No fluxo do Anhembi-tietê: o rio e a colonização da capitania de São Vicente nos séculos XVI e XVII, 12.2020. José Carlos Vilardaga, Universidade Federal de São Paulo - 01/12/2020 de ( registros)
No fluxo do Anhembi-tietê: o rio e a colonização da capitania de São Vicente nos séculos XVI e XVII, 12.2020. José Carlos Vilardaga, Universidade Federal de São Paulo
2020. Há 4 anos
ntre os anos de 1627 e 1628, 19 testemunhas foram ouvidas na igreja matriz na vila de São Paulo, na Capitania de São Vicente, nas partes do Brasil, em processo encabeçado pelo vigário João Pimentel, nomeado juiz comissário. O processo visava colher informações e histórias para a canonização do padre jesuíta José de Anchieta, canarino, partícipe da fundação do colégio de São Paulo de Piratininga em 25 de janeiro de 1554, transformado vila em 1560. Nos relatos das testemunhas, surgem intervenções milagrosas, visões, relíquias e admoestações variadas. Dentre os milagres, um merece aqui destaque. Por volta de 1570, um colono, Domingos Luis Grou, teria se refugiado no chamado “sertão”, juntamente com um companheiro mameluco, Francisco Correia, e muitos indígenas, afastando-se da “vida cristã”. Esse afastamento teria sua origem, segundo testemunhos, num ato de “rebeldia à Igreja”, e, pior, recaía sobre o tal Grou a suspeita de que ele pretendia atacar, com seus aliados indígenas, a própria vila de São Paulo. O padre Anchieta, então, resolveu adentrar o sertão para “recobrar para a via cristã” as ovelhas desgarradas. Segundo Antonio Raposo, uma das nove testemunhas que se remetem ao episódio, o padre entrou através de um “rio que vai ao longo desta vila caudaloso”, o Anhembi, embarcado nas típicas canoas indígenas de casca. [No fluxo do Anhembi-tietê: o rio e a colonização da capitania de São Vicente nos séculos XVI e XVII, 12.2020. José Carlos Vilardaga, Universidade Federal de São Paulo. Página 1]
Eram embarcações sem quilha, leme, vela e âncora, feitas a partir das cascas de árvores e conhecidas como igaras, ou escavadas a fogo, machado e enxó numa peça monóxila de madeira, conhecidas como ubás ou pirogas. A madeira poderia ser a peroba, abundante nas margens dos rios Capivari e Sorocaba, afluentes do Anhembi, ou de timbó, imbaúba ou ximboúva. Eventualmente, nos percursos terrestres, jangadas e pelotas de couro poderiam também ser utilizadas de modo mais improvisado para as travessias.O tipo de madeira dava o limite da escavação e das medidas das canoas, mas elas costumavam ser, nestes rios platinos, mais estreitas que as usadas no Norte, especialmente na Amazônia. Os rios como o Anhembi eram menores, mais rasos, acidentados e sinuosos, o que exigia maior capacidade de manobra. Em função dos obstáculos, a navegação no rio era essencialmente diurna, e a tecnologia destas canoas, amplamente utilizadas tanto pelos Tupi quanto pelos Carijó (Guarani), era fundamentalmente indígena, sofrendo algumas adaptações no século XVIII para a realidade das Monções. De todo modo, nestes caminhos fluviais dos séculos XVI e XVII, os colonos vão manter sem grandes alterações as formas de construção das canoas e as maneiras de percorrer os rios oriundas das experiências indígenas - como remar em pé ou ficar nu nas passagens dos barcos pelas cachoeiras -, mesmo porque, em verdade, serão eles que continuarão a construir e pilotar parte dessas canoas, muitas vezes como escravizados. [Sobre as canoas e o saber indígena, ver: Carvalho, Entre rios e impérios; Holanda, Sérgio Buarque de, Monções e Capítulos de expansão paulista; Kok, Glória, O sertão itinerante: expedições da Capitania de São Paulo no Século XVIII, São Paulo, Hucitec/FAPESP, 2004; Miranda, Fernando Márquez, “La navegación primitiva y las canoas monóxilas (contribución a su estudo)”, Revista Museo la Plata, T.XXXIII, p. 6-87.]
Na margem esquerda, a presença Tupi também parecia ser significativa, ocupando boa parte do vale entre o Anhembi e o Paranapanema, que corria quase paralelo ao primeiro. Contudo, ali os Tupi se faziam contrários aos Jê, Kaigang (próximos aos Guaianá) e Xokleng, mas sobretudo aos aparentados Carijó (Guarani). [Ibidem; Chagas, N. M e Mota, Lúcio Tadeu, O Guairá: a conquista e as relações interculturais nos territórios indígenas no Paraná, de 1500 a 1630. História do Paraná: pré-história, colônia e império, Maringá, Eduem, 2011.]
Estes, de mesma origem que os Tupi, e parte do mesmo tronco linguístico, teriam se assentado pela bacia do Paraná por volta do século V, e dali avançaram numa faixa que atravessava parte do continente, pelo curso do rio Paranapanema, até chegar ao que é hoje parte do litoral paranaense, catarinense e gaúcho. O criollo mestiço assuncenho, Ruy Diaz de Gúzman, que escreveu uma história da conquista do Rio da Prata em 1612, fala de 200 000 “índios guaranis poblados”, que partiam desde a margem esquerda do rio Paraná “así por ríos y montañas, como en los campos y pinales que corren hasta San Pablo, población del Brasil.”[Tieffemberg, Silvia (ed.), Argentina. Historia del descubrimiento y conquista del Rio de la Plata de Ruy Díaz de Guzmán, Buenos Aires, Editorial de la Facultad de Filosofia y Letras; Universidad de Buenos Aires, 2012, p. 77.] Os Tupi e os Guarani eram, contudo, inimigos ferrenhos.
Entre os anos de 1627 e 1628, 19 testemunhas foram ouvidas na igreja matriz na vila de São Paulo, na Capitania de São Vicente, nas partes do Brasil, em processo encabeçado pelo vigário João Pimentel, nomeado juiz comissário. O processo visava colher informações e histórias para a canonização do padre jesuíta José de Anchieta, canarino, partícipe da fundação do colégio de São Paulo de Piratininga em 25 de janeiro de 1554, transformado vila em 1560. Nos relatos das testemunhas, surgem intervenções milagrosas, visões, relíquias e admoestações variadas. Dentre os milagres, um merece aqui destaque.
Por volta de 1570, um colono, Domingos Luis Grou, teria se refugiado no chamado “sertão”, juntamente com um companheiro mameluco, Francisco Correia, e muitos indígenas, afastando-se da “vida cristã”. Esse afastamento teria sua origem, segundo testemunhos, num ato de “rebeldia à Igreja”, e, pior, recaía sobre o tal Grou a suspeita de que ele pretendia atacar, com seus aliados indígenas, a própria vila de São Paulo. O padre Anchieta, então, resolveu adentrar o sertão para “recobrar para a via cristã” as ovelhas desgarradas. Segundo Antonio Raposo, uma das nove testemunhas que se remetem ao episódio, o padre entrou através de um “rio que vai ao longo desta vila caudaloso”, o Anhembi, embarcado nas típicas canoas indígenas de casca.
Numa das inúmeras cachoeiras deste rio, a canoa que levava o padre teria virado, jogando na água os embarcados. Todos emergiram rapidamente, mas Anchieta não. A preocupação mobilizou um indígena de nome Arahaoacu, que mergulhou em busca do padre para socorrê-lo. Qual não foi a surpresa do indígena ao encontrar o sacerdote sentado numa pedra, no fundo do rio, lendo calmamente seu breviário? “Socorrido” o padre, o milagre logo se espalhou, desmobilizando os refugiados, trazidos novamente ao seio da Igreja.1 A cachoeira passou a ser conhecida como Avaremanduava (“lugar onde o padre mergulhou”). E assim ficou conhecida nos séculos posteriores. Até o século XVIII, quando a navegação pelo rio gradativamente conhecido como Tietê, foi praticada sistematicamente nas chamadas Monções2, expedições fluviais que buscaram estabelecer comércio regular com as minas de Cuiabá, a memória do milagre do padre Anchieta era sistematicamente narrada pelos viajantes que pela referida cachoeira passavam.3 Ainda hoje é difícil precisar exatamente onde ela ficava, só se sabe que era localizada nas proximidades do porto de embarque rio abaixo, o Araritaguaba do século XVIII, hoje situado na cidade paulista de Porto Feliz.
3O episódio do padre Anchieta, simbólico porque reúne o sertão ao misticismo através do rio, é também paradigmático ao juntar o padre jesuíta, o colono, o indígena e o mameluco, agentes fundantes da história colonial daquela região das partes do Brasil naqueles primeiros tempos. Aqui ele nos serve também para apresentar o Tietê, este rio “caudaloso”, fundamental para o imaginário e para a história, como um todo, da ocupação humana da região hoje conhecida como São Paulo, no período colonial parte da jurisdição chamada de Capitania de São Vicente.
A história do rio Tietê e a sua navegação, aqui identificado como Anhembi, pois foi este seu nome ao longo dos dois primeiros séculos da colonização, foi bem trabalhada pela historiografia que aborda o século XVIII, e o inegável papel que o caminho fluvial ocupou nos tratos comerciais com o interior do Brasil central. Os relatos e documentos são mais conhecidos e abundantes, e permitem caracterizações muito interessantes sobre o movimento chamado de Monções, que com refluxos variados, se prolongou até meados do XIX. Já os estudos sobre os séculos XIX e XX, enveredaram para outra direção: uma história retrospectiva da perda de um rio, principalmente em seu recorte urbano, paulistano e metropolitano. O lixo e a poluição, a urbanização desenfreada e a ocupação e degradação das margens, as intervenções no trajeto do rio, revelam as formas pelas quais a moderna cidade de São Paulo virou as costas ao seu eixo fluvial. O que deveria ser um alívio na paisagem, a memória de um ser social em relação simbiótica com a natureza que o permeia, torna-se um aspecto degradado e relegado da urbanização da cidade do progresso.4 Sem desconsiderar estas perspectivas, nosso objetivo aqui é outro. É explorar e analisar as fragmentárias e rarefeitas fontes que de alguma forma se referem ao rio nos dois primeiros séculos da ocupação colonial, antes, portanto das Monções, mas nos quais o rio, e seus afluentes, também tiveram um peso fundamental na viabilidade dos assentamentos coloniais, como já tivera nos assentamentos indígenas anteriores à chegada dos europeus. Deixa-se claro, contudo, que parte destas fontes do século XVIII e XIX são aqui de extrema valia para exercícios retrospectivos, especialmente em suas descrições das paisagens, da fauna e flora, e dos acidentes naturais que pontuavam o rio, certamente pouco alterados, em essência, entre os séculos XVI e XVIII.Um planalto para além da Serra5O território colonial que ficaria conhecido como Capitania de São Vicente estabeleceu-se formalmente a partir de 1532, quando uma expedição vinda de Portugal, na qual vinha o donatário Martim Afonso de Souza, tornou vila um assentamento que reunia indígenas e alguns portugueses, em sua maioria náufragos e lançados. A vila de São Vicente, a primeira assim chamada das partes do Brasil, instalou-se numa ilha na qual, na outra ponta, poucos anos depois, surgiria outra, Santos, em sítio portuário mais vantajoso. Ao redor da ilha, alcunhada Santo Amaro, uma estreita planície costeira, em grande parte pantanosa, repleta de mangues e charcos, limitava a expansão colonial por aquelas bandas. Assim mesmo, alguma pioneira lavoura de cana ali prosperou modestamente, juntamente com seus engenhos para o beneficiamento do açúcar. A hinterlândia daquelas vilas, entretanto, se localizaria efetivamente nas terras que se situavam para além da majestosa serrania que visualmente marcava a paisagem oeste da planície litorânea. A Serra do Mar, cadeia montanhosa que rasga, paralelamente, cerca de 1500 quilômetros das franjas atlânticas do território brasileiro, estreita-se consideravelmente naquelas faixas vicentinas. Sua altitude média é 800 metros, atingindo quase isso em São Vicente, com seus 780 metros.6Os trânsitos das populações indígenas que viviam, e se alternavam, entre o litoral e o planalto serra acima, remontam a tempos imemoriais. Os grupos Tupi, predominantes em toda a região litorânea da costa do que viria a ser chamado de Brasil, assentaram-se naquela espacialidade séculos antes, provavelmente expulsando outros grupos para os interiores. Na área de São Paulo, além do litoral, os tupis se instalaram pelo planalto, espraiando-se pelos rios que compunham a rede hidrográfica daquela região. Por motivos de complementação alimentar, alianças ou razões cosmogônicas, estas populações circulavam pelas trilhas que atravessavam a serra e conectavam o litoral ao interior. Naturalmente, foram estes os caminhos que os invasores da Europa se utilizaram para fazer o mesmo movimento. Quando Martim Afonso chegou a São Vicente, em 1532, certos “cristãos” já viviam espalhados serra acima, inclusive um conhecido personagem da história e da mitologia paulista, o náufrago João Ramalho, ali instalado desde os primórdios do século XVI. Ramalho já se aliançara com chefes indígenas através de práticas matrimonias resultantes do cunhadismo, e passou a realizar um incipiente comércio de escravos indígenas com o litoral. Na ocasião da chegada do donatário, uma outra vila teria sido criada no planalto, chamada Piratininga, ainda hoje de localização incerta.
(...) Os Carijós continuaram a subir sazonalmente pelo rio Anhembi no começo do século XVII, muitos inclusive seriam atraídos pelos moradores do Planalto, através de promessas e “dádivas”, e ali escravizados, ou “administrados”, no eufemismo que se adotou em São Paulo para mascarar a escravidão de indígenas. Outros seriam trazidos a força através das chamadas bandeiras, especialmente agudas no sentido do Guairá a partir dos anos 1620. 63 Em 1608, nas Atas da Câmara de São Paulo, o procurador denunciava que índios que se encontravam ao longo “deste rio Anhembi”, que “vinham em paz se meter conosco”, terminavam sendo aprisionados pelos moradores.64 Esses índios são identificados como Carijós nas atas de março do ano seguinte, nas quais se fala desse “gentio carijó” que chegava à vila muito “maltratados e faltos de mantimentos”, e que demandava socorrê-los e “aposentá-los nas partes que melhor parecer...”, o que era quase um convite ao empreendimento individual de apresamento.6566 03/04/1609, Actas da Câmara da Cidade de São Paulo.38É ainda neste mesmo ano, no mês seguinte, que as Atas falam de “certos índios carijós” que tentavam vir a São Paulo, mas que eram impedidos pelos espanhóis. Assim mesmo, com a ajuda de um cacique, um grupo havia conseguido vir rio acima, mas numa paragem chamada “atuahi perto da piassaba” – provavelmente no salto Patuaí, perto de Itu –, alguns brancos portugueses “lhe tomaram por força toda a gente que traziam...”. Na sessão ainda se alertava para o fato de que muitos destes índios vinham a São Paulo “faltos de mantimentos e ferramentas”, e que vários não conseguiam chegar. Pedia-se a providência de mandar “a seu caminho com socorro alguns homens da terra suficientes para isso ou fossem eles em pessoas para que viessem mais seguros...”6667 31/10/1610, Actas da Câmara da Cidade de São Paulo.68 Montoya, Antonio Ruiz, La conquista espiritual del Paraguay, Asuncion, El Lector, 1996, p. 253.39Em 1610, um morador da vila de São Paulo, Clemente Alvares, cujo nome fora escolhido pelo próprio Anchieta, montara sua tenda de ferreiro no Pirapitingui, no caminho que levava aos carijós, para praticar resgates sem ordem nem licença.67 Estes resgates, em sua maioria feitos em troca de cativos, parece ter sido uma constante ao longo do rio. O padre Antonio Ruiz de Montoya, jesuíta peruano superior das missões que se instalaram no Guairá a partir de 1610, escreveu como certos tupis, que ele chamava de “palomeros”, o equivalente espanhol aos “pumbeiros”, montavam “aduar y mesa de cambio” para trocar índios capturados por machados, facas, chapéus e “mil bujerias para a compra de almas”, e isso era feito com as tropas de moradores de São Paulo, que chegavam com suas canoas e barcos.6869 Tieffemberg (ed.), Argentina. Historia del descubrimiento y conquista del Rio de la Plata de Ruy D (...)40O rio Anhembi, nesse sentido, serviu, sobretudo, como zona de contato, muitas vezes violento, entre as ocupações coloniais do Planalto, com as populações indígenas do chamado sertão e as áreas de presença castelhana na Bacia do Prata. Quando Martim Afonso de Souza andou pelas partes de serra acima em 1532, ele já sinalizou para um “um rio grande, que enveredava pelo continente”, o que o motivou, segundo nosso cronista Guzmán, a promover uma expedição liderada pelo capitão espanhol Jorge Sedeño, que teria partido com uma tropa de 60 soldados, “bajando en canoas por el rio de Ayenay”, até o Paraná, e dali demandaram o paradeiro de Aleixo Garcia, que sumira por aquelas bandas em 1526. O destino de Sedeño e seus homens, conforme o cronista, parece ter sido o mesmo de Garcia: a morte. 69