, numa grande investida,
matarão três homeis brãquos e ferirão outros muitos e matarão muitos escravos e escravas e índios e índias xpãos [cristãos] e destruirão muitas fazendas asin de brãquos como de índios.1399 (7.07.1590).
Nesta ofensiva, ocorreu um fato surpreendente: o ataque contra a igreja do aldeamento de Pinheiros, onde “quebrarão a imagem de nossa sr a do rozairo dos pinheiros”1400.
Vê-se que estes Tupi já haviam morado em Piratininga, pois a ata afirma que
herão nossos vezinhos e estavão amiguos connosquo e herão nossos compadres e se comoniquavão connosquo guozãdo de nossos resguates e amizades e isto de muitos annos a esta parte1401.
Nesta ocasião, estavam em Piratininga os padres Pedro Soares, Leonardo do Vale, um grande tupinista, e Manuel Viegas, que ficou conhecido depois como “pai do Maromomi”, além dos Irmãos Antônio Ribeiro e António de Miranda1402. Serafim Leite afirma que este ataque somente ocorreu porque o Pe. Manuel Chaves, que grandeascendência tinha sobre os indígenas, havia morrido em janeiro daquele ano, não tendo tempo para impedir o conflito1403.
O fato de serem indígenas “compadres” dos portugueses e terem quebrado a imagem de Nosso Senhora, parece indicar, novamente, um conflito com indígenas que conviveram com a missão, trazendo um lado de revanche religiosa. Esta hipótese é provável, embora a documentação seja escassa, pois para o indígena, não há separação entre o religioso e o político.
1393 Id., 17.03.1590 (Ib., p. 388-389). 1394 Id., ib. 1395 “(...) se fará na ambuaçava desta parte ãtre ambos os rios pa q’ ellles fiquen de suas partes por muro e parede” (Id., 11.04.1590, ib., p. 394). Ambuaçava deve originar-se do vocábulo tupi paulista boaçâ, que significa “salvar”, seguramente no sentido de “lugar onde pode se proteger” (MARTIUS, Glossaria linguarum brasiliensium, 1863, p. 120). 1396 Testamento de Afonso Sardinha, o velho (AHGPSP, v. 2, p. 374). 1397 Id., 26.03.1590 (Ib., p. 391). 1398 ACSP, 9.04.1590 (v. 1, p. 393). [Páginas 352 e 353]
Com o reforço vindo de Santos, sob o comando do capitão-mor Jerônimo Leitão, osTupi foram rechaçados e um indígena, acusado de quebrar a imagem da santa, foi preso eatado à cauda de um cavalo, para um castigo exemplar1404. É possível que tenha sido mortoem seguida, mais como “bode expiatório”, pois em ataques coletivos é difícil identificar umautor específico. A resposta dada pelos portugueses concretizou-se pelo aumento de expediçõesescravistas, sob pretexto de punir os revoltosos. Continuavam indo para o Vale do Paraíba,onde seguiam sofrendo revezes. A Câmara registrou, inclusive, um boato que corria de queo grupo de Antônio Macedo, filho de João Ramalho, juntamente com Murcuia, talvez ummestiço, haviam sido mortos “na barra do mesmo parnaiba [Paraíba]”1405.
Como a vila continuava em sobressalto e vulnerável, em 16 fevereiro de 1591 os camaristas determinaram, como forma de proteger a população, que quando houvesse
rebate de guerra [toque do sino] as mulheres e filhos dos homeis q’ viven fora nos aravalldes [arrabaldes, isto é, nas fazendas] e dos que estavão auzentes [da vila] se recolhião [recolhessem] ao alpendre da igreja e andavão desaguazalhados no q’ hera mto aperto e desenquietação [e] q’ suas mercês devião de mãdar alarguar esta serqua per fora de maneira q’ aja espaso p a q’ fique a gente aguazalahada e aja espaso pa pelejaren.
Por esta redação, parece que os muros já não estavam em condições de dar proteção e a solução mais rápida era fazer uma cerca para que, entre esta proteção e a igreja, onde havia um alpendre, houvesse “espaso pa pelejaren”. E convocavam um mutirão para concluir a obra. [Página 354]
Estes ataques não impediram que os colonos continuassem suas incursões pelo sertão. Além do Vale do Paraíba, foram escravizar os Tupi do médio Tietê, em Pirapitingui, na região de Itu, onde mataram muitos e trouxeram outros cativos (15.06.1591).
Por ser um grupo numeroso, não deviam ter aceito passivamente a escravização,havendo alguma rebelião. Um mês depois da chegada destes indígenas, a Câmara lançavaum pregão para que todos que tivessemescravo macho trazido desta guerra dos topinaquis [Tupi] decatorze anos pa riba dentro de vinte dias os venda pa fora da tera[terra] sob pena de ser perdido tall escravo (...) pelo muito danoq’ se pode seguir em elles fugindo daqui pao campo1408. Foi uma postura inédita neste contexto escravista, pois percebiam que os Tupi jánão eram tão dóceis e colaboracionistas como antes, podendo engrossar o grupo doscontrários de Mogi ou do Vale do Paraíba. Esta ordem não deve ter sido cumprida, pois, em agosto, ela é retomada1409. A venda deveria, certamente, ser feita para os engenhos e fazendas do litoral, queera o mercado mais próximo e de maior consumo.Com o tempo e com as entradas escravistas, o clima entre os indígenas do sertãomostrava-se cada vez mais conflitivo, não só entre os Tupi, como também entre osGuaianá/Guaizanazes e Maromomi. Isto explica a proibição da Câmara, em agosto de 1593,quando determinouq’ se não fose a tera [terra] dos guaramimis [Maramomi] egoianazes por aver pa iso muitas rezõis e por se não alevantarencom os [Tupi] do sertão [que] estavão alevantados e a mais vozes [Página 355]
Foi nestas aldeias do médio Tietê, talvez no rio Sorocaba, que Domingos Luís Grou foi se refugiar, depois de cometer um homicídioPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SPBenedito Antônio Genofre Prezia
Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração