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Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1
1865. Há 159 anos
Do rio Cananêa ao Rio da Prata vai outra fermosas parte da terra do Brasil com duzentas legoas por costa, que compreende coisas grandes, em que não posso deter-me: porém em suma, tem vinte rios caudalosos estas últimas praias. Um dos principais é o Rio São Francisco: está em vinte e seis graus e dois terços; tem na boca três ilhas: é capaz de navios ordinários, muito manso, de grandes pescarias: seus arredores férteis de caça, e aptos pera toda a planta brasílica. É povoado de nativos Carijós, a melhor nação do Brasil.

Outro é o Rio que chamam dos Patos, em toda a costa a célebre. Está em altura de 28 graus; é muito caudaloso; a que pagam tributo outros menores. Tem por fronteira á sua barra a ilha de Santa Catharina, que vai fazendo abrigo á terra a modo de uma formosa enseada, de comprimento de oito até dez léguas;

(...) Este fica sendo o termo do distrito dos Carijós, que correm desde o rio Cananéa, onde tem principio, e trazem guerras intestinas com os Goaynás. Dos Carijós pudera dizer muito, acerca de seus ritos, costumes e modos de viver; porém pretendo brevidade; e só digo agora, que é a mais dócil, e acomodada nação de toda esta costa, e sobre tudo singular em não comer carne humana. [Página 52]

Peabiru [Página 63]

Concluo este livro dos nativos com a declaração de sua espécies. As nações dos nativos do Brasil todo, reduzem alguns a três: Topayaras, Potigoares, Tapuyas: outro a quatro, acrescentando a estas a de Tupinambás: outros a cinco, acrescentando mais a de Tamoyos: outros a seis, acrescentando a de Carijós. Porém, eu fazendo com curiosidade diligência por vários escritos de antigos, e pessoas de experiência entre os nativos, com mais propriedade julgo, que toda esta gente se deve reduzir a duas nações genéricas, ou a dois gêneros de nações somente, as quais dividam depois em suas espécies na maneira seguinte. [Simão de Vasconcelos (1597-1671). Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Página 87]

Jurupara, karaibas15. Creem que ha uns espíritos malignos de que tem grandíssimo medo: a estes chamam por vários nomes: Curupira, aos espíritos dos pensamentos; Macachéra, aos espíritos dos caminhos; Jurúpary, ou Anhanga, aos espíritos que chamam mãos, ou diabos; a quem dão tanto crédito, que basta só imaginarem que tem algum recado deste espirito agoureiro, pera logo se entreguem á morte, e com efeito morram sem remédio.

16. Tem grande canalha de feiticeiros, agoureiros, e bruxos. Aqueles a que chamam Payes, ou Caraybas, com falsas aparências os enganam; e estes os embruxão a cada passo. Os Tapuyas neste particular são os piores; por quem além de não conhecerem a Deus, creem invisivelmente o diabo em formas ridículas de mosquitos, sapos, ratos e outros animais desprezíveis. Os feiticeiros, agoureiros, e curadores, são entre eles os mais estimados; a estes dão toda a veneração; e o que dizem, para com eles é infalível. Os modos de dar seus oráculos, e adivinhar os futuros... [Simão de Vasconcelos (1597-1671). Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Página 98 do pdf]

vinho, tomé [Página 99]

Dentro da barra da mesma Bahia, como tres legoas de distancia, em a paragem que chamão S. Tliomé, ou Toqué Toqué, em outra praia, eem outro pedaço de lagem semelhante, deixou o mesmo Santo outras duaspegadas de seus pés impressas na sftstancia da pedra, na mesma form aque a da lagem da Itápoá, e em distancia huma da outra, o que requerea proporção dos passos ordinários de hum homem que caminha. Forãosempre em todo o Brasil tidas, havidas, e veneradas por pegadas do SantoApostolo milagrosas, entre os Portugueses. E a tradição antiquíssima dosíndios derivada de pais a filhos, he na mesma fórma que acima temos ditto;que são pegadas de hum homem branco, com barba, e vestido, que naquellas partes andára, e tratára com elles de outro modo de viver muitodifferente, chamado por nome Thomé; do qual affirmavão estes particularmente, que certo dia exasperados seus avós com a novidade de sua doutrina, ou induzidos de seus feiticeiros, ou do inimigo commum da geração Aqui pera maior confirmação do sobredito, obrou a divina Potênciahuma circunstancia, que parece traz muito de sobrenatural. He esta humafonte perenne de agoa doce, que brota de outro penedo junto ao das pegadas, poucos passos andados, em a raiz do proprio monte, por onde hetradição que desceo o Santo. A esta fonte chama o vulgo fonte de S. Thomé milagrosa; e a razão he varia. Huns dizem que lie milagrosa, porquenasce milagrosamente da pedra viva, qual lá a de Moysés no deserto. Outros porque milagrosamente nascera ao toque de hum pé do Santo, cujapégada alli se vira, qual lá a do pé do cordeiro de S. Clemente: De subcujus pedes fons vivus emanat, E d´aqui querem se derive o nome ToquéToqué. Outros porque milagrosamente se conserva sempre em hum mesmoteor de suas agoas, quer de verão, quer de inverno, sem que redunde pormais chuvas que haja, e sem que* deixe de estar chea, por mais calmasque abrazem a terra. Outros fmalmente, porque cura milagrosamente comsuas agoas a todo o genero de enfermidades. [Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Páginas 101 e 102]

dos índios, que de suas aldeas vão á caça; e têm pera si, que aqueilas pegadas são de S. Thomé: e segundo o que afílrma S. Chrisostomo, e S. Thomás, que acompanhava a S. Thomé hum dos Discípulos de Christo, as segundas pegadas menores devem ser d´este. As letras pretenderão os índios arremedar aos nossos Padres nas aldeas, mas não se entendeo atéagora sua significação.

29 Não só no Brasil, mas por toda essa Nova Hespanha ha noticias admiráveis : direi as de mór conta. Frei Joaquim Brulio, na Historia do Perú de sua Ordem de Santo Agostinho, liv. i, cap. 5 refere, que no mar do Sul, em huma aldea chamada Guatuleo, tinhão aquelles índios seus naturaes, não só por tradição antiquíssima de seus antepassados, mas ainda porescritto em certas pinturas, de que usavão em lugar de letras; que humacruz que alli adoravão com summa veneração, lhes fôra dada por S. Thomé, cuja imagem, e proprio nome tinhão esculpido em pedra viva em humarocha, pera memória perpetua de cousa tão santa.

O mesmo refere o Padre Gregorio Garcia, liv. v, cap. 5, onde acrescenta, que esta cruz he amesma que preíendeo queimar aquelle insigne herege Francisco Draque,quando descobrio o estreito de Magalhães; mas sem effeito, e com exemplo de hum portento maravilhoso: porque a cruz lançada nas chammas nãose queimou; antes por tres vezes frustrou a pérfida intenção do herege,que por outras tantas intentou consumil-a com fogo, coberta de pez, e alcatrão. E fmalmente esta milagrosa cruz tresladou, andados os tempos,pera Guaxàca, hum Prelado zeloso, João de Cervantes; e he venerada n´aquelle lugar com grande multidão de milagres.30 Frei Bartholameu de las Casas, varão fidedigno. Bispo de Chíapa,depois de tirada grave informação do caso, affirma em huma sua Apologia, que consta por antiquíssima tradição dos índios d´aquellas partes, queem tempos aníiguos íbrão annunciados a seus avós os mysterios da Santíssima Trindade, do parto da Yirgem, e da paixão de Christo, por hunshomens brancos, barbados, e vestidos até os artelhos. Condiz com o queacima dissémos, que andava com o Santo Apostolo Thomé outro Discípulode Christo.31 Aquelles primeiros Castelhanos, Fernão Cortez, e seus companheiros, quando no principio entrarão na ilha de Cozumel da Nova Hespanha,acharão huma cousa, que os meteo em admiração; porque virão hum ferinoso muro de pedra quadrada, e no meio d´elie arvorada huma cruz dedez palmos em alto, venerada por toda aquella gente como Deos da chuva: ® “ rtso nrodssões! e preces a seu modo gentílico: ou por milagre de S.Çhomé que alii a plantou (segundo nota o autor da Historia do Peru a cm c itó d o ) ou por traça do inimigo infernal, pera fazer que esta gente idot o S n o excesso da veneração, tendo aquella cruz por verdade.ro Deo .Fra este lugar tido por commum sacrano de todas as ilhas circunvezin a.,: L o havia p o v o algum, que nelle não tivesse sua cruz de pedra mármore ou de outras matérias. Assi o affirma também Gomara, segunda parte,cat. xv e Justo Lipsio no liv. in, em que trata da Cruz.32 Ftoalmente, prova-se o assumpto que pretendo, de que andou pore s 2 partes o Santo Apostolo Thomé,.por testemunhos infinitos, de todosos Reinos da America, e de todas as gentes, e nações naturaes do Bra . ,Lo p L L u ay , do PerO, especialmente de Cuxco, Quito, e Mexico; comofargamente trata e confirma o Padre Mestre Antonio de la Calancha no hv.n de sua Historia Peruana, cap. 2. 0 que tudo supposto. quem haveraaue negue ainda hoje haver-se de ter por certa, tradição tao constante porr ^ rtas, por tantos Reinos, por tantas nações, e casos tao extraordinário s1 D´outra maneira negar-se-lia a fe commum da tradiçao humana emtodas as mais cousas, tanto contra o estylo do mundo, e o intento da sasrada Escrittura, que diz, Exod. 32. «Interroga palrem tuam, e anm ntm htmos etdicenltibi.»Se não pergunto eu: ass. como nâs leTras porque não se imprimirão também nas memórias, as especiesdas cousas memoráveis? Neguemos logo as façanhas dos Cesares, dos Pomneos dos nossos Viriatos, Sertorios, e outras historias semelhantes.33 Contarei hum caso gracioso, e juntamente mui a proposito em provarto intento. Refere o Padre Affonso de Ovalle, da Companhia de Jesu, nolivro aue compoz da Historia do Reino de Chilli, que ouvio contar muitasvezes ao Padre Diogo de Torres, da mesma Companhia, Provincial, e fundador d´aquellas Provindas, varão digno de todo o credito: que indo elledito Provincial caminhando por hum valle de Quito, vio hum dia de festahnm índio já de idade, que tocando seu tamhonl, estava ao som d ellecantando em sua lingoa certas historias, e estavão ouvindo attentos outrosmancebos Parou o Padre, e logo acabando elle de cantar, perguntou, quereremonia vinha a ser aquella TRespondeo hum dos que o ouvirão, queanuelle índio que cantava, ora o Archivista da aldea, a quem corria a obrig o de sahir áquelle lugar todos os dias santos, e repetir cantando astradições, e cousas memoráveis de seus antepassados, em presença dos que alii estavão, que por morte (Telle estavão destinados pera ficar em seu[agar: porque como os índios não tinhão.livros, usavão d´esta diligenciapera conservar nas memórias as historias antiguas. Passou mais o Padre aperguntar, que era o que de presente cantava? Respondeo,. que cantara emprimeiro lugar a historia de hum diluvio, que houvera no mundo antiguamente, e innundára toda a te rra ; e que passados depois d´este diluviomuitos séculos, havendo-se tomado a povoar o mundo, veio ao Peru humhomem branco, chamado Thomé, a pregar huma lei nova, nunca ouvidah´aquellas regiões. Exemplo he este, que mostra com evidencia a fé quedevemos dar ás tradições das gentes, ainda que barbaras. Que monta maisque o escrivão assente no papel as historias, ou que aquelle do tamborilas assente nas memórias dos que o estavão ouvindo, pera effeito de seremconservadas em perpetua lembrança? E porque faremos mais caso do quese imprime no papel, que do que se imprime nas memórias dos homens?Pelo que de todo o sobredito discurso tiro por cousa certa, que se devedar credito á tradição que affirma haver andado n´estas partes, o ApostoloS. Thomé.34 Quanto mais que, porque de huma vez apertemos este assumpto,hei de mostral-o com argumentos de maior profissão: e digo assi. Algumdos sagrados Apostolos, por obrigação de preceito divino, passou a estaAmerica a promulgar o Evangelho da Lei da graça, em que os homens sehavião de salvar: este Apostolo, não foi S. Pedro, nem S. Paulo, nem S.João, nem Santo André, nem S. Philippe, nem Sant-Iago, nem S. Matheus,nem S. Thaddeo, nem S. Simão, nem S. Mathias, nem outro Sant-Iago, nemS. Bartholameu: resta logo que fosse S. Thomé. Só a primeira d´estasproposições tem necessidade de prova: que algum dos sagrados Apostolospor obrigação de preceito divino passou a esta America a promulgar oEvangelho da Lei da graça, em que os homens se havião de salvar. Istoparece que convencem as palavras de Christo, por S. Marcos no cap. xvi.aonde antes de subir ao Ceo, lançou a obrigação que tinha sobre os Apostolos; e lhes disse assi: «Ide pelo mundo universo, e prégai o Evangelhoa toda a creatura: o que crêr, e fôr bautizado, salvar-se-ha; e o que nãocrer, condemnar-se-ha.» Quem diz, pelo mundo universo, não deixa de fóraa America, que he quasi ametade do mundo. Quem diz a toda a creatura,não deixa de fóra as da America, que são. quasi ametade das gentes: eque este preceito se haja de explicar na generalidade, que só a de mundo,e creaturas, entendem os Santos Padres, e Doutores sagrados á margem[Páginas 105 e 106 e 107]

120 Neste tempo aprestava o Governador geral, por ordem d´El-Reivinda de Portugal, huma missão em descobrimento de certas minas do sertão da banda do Sul da Bahia, distante mais.de 200 legoas (segundo conjetu ro , era entre a Capitania do Espirito santo, e Porto seguro, pela terradentro:) mandava huma tropa de soldados sertanejos, capazes de aturaraquellas asperezas. Ào som do tambor desta leva não aquietou o espiritodo bom Padre Navarro: era seu animo converter a gentilidade do Brasiltoda, e des que viera a elle suspirava pela que estava escondida, e remontada por essas brenhas, aonde não podia chegar. Agora que vê esta portaaberta, abraza-se em. desejos, pede ao Padre Nobrega se aproveite da occasião, e o mande a elle com titulo de Capellao d aquella gente em busca dealmas (pois outra semelhante nao se acharia facilmente) e a exploi ar aquelles sertões, e denunciar por elles a Fé de Christo: e que por esta via sefazião dous serviços, juntamente a Deos, e ao Rei, que não tinha Capellãoque mandar.121 Agro pareceo ao Padre Nobrega o haver de largar hum tão grandeobreiro de si, e dos índios presentes, pelos futuros, distantes, e incertos:porém concordavão no mesmo zelo estes dous varões, aos quaes parecia muipouca a gentilidade cia Bahia pera seu grande animo. Encommendou Nobregao negocio ao Ceo, e houve de conceder-lhe licença, entrevindo tambémpera isso petição do Governador por parte do serviço d El-Rei. Havida esta,partio á empresa Navarro, explicada primeiro a condição de seu intentoprincipal, que era o das almas, que á sombra dos mesmos soldados determinava conduzir. Achou nessa empresa o servo do Senhor o que desejavaseu espirito, porque erão aquelles sertões ainda virgens, intrattaveis a pésde Portugueses, difíicultosissimos de penetrar; era necessário abrir caminho á força de braço: erão continuas as alagoas, e rios; o caminhar sempre a pé, e pela mór parte sempre descalços; os montes fragosissimos, asmattas espessas, que chegavão a impedir-lhes o dia. Entre todos estes trabalhos muitos desfallecião, e muitos acabavão a vida por essas brenhas: porém entre tão grandes necessidades não desmaiou nunca o grande coraçãode Navarro, pera grandes empresas criado: animava aos fracos, servia aosdoentes, dava sepultura aos corpos dos que morrião, e todas estas misérias, doenças, e mortes chorava como próprias; e fazião tanto effeito nelle,que chegou a não poder ter-se em pé de fraqueza; porque (qual outroApostolo das gentes) com os fracos enfraquecia, e com os enfermos, enfermava. [Página 225]

ciao os votos dos companheiros, e trattava já de apresto; quando chegandoa resolução á noticia do Governador, impedio o effeiio com todas as veras,por largas razões, parte christãas, e parte politicas. Tinha recebido por noviço pouco havia o Irmão Antonio Rodrigues, homem que havia sido soldado nos partes do Paráguai, e mui versado nos costumes da gente Carijó, entre a qual estivera muitos annos. A este tomou por companheiro, e com mais alguns catheeumenos dos índios de Pirátininga, ao menos entrou pelo sertão como quarenta legoas até a aldea de Japyuba, ou Maniçoba, a fimde fazer experiencia do que trazia em seu pensamento. Fez aqui liuma pequena Igreja, e começou nella a ensinar a doutrina christãa, dando principio a huma residência, que continuou alguns annos, com muito fruto daquellas almas, principalmente de innocentes, e bautizados in extremis, quecom a graça daquelle sacramento voavão ao Ceo.131 Á fama deste grão zelo de Nobrega, mui conhecido pelos sertõesdo Paraguai (nos quaes era chamado Barcaclué, que vai o mesmo que homem santo) seaballárão grandes levas de Carijós em busca delle, pera serem doutrinados na aldea já ditta, que ficava mais perto; pois não forãotão ditosos que tivessem effeito os desejos que o Padre tivéra de ir a suasterras, donde fora chamado por elies tantas vezes. Era este hum grandeprincipio pera os intentos de Nobrega; e parecia-lhe que por aqui abria o Ceocaminho áquella gentilidade tão desamparada. Senão que as traças de Deoserão outras: mostrou-as hum caso lastimoso, ainda que por outra parte feliz.E foi, que indo chegando esta gente á desejada aldea, foi á traição acommettida dos Tupis seus contrários; roubados, feridos, e mortos muitos delles: mas não sem esperança grande de salvação, pelo que então se publicou,que quando os estavão matando seus contrários, dizião, como em fé do sagrado bautismo, que desejavão, e vinhão buscar: «Matai-nos, e comei-nos embora como cães; que nossas almas hãode ir ao Ceo, áquelle lugar que os Padres ensinão.» Ditoso esquadrão! Semelhante foi sua resolução á dos antiguos e esforçados Machabeos, quando, segundo sua Historia do liv. 2, cap.7, derão as vidas temporaes com alegria, protestando a firme esperança quetinlião da eterna.132 Sentio por extremo o Padre Nobrega este successo; mas punha aconfiança em Deos, que sabe bem o tempo, e hora da salvação dos que temescolhido. Alguns Castelhanos vinhão em companhia dos dittos Carijós: estes ao tempo do comhate, como erão poucos, e não podião resistir-lhes, seacolherão pelos maitos; dos quaes, passada a furia dos barbaros, vierão huns ter á aldea de Manitoba, e alii forão recolhidos com toda a charidadedo Padre Antonio Pires: outros cahirão nas mãos dos inimigos, que os guardavão pera ostentação de seus arcos, e pasto de sua gula depois que fossem gordos, segundo seu costume barbaro.

Porém sabendo do successomiserável destes pobres homens, o Padre Nobrega, não lhe sofreo o coração deixal-os perecer: mandou o Irmão Pedro Correa a Paranâitú por embaixador seu aos Tupis; e por seu respeito, e pela eloquência, e zelo comque o Irmão lhes soube failar, lhe mandarão de presente todos os Castelhanos: cousa bem digna de espanto a quem sabe o grande empenho destes barbaros em qualquer seu prisioneiro, quanto mais em pessoas de conta, -133 Neste tempo instituiu o Padre Nobrega a Confraria chamada do Menino Jesu (como já na Bahia instituirá outra, e outra achara no Espirito santo) por virtude de bulias pontifícias, que pera isso houve; aggregando a ella aquelles moços orfãos, que temos ditto vierão do Reino á sombrados Padres; com intenção de fazer delles dignos obreiros da vinha do- Senhor: e juntamente os meninos filhos dos índios, que o Padre LeonardoNunes havia congregado: pera que todos em boa conformidade se criassem na doutrina da Fé, e aprendessem a ler, escrever, e contar: e os orfãos além do sobreditto aprendessem a língua brasílica, e os filhos dosíndios a portuguesa.

134 Tomado já o pulso á terra, e vendo Nobrega quão larga porta seabria i f ella pera os intentos da Companhia, no grande numero de povoações Portuguesas, que cada dia se hião levantando, e na immensidade dealmas de varia sorte de gentilidade, que estavão gritando por remedio :determinou ficar-se alli com demora, antes mandar chamar á Bahia maisnumero de obreiros, que viessem a ajudar nesta seara. Pera este effeitopartio o Padre Leonardo Nunes, pessoa de tanta confiança, como temosmostrado, e mostra também a importância do negocio a que he mandado.Porém não menos caso fez o Ceo cfesta traça de Nobrega; porque naquellemesmo anno em 13 do mez de Julho chegára á Bahia o mais importantesoccorro, que até então vira, nem por ventura veria depois, a Companhiado Brasil. Erão sette sujeitos, e estes de maneira, que promettião ser settecabeças contrarias aos sette vicios principaes. Era o primeiro, e por entãoSuperior de todos, o Padre Luiz da Gram, Reitor que fôra do Collegio deCoimbra (o maior da provinda de Portugal) e cedo veremos Provincialclesta: tão venerado, o dotado do Ceo em talentos da natureza, e graça,que dará bem que fazer a nossa penna. Erao os outros dons Sacei dotes, o [[Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Páginas 231 e 232]

Tornemos agora ao Padre Leonardo Nnnes: o qual depois e star na Bahia até Outubro do presente anuo, tornou a voltar pera S. Vicente,segundo a ordem que trouxera de Nobrega; levando comsigo hum omsoccorro de obreiros, a saber: Vicente Rodrigues, que ja então era Sacerdote, e outros quatro Religiosos dos que vierão de Portugal, e entre esteso Irmão Joseph de Anchieta.144 Não sentia bem Satanás Teste soccorro, segundo procurou destniil-o • porque chegando aos baixos dos Abrolhos, o assaltou com tao desa L e ra d a tormenta, que se virão perdidas as duas embarcações em quehião repartidos, rotas as velas, cortados os mastros, perdidas ancoras, e batel; a em que faia o Irmão Joseph, foi dar através entre os arrecifes, onde padecendo por toda luima noite o bater das ondas alteradas, poderão estasviral-a, e quebral-a; mas não poderão contrastar a confiança de Joseph, eseus companheiros, que com as relíquias dos Santos, e com huma imagemda Virgem Senhora Nossa em as mãos, em cuja vespora de sua Presentação se achavão, clamavão ao Ceo, e pedião misericórdia; até que rompendoa alva do alegre dia da Virgem, por maravilha de seu grande favor, sahirão todos vivos á praia, e poderão depois levar o navio, ainda que quebrado, e destroçado, ao porto que chamão das Caravelas. A embarcação emque hia o Padre Leonardo enxorou em a praia, e fez-se em pedaços, salvando-se a gente, e algumas cousas della; e desta foi força restaurar aquebrada. Porém em quanto a obra se fazia, forão combatidos de outroaperto de fome, que pera tanta gente, e cm praia esteril chegou a ser extrema ; e só com fruta buscada com trabalho pelos mattos conservarão asvidas. Não se pôde negar que entre veio em tão grandes perigos favor milagroso da Senhora, e vai Joseph experimentando a particular protecção,que toda a vida gosará. Concertado o navio, proseguirão viagem ao portodo Espirito santo, aonde depois de alguma refeição, embarcarão comsigoo Padre Affonso Braz, que naquella casa estava, e deixando em seu lugaro Padre Braz Lourenço, largando a vela, chegarão a salvamento a lançarferro no porto de S. Vicente desejado, em 24 cie Dezembro do mesmo annode 1553.

146 Não ha cubiçoso que assi se alegre com a chegada de náos da índia, em que espera os retornos de seus grossos empregos, como aqui

Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1
1 de janeiro de 1865, domingo (Há 159 anos)
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o coração de Nobrega com a. chegada deste seu soccorro, em queempregara tanto cabedal. Não se fartava de abraçal-os huma e outra vez,especialmente ao Irmão Joseph; cjue parece lhe dizia já desde alli o coração, quem por tempos havia de vir a ser este sujeito: qual de outro Jacob o seu Joseph mimoso, companheiro de seus caminhos, consorte de seustrabalhos, alivio de seus cuidados, desempenho de suas cãas, e honra damissão do Brasil.147 Até este tempo governava Nobrega com titulo sómente de ViceProvincial, subordinado á Província de Portugal, donde partira. Porémconsiderando nosso Patriarchs Ignacio a grande distancia dos lugares, eos inconvenientes que podião occasionar-se de consultar tão longe negócios, que pedião ordinariamente presta resolução (com o acerto que emtodas suas cousas costumava), despedio patente neste anno ao Padre Nobrega pera que fosse Provincial com jurisdicção dividida, e independente de Portugal; assinalando-lhe por companheiro Collateral com os mesmospoderes (porque assi o pedia o governo, e circunstancias daquelle tempo)o Padre Luis da Gram, varão das partes, e esperanças, que já dissemos;com ordem outro si, que de seus companheiros escolhesse alguns de maisexperiencia pera Consultores dos negocios de mais momento, cujos votosserião somente consultivos, e não difmitivos: e destes hum (qual elle elegesse) seria o companheiro de seus caminhos. Yeio com esta juntamenteoutra ordem pera que o mesmo Padre Nobrega, e o Padre Luis da Gram,fizessem profissão solemne dos quatro votos, ultimo grào dos da Companhia, nas mãos de qualquer Ordinário destas partes.

148 A primeira cousa que intentou o Padre Manoel da Nobrega, depoisdo novo titulo de Provincial, e da chegada de tão bom e desejado soccorro,foi a fundação de hum Collegio nos campos de Piratininga, pera onde tinha já feito mudar alguns índios principaes com suas aldeas, deixando olugar das antiguas. Poz em consulta seus intentos; e era das razões aprim eira: que daquelle lugar poderião mais commodamente acudir, nãosó ás aldeas dos índios, que alli já moravão, mas a outro grande numerode almas, que habitavão por esse sertão em circuito; e com esta vizinhançados Padres se poderião mais facilmente avocar, ou pelo menos remediarpor meio de missões dos lingoas, que já então havia mui peritos. Segundarazão: porque no lugar onde estavão, erão já muitos, e tinhão á sua contapera sustentar grande numero de meninos do Seminário, assi brancos, como filhos de índios, e a terra estava mui pobre, e não podião as esmolasabranger a tantos; e poderião, repartindo-se. Terceira: porque era necessário, sendo já o Brasil Província de per si, haver Estudos, e criar sujeitos em tal numero, que acudissem a tão diversas partes, como as de queconsta, todas necessitadas; ás quaes não poderia acudir com soccorros bastantes a de Portugal, vistas as empresas com que de presente se achavapera varias partes do mundo.

Contentárão as razões: e logo, na conformidade dellas, no principio de Janeiro do anno seguinte de 1554 (deixados na villa os que parecerão necessários pera os ministérios dos Portugueses), forão mandadostreze ou quatorze sujeitos Padres, e Irmãos debaixo da obediência do Padre Manoel de Paiva fundar o Collegio já ditto nos campos de Piratininga.

Estes campos merecem nome de Elysios, ou bem afortunados; assi pela ventura que lhes coube de que fossem elles o primeiro Seminário da conversão da gentilidade naquellas partes, e o maior de toda a Provinda: como porque partio com elles a natureza do melhor do mundo. De toda a abundancia de cousas necessárias pera uso da vida humana são capazes; e ainda pera recreação, e delicia, a quem a procurar. Reveste-se de flores de cravos, rosas, açucenas, lirios: lie fértil de uvas, maçans, pessegos, nozes, ginjas, figos, marmelos, amoras, melões, balancias, e quasi todas as frutas de Europa. De searas de trigo, grandes vinhas, abundancia de gado, cavallos, carneiros, cabras, porcos mansos, monteses, e aquarios. Caça infinita de animaes, aves, galinhas, perús, perdizes, rolas: seria longo contar só as especies de todas estas cousas.

Distão como dez legoas do mar, porém do porto de S. Vicente doze ou treze: ficão quasi na segunda região do ar, depois de atravessada aqueila notável serrania, de que-dissemos alguma cousa no Livro primeiro das Cousas do Brasil; que sempre vai subindo, acumulando montes sobre m ontes; e tem bem que suar os quo houverem de chegar a vencel-os, pera gozar do raso das campinas.

150 A própria aspereza das serras faz mais aprazivel a benignidade doscampos: da qual aspereza só digo, que a paragem por onde se atravessãoestas serras, lie a mais fácil, que depois de experiencia, e discurso dostempos puderão achar os moradores da outra parte do sertão de Piratininga pera passarem ao mar (chamando-lhe os índios Paranâpiacaba), ecom ser parte escolhida, e o caminho feito por arte, he elle tal, que põeassombro aos que hão de subir, ou descer. 0 mais do espaço não he caminhar, he trepar de pês, e de mãos, aferrados ás raizes das arvores, epor entre quebradas taes, e taes despenhadeiros, que confesso de mim, quea primeira vez que passei por aqui, me tremerão as carnes, olhando perabaixo. A profundeza dos vaíles he espantosa: a diversidade dos monteshuns sobre outros, parece tira a esperança de chegar ao fim: quando cuidais que chegais ao cume de hum, achais-vos ao pé de outro não m enor:e he isto na parte já trilhada, e escolhida. Verdade he, que recompensavaeu o trabaljio desta subida de quando em quando; porque assentado sobre hum daqueiles penedos, donde via o mais alto cume, lançando osolhos pera baixo me parecia que olhava do ceo da lua, e que via todo oglobo da terra posto debaixo de meus p é s: e com notável fermosura, pelavariedade de vistas, do mar, da terra, dos campos, dos bosques, e serranias, tudo vario, e sobremaneira aprazivel. Se se houvera de medir ogrande diâmetro desta serra, houvéramos de achar melhor de oito legoas:porque supposto que vai fazendo em paragens algumas chans a modo depboleiros, sempre vai subindo, e tomando á mesma aspereza; ainda que[Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Páginas 237, 238, 239 e 240]

lemnidade possível: hião nellas todos os sãos, homens e mulheres comluzes de cera em as mãos, os meninos da escola com cruzes ás costas, edisciplinando-se muitos até derramar sangue: e á vista desta piedadehião trocando aquelles barbaros os conceitos, porque á medida dellaparava a furia da doença. Outro meio humano entreveio, e foi, que vendo os Padres que o mal era força de sangue, e não havendo na terraMedico, ou Sangrador, nem ainda lancetas, começarão alguns, e o Irmão Joseph o primeiro, a aguçar seus canivetes de aparar pennas; e comelles, e com o zelo da charidade sangrando-os, fizerão tal effeito, que rarofoi o que dalli em diante morreo: e os perigosos em breves dias melhorarão. Á vista de hum e outro exemplo íicárão os índios de todo satisfeitos,e dizião, que a doença dava o diabo, e a saude davão os Padres. Este meiode charidade, que com esta gente usamos, onde quer que com elles vivemos,em suas doenças, lie huma das razões mais forçosas, que abranda sua natural fereza. Algum escrupulo houve entre os Religiosos do exercício dassangrias, pelo perigo de irregularidade: mandou-se perguntar a questão aRoma a nosso Santo Patriarcha Ignacio pera successos semelhantes: a resposta foi por estas palavras: «Quanto ás sangrias digo, que a tudo se estende o bojo da charidade:» pelo que com mais resolução o fazião-dalli em diante, até o mesmo Padre Nobrega por sua mão em casos de necessidade.163 À segunda perseguição foi de odios. Aquelles Mamalucos Ramalhos, de arvore ruim peiores frutos, tornão agora a resuscitar seus rancores ; e forão maiores os males, que excitárão, que a propria peste. Moravão estes em hum lugar tres legoas distante de Piratininga por nome SantoAndré: daqui tramavão seus embustes, e despedião a peçonha, que conceberão contra os Padres, amotinando toda a criatura, que conjurasse contraelles, como contra os móres inimigos, em vingança de suas, que elles chamavam, injurias, e em liberdade do uso da terra de assaltear, e cattivaros índios. Aos proprios índios persuadião com argumento de mór força,que póde haver entre esta gente; e era lançar-lhes em rosto, que se acolhião á Igreja por covardes, e por não prestarem pera a guerra contra seusinimigos: e era este o maior impropério de que os podião calumniar, ecom que de feito hião perigando alguns mais fracos. Não párão aq u i; vãose á aldêa de Maniçoba, residência moderna dos nossos, perturbão tudo,e persuadem com a destreza de sua lingoa áqueile rebanho ignorante, quelarguem os Padres, homens estrangeiros, e degradados pera estas partes porgente vadia: e que melhor honra lhes seria sujeitar-se a homens destros [Página 246]

A ocasião de sua morte (segundo conta o Padre José de Anchieta, que seguirei á letra na sustância, assim pela autoridade de sua pessoa, como por suas notícias mais certa, por ser ele atualmente mestre, contemporâneo, e coabitador do mesmo Colégio, quando deram as vidas estes dois servos do Senhor) foi a seguinte. Corria fama de uma nação de gente, que habitava além dos Carijós, a que chamavam Igbirayaras os naturais, e os portugueses Bilreiros: dizia-se que era dotada de bons costumes, de uma só mulher, de não comerem carne humana, de sujeição a uma só cabeça, que não eram amigos de matar, e outros raros entre os mais nativos: e parecia que tinham já bom caminho andado pera aceitar a doutrino de Cristo. [Simão de Vasconcelos (1597-1671). Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Página 250]

Senão que são incompreensíveis os juízos de Deus: entrou aqui o inimigo infernal, invejoso de tão grandes princípios: amotinou de improviso os bárbaros contra os pregadores da verdade, e determinaram em dar morte aos que pretendiam dar-lhes a vida. A causa de tão grande variedade, é certo que foi um Castelhano, homem perverso, que ali se achara com o irmão Correa: porém que Castelhano é este? Direi primeiro o que segue o Padre José de Anchieta, e tenho por mais certo, e o segui na Relação da Vida do Padre João de Almeida: depois direi o que seguem outros. Tinha um Padre de nossa Companhia dos que moravam no mesmo Colégio de Piratininga, por nome Manoel de Chaves, livrado das cordas e dentes dos Tupis a este Castelhano, que estava cativo: e da mesma maneira tinha livrado uma nativa Carijó, com quem andava em mau estado, dando reínedio aos dois, e ele com liberdade da vida, à ela com sujeição do estado de matrimônio. Este pois foi, segundo a relação de José, o Castelhano, causa da conjuração dos Carijós, pelo sentimento que teve de ver-se apartado da nativa, que tinha por amiga. E porque este é ponto sustancial, porei as palavras de José: "Este homem que os fez matar era um Castelhano, que estava cativo em poder dos Tupis, e o Padre Manoel de Chaves livrou da morte: da qual também livrou uma nativa Carijó, que ele tinha por manceba, a qual casaram os Padres: e porque não quiseram da-la ao barregão, como ele pretendia pera, tornar a seu pecado, tomou tanto ódio aos Padres, que veio a parar em fazer mata aos Irmãos."[Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Página 252]

Não se acordava contudo o pequeno rebanho dos vivos, á vista de tantos, e tais mortos. Tinham fé viva que iam fundar na outra vida novos Colégios, e nova República na Cidade de Deus, cujo costume é substituir iguais, ou mais avantajados aos que leva em empresas semelhantes. Lidava neste tempo o espírito de Nóbrega incansável na conversão dos nativos em São Vicente, e experimentava neles vários efeitos á medida da variedade de sua natureza inconstante; especialmente o vício de matar, e comer em terreiro os inimigos. É notável nesta matéria o caso seguinte. Corria o principio de janeiro do presente ano, e foram-se ás escondidas dos Padres quantidade de nativos das aldeas de Piratininga a um lugar por nome Jaraibatigba, aonde tinham preparado grandes vinhos para brindarem sobre as carnes de um Tapuya, que haviam de matar, e comer em terreiro. Obraram seu intento livremente, porque ficavam muito distante dos Padres: porém voltando não se acharam tão folgados; porque o Padre Nóbrega revestido da ira do zelo de São Paulo, depois de repreender gravemente o atrevimento em homens já Cristãos, os mais deles, lhes deus penitências muito graves; e entre elas, que não entrassem na igreja até não irem todos disciplinados de mão comum (como o foram em suas festas abomináveis) pedindo perdão ao Senhor, que tinham ofendido. Quem vira o arrependimento destes nativos, e a facilidade com que aceitaram as penitências, diria, que não havia gente mais apta para o reino de Deus. Foram todos sem repugnância alguma, disciplinando-se: iam diante deles seus filhos cantando-lhes as Ladainhas, e Psalmo Miserere: e depois de feita a penitência, e reconciliados á antiga graça dos Padres, voltaram logo ao vomito.

Não tinham passado muitos dias, quando indo estes mesmos á guerra, tomaram nela um Goayaná contrário; e voltando-se com ele para a aldeia, convidados parece de suas boas carnes, determinaram fazer o mesmo que tinham feito em Jaraibatigba: e o que é mais que para prova, que era a causa pública, o próprio Principal já Cristão, por nome Martim Afonso de Mello, mandou alimpar o terreiro defronte das casas dos Padres, com tal resolução, festa, e alarido, como se em seu sertão estiveram (que parece não ficam em si nestes casos, ou arrebatados do ódio do inimigo, ou do amor da carne humana, ou do apetite da honra, que cuidam ganham em semelhante ato).

Já chegava a ser preso em cordas o pobre Goyaná, já corriam os brindes, já se aprestavam as velhas, repartidoras que haviam de ser das carnes do triste padecente: preveniam fogo, lenha, panelas em que coze-las: já finalmente se enfeitava aquele valente triunfador, que havia de ser obrador de tão ilustre feito. Quando neste comenos sentiu o descomedido e arrogante Principal a força do espírito de Nóbrega: o qual, depois de tentados os meios de brandura sem efeito, mandou religiosos resolutos, que quebraram as cordas, largaram o preso, afugentaram as velhas, desfizeram o fogo, quebraram as panelas, e talhas de vinho.; e o que mais espanta, senhorearam-se da própria maça, ou espada, com que costumam esgrimir, ferir, e matar nestas ocasiões; e é entre eles o maior agravo. Aqui se deu por afrontado o bom Principal Martim Afonso: gritou, assoviou, bateu o arco, e o pé, apelidou os seus, e ameaçou que lançaria de suas terras gente que não deixava desafrontar-se um Principal de seus inimigos. Pretendeu tornar ao intento; e em lugar da maça, ou espada, houve foice ás mãos, e quis obrar com ela a morte, que com a espada não podia: porém foi-lhe tirada com tal indústria, que ficou frustado seu intento, e o Goayaná livre. E o fim mais espantoso foi, que quando se podia esperar de um Principal agravado, e vassalos tão inconstantes, um grande desatino; posto distante de todos eles Nóbrega, lhes estranhou com tal resolução, e espirito a fealdade do delito que cometiam homens já da igreja de Deus, que voltando todos as costas se foram como envergonhados meter em suas casas; e passado o furor, e repreendido também o Principal de sua sogra, e mulher, nativas Cristãs, e de bom respeito, tornou em si ele, e os demais caíram no mal que fizeram, e foram lançar-se aos pés dos Padres e pedir-lhes perdão de sua ignorância.Trazia o Padre Nóbrega tempo havia em seu peito (como já tocamos) grandes fervores de ir assentar sua residência com alguns companheiros entre os nativos Carijós, que habitavam a maior parte da costa marítima até o Rio da Prata, e era grande multidão de gente acomodada para a Fé; e cercada de outras nações, das quais todas se esperava grande colheita.

Estes pensamentos revolvia em seu entendimento, quando chegaram Embaixadores de todas aquelas partes do Paraguai, e Rio da Prata, onde por fama era muito conhecido o zelo de Nóbrega, e de seus companheiros como homens santos: o pediam que quisesse ir, ou mandar alguns dos seus a ensinar-lhes o caminho da verdade. Vinha entre os mais nativos um grande Principal já Cristão, por nome Antonio de Leiva, cujos desejos de levar os Padres eram tão grandes, que depois de atravessar com muitos trabalhos o sertões de duzentas léguas com seus vassalos, dizia, que ou haviam de ir com ele os Padres, ou ele com todos os seus havia de ficar entre eles. Davam por razão, que todas as nações daquelas suas partes estavam comprometidas neles, e seria afronta sua tornar com as mãos lavadas: e que se os Padres fossem com ele, todos haviam de ouvir sua doutrina, e sem eles ficavam sem remédio de quem lhes pregasse desenganadamente, e fôra de cobiça.

Facilitava a petição do Principal, outra ocasião oportuna de serviço de Deus: porque pretendiam passar pelos mesmos sertões ao Rio da Prata parte daqueles Castelhanos, que o Padre Leonardo Nunes de boa memória tinha trazido, na forma que dissemos, dentre o Gentio dos Patos, e não poderão ir com os primeiros. Pediam estes agora ao Padre Nóbrega, quisesse mandar-lhes dar escolta por alguns Religiosos línguas, que franqueassem a passagem entre as nações por onde haviam de passar, que só aos Padres conheciam, e respeitavam.Todas estas razões eram setas de fogo, que incendeiam em caridade o coração de Nóbrega: por todas elas esteve resoluto a partir-se, e a ponto já de embarcar-se com alguns companheiros em canoa pelo rio abaixo, que retalhando aquele vasto sertão, vai a desembocar no rio Paraguai, e da Prata. Porém o Céu traçava coisas diversas, e foi servido que no próprio dia 15 de maio de 1555 em que havia de partir, chegasse nova que tinha aportado á vila de São Vicente o Padre Luis da Gram seu Colateral, por quem esperava.[Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. vol 1, 1865. Páginas 262 e 263 e 264]

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