Terras, ouro e cativeiro: a ocupação do aldeamento dos Guarulhos nos séculos XVI e XVII, 2-16. José Carlos Vilardaga
2016. Há 8 anos
moço, e seu cunhado, Estevão Sanches de Pontes, ganharam sesmaria ali em 1638, cobrindo asduas margens do rio (Sesmarias, 1: 271-274). Faziam divisa com João Raposo Bocarro, que será,dentre outras coisas, provedor das minas de SãoPaulo; e também com os irmãos Gil, Antonio eSebastião, toponímia, aliás, presente atualmenteno Pico do Gil (Sesmarias, 1: 280-282).Assim, configura-se uma ocupação sistemática que se espraiava ao longo dos rios Baquirivu e Jaguari; do ribeirão Parati, mais ao sul, edo rio Juqueri, desde suas cabeceiras, mais aonorte. Além disso, os assentamentos coloniaiscobriam os sítios chamados de Caucaia, Cabuçue Bananal, e as terras da própria aldeia. A exploração desse território, nítida região de fronteiraem expansão, foi inicialmente centrada nas atividades agrícolas e pastoris, em especial o trigo,algodão e gado, e mais tarde na mineração, quese tornou destacada atividade.É importante frisar, todavia, que a mineração em Guarulhos nunca se constituiu comouma atividade isolada, mas foi sempre acompanhada por culturas agrícolas e outras formas deexploração econômica. Nesse sentido, os Costa,os Correa, os Veiga, os Cunha, Leme, dentreoutros, não tinham a mineração como atividadeexclusiva, mas parte de um rol de beneficiamentos em suas propriedades essencialmente diversificadas. Desnecessário dizer que, para essasfunções de exploração mineral – ademais paraas outras –, a mão de obra foi principalmente aindígena, angariada dos sertões ou das aldeias.Pela proximidade, as minas do Geraldo, bemcomo outras adjacentes, serviram-se primordialmente dos índios Guarulhos de Nossa Senhorada Conceição.De todo modo, não se pode descartar completamente a presença de escravos negros nostrabalhos nas minas no século XVII. A presençadeles na documentação seiscentista, intituladoscomo “negros da Guiné” ou “tapanhumos”,é mais rara e constitui importante fonte deriqueza nos inventários. Eram, muitas vezes,moedas de troca no comércio com o interiorda América espanhola. Todavia, alguns poucosindícios sugerem uma presença diminuta notrabalho mineral. Se, por um lado, um dosimportantes aliados do governador Franciscode Souza, Diogo de Quadros, provedor dasminas, chegou a pedir ao Conselho da Índiaem 1606 que pudesse repartir algo em torno demil escravos negros entre os moradores de SãoPaulo para beneficiar as minas, mas teve seupedido recusado pelo próprio governador, quedeu um parecer ao Conselho, dizendo que otrabalho poderia ser feito por “índios naturaisda terra que estão afastados de nós, se houvermodo para os atraírem...” (Archivo General deSimancas; Secretarias Provinciales, Libro 1476,f. 164); por outro, ainda no começo do séculoXVII, mais precisamente em 1604, uma certidãofeita pelo mineiro-mor do Brasil, Manoel Pinheiro Azurara relata que faltavam índios parao trabalho nas minas e que mesmo assim elasestavam sendo beneficiadas a partir do trabalhode alguns poucos índios, dos próprios moradores e de forasteiros com “escravos da guine” (Archivo Nacional de Assuncion, Civil y Criminal,1549, 4, 1606). Duas décadas depois, em 1630,o sacerdote português Lourenço de Mendonça,que desejava explorar as minas de São Paulo,dizia que era possível beneficiar as minas como trabalho dos muitos índios “de paz e conquistados” que existiam na vila, mas também dos“muchos negros de Angola” que lá chegavamtodos os anos (Biblioteca Nacional do Rio deJaneiro, Castelo Melhor, 01, 02, 035, doc 16).De qualquer forma, os inventários disponíveisdos mineradores da região de Guarulhos apresentam muito poucos “negros da Guiné”, comoo de Henrique da Cunha.
Ainda em relação à presença de interesses minerais na região, cabe ressaltar que um dos mais famosos mineradores de São Paulo, Clemente Alvares, parceiro dos Sardinha e homem envolvido com ouro e ferro, não chegou, por exemplo, a ser personagem importante na região dos Guarulhos, mas assim mesmo possuía duas datas de terras ali, mais precisamente em Caucaia (I&T, 14).
Cláudio Furquim, ourives, aparece recorrentemente nos inventários da região como credor de dívidas. A presença de gargantilhas, anéis, brincos e outros objetos de ouro e prata, nos inventários, pode sugerir uma parte da origem das dívidas que cabiam a Furquim (I&T, 5).
Luiz Fernandes Folgado, no outro extremo dos termos da vila de São Paulo, em Santo Amaro, de onde tocava o Engenho de Ferro, chegou a pedir uma romaria a “Nossa Senhora da Conceição dos Maromemis”, talvez indicando alguma devoção predileta dosmineradores e dos que trabalhavam os minérios (I&T, 7: 449-493). A presença de Geraldo Correa, Henrique da Cunha e Matheus Leme naquelas paragens sugere que ali congregou-se uma comunidade de personagens envolvidos, familiarmente, nos negócios do ouro.
Jerônimo da Veiga, sertanista e um dos primeiros a se assentar em Guarulhos via casamento com Maria da Cunha, aparece em 1609 num processo movido em Assunção, no Paraguai, contra o mineiro-mor do Brasil, Manoel Pinheiro. Preso com cestas de erva mate contrabandeadas, Veiga acompanhou Pinheiro numa viagem considerada suspeita, pois se acreditava que com o mineiro vinham escravos negros e 12 quilos de ouro em contrabando (ANA, Civil y Judicial, 1549).
O ouro efetivamente retirado é somenteespeculado. Não há registro dele em inventáriosnem nas cobranças de quintos, afora algunsobjetos de ouro esparsos e que poderiam servirpara mascarar o mineral. Lourenço de Siqueira,também dono de terras em Guarulhos, e patriarca da linhagem que se tornaria proprietáriada amplíssima Fazenda Bananal, na Guarulhosoitocentista, plantava trigo, criava gado, mastinha também entre seus bens uma gargantilha,brincos e anéis de ouro, além de um “marcode pesar ouro”, arrolado no inventário de suamulher, Margarida Rodrigues (I&T, 17: 25-29 eI&T, 13: 45-93). A serra do Bananal foi tambémimportante ponto de mineração, onde ficavamas lavras conhecidas como Tanque Grande.Os registros minerais, de eventuais quintos,são quase inexistentes, o que dificulta umaaproximação dos níveis legais de extração. Osinventários só apresentam objetos em metal,nunca o mineral amoedado ou puro. Um levantamento feito pela pesquisadora Miriam Ellis(1950) identificou 200 quilos de prata e 19 deouro. A ausência de prata nas minas regionais,bem como a enorme desproporção, indica umasonegação sistemática do mineral aurífero massugere, por outro lado, uma provável intensatroca com a prata americana, passível de chegarao planalto tanto pelos descaminhos atlânticosdo Rio da Prata quanto pelos descaminhosinteriores do Paraguai. A prisão de Jerônimo daVeiga é um indício destas conexões (Vilardaga,2014).De todo modo, algumas pistas podem reforçar a importância dessa extração mineral. Umadelas é a presença efetiva – que totalizou cercade sete anos –, do governador geral Franciscode Souza em São Paulo. Em 1601, este mesmomandatário proibiu a circulação de ouro em pó,o que em si denota uma prática que necessitouser coibida (RGCSP, 11/02/1601). A instalaçãode uma Casa de Fundição, atuante desde aprimeira década do século XVII, é outro dadoimportante. Por fim, em 1603, alguns mineirostrouxeram para São Paulo, diretamente de Espanha, um Regimento Mineral que duraria até1618, quando um novo regimento, inteiramentevoltado para as “minas de São Vicente”, foiregistrado (Leme, 1980).O Regimento de 1603 não especifica asformas de exploração do trabalho, resumindose à organização e ao regramento da ocupaçãodas minas. Define tamanho das áreas, tempopara declarar e registrar as descobertas, liberdade de descobrimento, marcos de limites,instaura Casa de Fundição, reforça o papelda experiência das atividades mineradoras doPeru e Nova Espanha e define as funções doprovedor das minas. Já o de 1618, direcionadopara São Vicente, abre a exploração para índiose estrangeiros, desde que tivessem licença;limita as posses de minas para três por pessoa, vincula o provedor à Relação da Bahia;torna o provedor o repartidor dos índios nasminas e o responsável pelo regramento dessaexploração do trabalho, que implicava em: nãopermitir que se trabalhasse nas minas mais queo necessário, com limite de dias e pagamentoacertado; seguir a lei de 1611, deixar gente nasaldeias para o plantio, enviar os índios para asminas próximas das aldeias, e visitar as minasa cada três meses para fiscalização. Ainda em1644, um novo regimento demarcaria o podersobre as minas em torno da pessoa de SalvadorCorreia de Sá e Benevides, pessoa não muitobem vista em São Paulo. Em relação à mão deobra, trazia a ressalva de não se utilizar “índios [Páginas 10 e 11 do pdf]
não domesticados nas minas” (Leme, 1980).Independentemente da quantidade de mineralextraído em São Paulo neste período – incluindo as minas de Guarulhos –, é fundamentallevar em conta que grande parte da expertiseque os paulistas aplicarão nas Minas Gerais eno Centro-Oeste ao longo do século XVIII foiadquirida exatamente nessas áreas minerais doplanalto e também em Iguape e Paranaguá.Os índios e os capitães de aldeiaPara além da mineração, uma outra fontede riqueza altamente disputada na região, e emtoda a Capitania, foi a população indígena. Opróprio Lourenço da Siqueira é um caso exemplar. Siqueira foi sertanista, participando comprovadamente da bandeira de Lázaro da Costa, de 1615, que devassou o chamado “sertão dos carijós”, nas proximidades do rio Paraná.Nessa expedição, cumpria a função de alferesmor. Quando de seu testamento, em 1633, fezquestão de pedir perdão por ter gentios da terramantidos como escravos, mesmo sabendo-oslivres. Pediu perdão ainda por ter praticadoqualquer injustiça e não ter pago pelos serviçosprestados pelos indígenas. Em seu inventário,aparecem nomeados 69 índios, entre homens,mulheres e crianças (I&T, 13: 5-44).
Lourenço de Siqueira, de fato, não parece ter sido muito flexível com seu plantel de indígenas, como sugere o procurador do Conselho de São Paulo, em 1623, Luis Furtado, ele mesmo morador e proprietário nas proximidades de Nossa Senhora da Conceição. Furtado denunciou Garcia Rodrigues, o moço, que impedia o livre trânsito no antigo caminho real, que era utilizado pelos Guaramimis e pelos moradores da vila que negociavam com eles. Além disso, a via era usada para a romaria a Nossa Senhora da Conceição, o que denota já a força do culto religioso reservado àquela capela.
Segundo a denúncia, o dito Rodrigues tratava mal os índios e confiscava os bens trazidospor eles. O pior é que parecia um negócio de família. O cunhado de Garcia era justamenteLourenço Siqueira, que praticava os mesmos atos em outro caminho que os índios tentaram abrir como alternativo. Lourenço era já foragido da justiça, e parecia participar da invasão das terras indígenas, denunciadas pelo mesmo procurador, na mesma sessão, que mandava os moradores tirarem as próprias criações de animais das terras dos índios Guaramimis (ACVSP, v. 3, 12 de agosto de 1623). Curioso ressaltar que Garcia Rodrigues era filho bastardo, mameluco, de Antonio Rodrigues Velho, comprado ainda garoto e alforriado somente quando da morte do pai, em 1616 (I&T, 11: 47-53).
De todo modo, o abuso, a violência e aapropriação das terras indígenas era uma práticacorrente entre os moradores de São Paulo e nãoseria diferente na aldeia de Nossa Senhora daConceição. Algumas leis e provisões tentavamcolocar algum freio na voracidade com a qualos moradores avançavam sobre as terras indígenas e sobre os próprios índios, um fenômenoconjunto. Vimos como a Câmara tentou fazerisso em 1625, mas desde o final do século XVIo capitão-mor da Capitania, Jerônimo Leitão,tentara proteger as terras indígenas, concedendoas sesmarias de São Miguel e Carapicuíba, eprevendo punições. Foi somente em 1622 quea Câmara registrou uma provisão de Felipe III,de 1604, para que “nenhuma pessoa roce terrasdos índios” (RGCSP, I, 26/08/1622). De todomodo, aos poucos as regras foram simplesmenterefletindo a prática de apropriação. Em 1682, osoficiais da Câmara solicitam que os “moradoresque lavrassem nas terras dos índios fossem até aCâmara para fazerem aforamento” (RGCSP, II,20/04/1682).Ao longo do século XVII, uma certadecadência, como lembrou Pasquale Petrone,atingiu praticamente todos os aldeamentos doplanalto. Segundo ele, havia uma concordânciaentre colonos, jesuítas e autoridades quanto àapropriação do trabalho indígena, mas a discordância vinha quanto aos meios e as formas. Emverdade, ocorreu uma verdadeira “sangria” dasaldeias em função das demandas por mão deobra nas plantações de trigo, algodão e milho,pelas atividades mineradoras e pelas própriasexpedições de apresamento de outros indígenas.A expulsão dos padres jesuítas em 1640 praticamente abriu as portas para a espoliação completa das aldeias (Petrone, 1995). [Página 12 do pdf]
Terras, ouro e cativeiro: a ocupação do aldeamento dos Guarulhos nos séculos XVI e XVII