Diz-se que da longínqua antiguidade, em nem o Itavuvu existia, o que fará Sorocaba, que é sua filha, em no tempo de tudo sertania por estas bandar; diz-que um bandeirante, precursivelmente a Balthazar Fernandes, andou mais um filho, explorando estas porvindouras sorocábicas paragens. Que teriam realizado entradas no vale do Sorocaba e nas fraldas do morro Araçoiaba.
Jovem e bem parecido erao filho daquele sertanista. Por malventura circunstância se deu toparem com tribo uma de selvagens nativos aguerridos, que flecharam de morte o pai e prenderam o filho ferido. Amarram o rapaz num poste no centro da taba e prepararam a festança lhe precursora da morte horrível. Muita fogueira nos entornos, cantorias e danças bárbaras, beberança de cauim, até madrugavolrar, até se prostarem todos, inconscientes de bêbados. Todos não, que a filha do cacique, linda e jovem nativa de uns catorze anos, essa não bebera da enebriante bebida, não bebera porque se enfeitiçara de amor pelo jovem prisioneiro, e se prometera, de um ou de outro modo arrancá-lo das garras da inexorável morte.
Os nativos todos, já se disse, estendera-se por cozinharem a borracheira. A mocinha de pretinha cabeleira longa, de mongóis jabuticábicos olhos, sorrateiramente deixou a óca paterna, caminhou pé-ante-pé para o poste do suplício; postou-se de frente ao rapaz, que não dormira, fez-lhe sinais amigos, e, de imediato tratou de libertá-lo das embiramarras que o prendiam. Feito o quê, caminhou em silêncio para a saída da taba e entrada da mata, sempre voltando-se, mimiconvidando o jovem a segui-la. O moço, conquanto estupefato, deixou-se guiar pela bela nativa por entre as ínvias sendas da mata.
A estrela d´alva transluzia no horizonte, prenunciando o vir d´aurora. Caminhavam, caminhavam depressa, o mais que a selva e o lusco-fusco lhes permitiam. A de certo ponto a bela selvagem passou a segurar a mão direita do rapaz, olhava-lhe nos olhos, e seguia, seguia puxando por ele. Entreparava por cingir-he o másculo corpo com os roliços bracitos, em mostras de muitíssimo amor. O moço não a repelia, antes atraia-a, apertava-a contrao perito, e retribuia-lhe os afagos e ternuras, não já pela gratidão de a jovem nativa tê-lo salvo, senão pelo amor que também lhe aflorava do coração. E caminhavam e fugiam para longe, para bem longe da taba.
Já agora se entrentendiam num rudimentar principio de diálogo. Entre-se-disseram os nomes - O rapaz, voltando o indicador para o peito, falou-lhe: - Eu, Ramiro... e indicando-a, sugerindo-lhe com o gesto correspondente resposta - Tu? - Eu, Jariçaí...Era já o sol lucifúlguro, desfrondeando a mata. Aproximavam-se do vale do Sorocaba.
Janeiro, antesdias chovera chuvas demasiáveis. O rio transbordava. Súbito, no alto do cerro a lhes retaguarda, rebentou a gritaria dos silvícolas, que encalcivinham dos fugitivos. - Meu Deus! Monologou o rapaz, como haveremos de nos salvar?! A jovem nativa abraçava-se-lhe nas pernas e levantava súplices os medrônteos olhos para ele.
Mais perto os bugres, mais perto se aproximantes, num berreiro medonho, prenunciando a vingança terrível.O rio bufava de cheio. Como escaparem? Volverem rastro era irem cair ambos nas garras dos selvagens sedentos de sangue. Arriscarem atravessar a nado a perigosa enchente afigurou-se a Ramiro a única possibilidade de salvação.
Não repensou. Fez Jariçaí lhe subisse no cogote e meteu os peitos no lago espumejante. Nadou, nadou, nadou não sabia quanto, umas conquentas braças, quando os nativos enfurecidos alcançaram a borda líquida. A lhes fuginte vingança fê-los ainda mais irados. Avançaram lago a dentro, andando foram, andando até com água pelo peito, sempre flechando os nadantes fugitivos.
O jovem branco bracejava com sua doce carga às costas. Eis que já atravessava a extensão mais bravia, mais perigosa, a furibunda caudal sobre o leito do rio, que espumejava e remoinhava em vôrtices pavorosos. Ai!... Fatalidade... Uma ervada seta atingira Jariçaí sob a omoplata esquerda, transfixando-lhe o coração.
Pobrezinha, sem um ai morimurchou sobre os ombros do seu amado, que, percebendo-a sem vida, perdeu o controle e a pouca energia que lhe restava. Foi sendo arrastado pelos traiçoeiros rebojos da correnteza. Não largara a querida morta porém. Afundavam e boiavam, boiavam e afundavam, rodopinando, revirvirando, sovertendo nos funissorvedouros. Submergiram de todo. Desapareceram.
A vingativa bugrada sumiu-se no sertão. Três dias depois o rio voltava ao leito. Um caçador por ali andando, topou com os dois corpos abraçados: o branco com a boca colada e a da pequena selvagem, como que num supremo e último beijo de amor.Tempassou. Duas paineirinhas mimomas ali nasceram e foram crescendo, juntinhas, juntinhas; tornaram-se árvores frondemajestosas, florindo milesfloradas todo o ano; os galhos sentrelaçantes, se abraçando, e os ramos e as folhas sentracariciando, como dois entes que se muito amaram.
Uma, um pouco menorzinha que a outra, tanto que a maior derramava suas folhes sobre a menor, lágrimas do amor de Ramiro sobre os cabelos de Jariçaí. Entrementes, os bem-te-vis, e as mariquitas, e as brasilinas, e as sanhaçuíras, e os sabiás-coleira vinham nas manhãs radiantes de sol cantas aquele amor imarcescível do branco e da jovem nativa, amor que nem a marote pôde vencer.
E as borboletas, e as abelhas, e as mamangabas, e os beija-flores em torno festejavam esse eterno abraço, e sugavam o néctar destilado das mileflores, lágrimas perfumadas das duas paineiras. E mui vezes o estafado viandante adormecia às suas sombras.Os anos foram se escorrendo no rosto do tempo e a terra sugou-os um a um. A paineira menor, vai muito já é morta; a maior agoniza lentamente. É Ramiro chorando as últimas lágrimas sobre o corpo sem vida de Jariçaí. Alí, à margem do velho caminho do Itavuvu, além do rio Sorocaba.