Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594)
1933. Há 91 anos
Quadrimestre de Maio a Setembro de 1554, de Piratininga
Além destes ha outra casta de nativos grandemente disseminada por toda a parte (á qual chamam Carijó), em nada diferente destes no alimento, no modo de viver e na língua, todavia muito mais mansos e mais prósperos á coisas divinas, o que claramente conhecemos pela conversação de alguns que conhecemos aqui entre nós, bastante firmes e constantes. Estes estão sob a jurisdição dos Castelhanos, cujas casas fazem de boa mente, comprando-lhes o necessário para o uso da vida e com quem vivem em amigável disposição.
A estes seguem inumeráveis gerações para o ocidente pelo sertão, até a província do Perú, que um nosso Irmão percorreu; as quais são na verdade muito mandas e facilmente se chegam á razão; são todas sujeitas a um principal, vive cada um separadamente em sua casa com mulher e filhos, não se alimentam por maneira alguma de carne humana, e aos quais, se se anunciar a palavra de Deus, não é duvidoso que mais se aproveitará em um mês com eles, do que com estes em um ano.
E também ha, vizinho desta, outra infinita multidão de nações (que propriamente se dizem "escravos"), pelas quais se vai até o Amazonas, e cremos que vivem em outra parte do mar da Etiópia.
Mandou-se agora o Irmão Pero Corrêa com dois outros, Irmãos (41) a umas povoações de nativos, que estão situadas perto do mar, a pregar entre eles a palavra de Deus, e maxime se se puder, a manifestá-la em certos povos, a que apelidam Ibirajáras, os quais cremos que se avantajam a todos estes, não só no uso da razão, como na inteligência e na brandura de costumes. Obedecem todos estes a um único senhor, tem grande horror á carne humana, vivem satisfeitos com uma só mulher, e resguardam cuidadosamente as filhas virgens (o que outros n ão curam) e a ninguém, senão ao próprio marido, as entregam. Se a mulher cai em adultério, o marido mata-a; se porém ésta, evadindo-se das mãos do marido, foge para a casa do principal, é recebida benignamente e conservada por este, até que se abrande a cólera do marido e ele se aplaque. Se alguém faz sua, por furto, a coisa alheia, é levado á presença do principal, e este ordena que seja açoitado pelo algoz. Não creem em idolatria alguma ou feiticeiro, e levam vantagem a muitíssimos outros em bons costumes, de sorte que parecem aproximar-se da lei mais conforme á natureza. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Páginas 47 e 48]
Acresce também a isso que, como todas as orações e gemidos dos nosso Irmãos, depois que aqui estão, se afadigam pedindo contínua e fervorosamente a Deus Otimo e Maximo que enfim se digne algumas vezes mostrar e descobrir algum caminho em que para aqui se dirijam os gentios a receberem a sua fé, agora finalmente se descobriu uma grande cópia de ouro, prata, ferro, e outros metais, até aqui inteiramente desconhecida (como afirmam todos), a qual julgamos ótima e facílima razão, de que já por experiência estamos instruídos. Porquanto, muitos dos Cristãos, que aqui têm vindo, a fazer por força o que não se resolveriam a fazer por amor. Resta que, Reverendo Padre, nos encomendemos humildemente á tua terra e ás orações de todos os nossos Irmãos. Piratininga, na Casa de São Paulo, 1554. O mínimo da Sociedade de Jesus. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 49]
(4) Luiz da Grã, filho de Antonio Taveira, de família nobre, nasceu em Lisboa, cerca de 1523 (Primeira Visitação do Santo Ofício - Denunciações da Baía, S. Paulo, 1922, p. 329). Em 1543, quando estudante da Universidade, entrou para o Colégio de Coimbra. Ordenado padre, foi reitor desse Colégio de 1547 a 1551. Veio para o Brasil com d. Duarte da Costa, em 1553, chefiando a terceira missão, de que participou Anchieta e encarregado do governo da província como colateral de Nóbrega. Perante este, fez sua profissão solene dos 4 votos em São Vicente, onde chegou a 15 de maio de 1555. Aí recebeu, em dezembro de 1559, a patente de provincial, trazida pela leva que veio para o Brasil como bispo d. Pedro Leitão, exercendo esse cargo até 1570.
Na Capitania vicentina, de acordo com Nóbrega, transformou em "perfeito colégio", primeiro da Companhia do Brasil, a escola de São Paulo de Piratininga (1556) e, quatro anos mais tarde, com auxílio de Mem de Sá, mudou-se para São Vicente (S. de Vasc., o. c., I. 1, n. 202, e I. 2, n. 84). Enfrentando Bolés, cuja influência junto aos moradores era crescente, por duas vezes denunciou-o ao ouvidor eclesiástico, o vigário Gonçalo Monteiro: a primeira devassa se perdeu e a segunda, feita em 1560, terminou com a absolvição do acusado (v. nota 179). Aos esforços de Grã e Nóbrega, no dizer de Anchieta (v. carta XII), deve-se a transferência em 1560 da dita vila de Santo André da Borda do Campo para Piratininga, determinada por Mem de Sá.
Ainda em 1560, a 25 de junho, seguiu Luiz da Grã em companhia do governador para a Baía, onde chegou a 29 de agosto. Aí ativou extraordinariamente a catequese, restaurando a aldeia de São João a promovendo a fundação das de Santo Antônio (Erembé), Santa Cruz (Itaparica), Bom Jesus (Tatuapara), São Pedro, Nossa Senhora da Assunção (Tapepitanga), São Miguel (Tareraguá) e Santo André, ao mesmo tempo que visitava as antigas povoações nativas.
Conhecia perfeitamente a língua brasílica, de que foi mestre na Baía, tendo ordenado em 1560 que no Colégio se lesse a arte comporta por Anchieta. A 21 de janeiro de 1561, achando na aldeia de São Paulo, depôs no auto de culpas instaurado contra João de Bolés, preso na Baía desde dezembro do ano anterior. [Páginas 50 e 51]
(24) Pero Corrêa em 1549, foi o primeiro irmão recebido por Leonardo Nunes em São Vicente. Português, dos principais moradores e grande língua da terra, antes de entrar para a Companhia como noviço "gastou muitos anos de sua vida acomodando-se ao modo de viver do lugar, salteando e cativando nativos". Tendo obtido ao tempo do capitão-mór Gonçalo Monteiro, a terra "que era dada a um mestre Cosme, bacharel", além de outra situada em Peruíbe, requereu em 1542 a Antonio de Oliveira, loco-tenente do donatário, carta de confirmação, pois a primeira "lhe caíra no mar". Por essa carta, passada a 25 de maio do mesmo ano, conseguiu ainda a concessão da maior das três ilhas "que estão defronte da dita terra de Peruíbe para seu aposentamento de carga e descarga das naus". A 20 de março de 1553, declarando-se co-fundador da casa de São Vicente, fez doação de todos os seus bens á Companhia. Ainda em 1553, foi enviado por Nóbrega a Paranaitú, de onde trouxe para São Vicente alguns castelhanos cativos dos tupis. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 58]
Aos Padres e Irmãos da Companhia de Jesus em Portugal, de Piratininga (59)
Até agora sempre tenho estado em Piratininga, que é a primeira aldeia de nativos, que está a 10 léguas do mar, como em outras cartas tenho escrito, em a qual estarei por agora, porque é terra mui boa; e porque não tinha purgas nem regalos de enfermaria, muitas vezes era necessário comer folhas de mostarda cozidas com outros legumes da terra e manjares que lá podeis imaginar, junto com entender em ensinar gramática em três classes diferentes; e ás vezes estando dormindo me vêm a despertar, [Página 63]
Agora nos hemos passado a esta povoação de nativos que se chama Piratininga, donde estamos entre os nativos. Dia da conversão de São Paulo dissemos a primeira missa em este lugar.
Agora com a ajuda de Nosso Senhor nos ocupamos em a doutrina destes nativos e em rogar ao Senhor que abra a porta a conversão de muitas nações de que temos novas e em que parece se fará muito fruto por não haver entre elas costume de comer carne humana. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Páginas 71 e 72]
Esta Piratininga, em que agora estamos, está 24 graus para o meio-dia e toda está, desde a primeira habitação dos portugueses, que é em Pernambuco, até aqui e ainda mais adiante, é de 300 léguas povoado de nativos que tem por sumo deleito comer-se uns aos outros, e muitas vezes vão á guerra e havendo andando mais de 100 léguas, se cativam três ou quatro, se tornam com eles e com grandes festas e cantares os matam, usando de muitas cerimonias gentílicas, e assim os comem, bebendo muito vinho, que fazem de raízes, e os miseráveis dos cativos, se tem por muito honrados por morrer morte, que a seu parecer, é mui gloriosa.
Esta nação de nativos daqui cremos que se estende muito por a terra a dentro. Fóra destas nações que hei dito, ha outra nação em o Brasil mui estendida que se chama "Carixós" (Carijós), mui mais mansa e capaz das coisas de Deus; estes estão já debaixo do poder do Imperador (Carlos V, rei da Espanha e imperador da Alemanha, que nesse mesmo ano abdicou); temos experiência deles por alguns que tivemos aqui, instruindo-os na fé. [[Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 74]
De São Vicente, a 15 de março de 1555
Creio que sabereis que estarmos alguns da Companhia em uma terra de nativos, chamada Piratininga, cerca de 30 milhas para o interior de São Vicente, onde Nosso Senhor favorece, com a sua glória, a salvação destas almas: e ainda que a gente seja mui desmandada, algumas ovelhas ha do rebanho do Senhor.
Temos uma grande escola de meninos nativos, bem instruídos em leitura, escrita e em bons costumes, os quais abominam os usos de seus progenitores. São eles a consolação nossa, bem que seus pais já pareçam mui diferentes nos costumes dos de outras terras; pois que não matam,não comem os inimigos, nem bebem da maneira por que dantes o faziam.
No outro dia em uma terra vizinha foram mortos alguns inimigos, e alguns dos quais nossos conversos por lá andaram, não para comer carne humana, mas por beber e ver a festa. Quando voltaram não os deixámos entrar na igreja, senão depois de disciplinados; estiveram por isso, e no primeiro de janeiro entraram todos na igreja em procissão, batendo-se com a disciplina e só assim os houvéramos aceitado.
Ocupamo-nos aqui em doutrinar este povo, não tanto por este, mas pelo fruto que esperamos de outros, para os quais temos aqui abertas as portas.
Está conosco um principal dos nativos chamados Carijós (carijis), o qual é senhor de uma vasta terra, e veio com muitos dos seus servidores só á nossa procura, afim de que corramos ás suas terras, para ensinar, dizendo que vivem como bestas feras, sem conhecer as coisas de Nosso Senhor.
Diogo-vos, caríssimos Irmãos, que é um mui bom cristão, homem mui discreto e nem parece ter coisa alguma de nativo. Com ele resolveu-se o nosso Padre Manuel ir ou mandar alguns, e só espera a chegada do Padre Luiz da Grã.
Além desta, outras nações ha, inumeráveis e mui melhores, pelo que dizem pessoas que as tem frequentado, principalmente uma, a que chama Ibirajáras; a esses desejando enviar um, o nosso Padre Manuel escolheu o Irmão Pedro Corrêa, para que fizesse, demais, outros trabalhos do serviço divino na mesma viagem, e especialmente ajudasse certos Castelhanos que tinham de se passar para o Paraguai, aos quais o dito Pero Corrêa désse socorro, se os visse em grande necessidade, de matalotagem, e lhes desse companhia para irem com segurança. E começou pelos nativos dessas paragens, que mui bem receberam a palavra de Cristo e determinaram reunir-se e viver em uma grande terra, onde pudesse mais fácil ser ensinados nas coisas da Fé. Tinham os nativos em prisão para comerem, um Cristão, que era dos Carijós, e pedindo-o Pero Correa, logo lhe fizeram entrega sem taxar preço algum e o mesmo obteve acerca de outro prisioneiro inimigo, o que não é pouco, como sabeis, porquanto nisto põem os Brasis toda a sua honra.
Estávamos a 6 de outubro de 1554 quando Pero Correa com outro chamado João de Sousa, também nosso, e os dois nativos que tinham livrado, partiram para essas terras dos Carijós e se internaram muitos dias pelas terras mencionadas pregando o Evangelho de Jesus Cristo, nosso Senhor, passando muitos trabalhos, as mais das vezes fome, não tendo que comer e estando enfermo João de Sousa. Isto seria talvez em Novembro quando apareceu nessas terras um intérprete dos Castelhanos e outro Português; escreveu-lhes Pero Correa para se reunirem todos em um lugar, afim, de que conformemente pregassem a mesma coisa, por ser uma só a verdade, do que fizeram pouco caso: todavia, veio visitá-lo o Português e esteve uma noite com os nossos e ouviu Pero Correa pregar grandes coisas de Nosso Senhor e também que fizessem a paz com os outros. O intérprete Castelhano, que grã tempo estivera entre os Carijós e vivera em seus costumes deles, pregava o contrário, que fizessem guerra, que os ajudaria; e tais intérpretes, obreiros da iniquidade, soem muitas vezes pregar coisas semelhantes. Ouviu-o também o Português dizer muitas palavras que patenteavam a malícia daquele coração, e entre outras dizia aos Carijós, que o nosso Irmão Pedro Corrêa abria a estrada pela qual haviam de vir os inimigos para matá-los e outras coisas para incitá-los (contra os padres).
Querendo, pois, no tempo marcado da obediência, que era o Natal, havendo semeado a palavra de Deus naquelas nações que tão bem dispostas estavam, o que fez dizer a Pero Correa para o Português que nunca vira igual, acompanharam-o 10 ou 12 Carijós dos principais até ás fronteiras dos seus inimigos. Do que é testemunha de vista o Português que nomeei acima; o qual assim narrou ao Padre Manuel e a mim, estando doente em perigo de vida, já confessado e comungado; pelo que se presume, outra coisa não direi a não ser a verdade. Estando, pois, este intérprete dos Castelhanos e o outro Português em certas terras, viram descer por um rio alguns nativos Carijós, movidos como se crê por aquele intérprete, que os concitava á guerra com muitas mentiras, e que nos tinha em ódio por não lhe darmos uma sua concubina nativa, mataram logo dois nativos que vinham com os nossos e depois voltaram-se contra o nosso Irmão João de Sousa, que andava enfermo, e começaram a atirar-lhes flechas; êste, porém, caiu de joelhos louvando o Senhor e dêste modo o mataram. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Páginas 79, 80 e 81]
(75) Este trecho de Anchieta demonstra que a morte de Pero Correa e João de Sousa ocorreu depois do Natal de 1554, e não a 8 de junho desse ano ou no mesmo dia de 1555. Aliás existe uma carta de Pero correa, que foi publicada com a data de 8 de junho de 1554 nos Diversi Avisi Particolari, p. 239-42, sendo aí vertida para o italiano, bem mais extensa que nas Cart. Av. De acordo com as informações de Anchieta, nesta e na carta anterior, bem como de Simão de Vasconcelos, os sucessos da expedição, que terminou com o martírio de Pero Correa e João de Sousa, podem ser assim resumidos: Manuel da Nóbrega, desejando iniciar a catequese dos ibirajáras ou bilreiros, estabelecer a paz entre os tupis e carijós e assegurar a livre passagem para o Rio da Prata de uns castelhanos que Leonardo Nunes anos antes encontrara no porto dos Patos e trouxera para São Vicente, encarregou dessa tríplice missão os irmãos Pero Correa, João de Sousa e Fabiano de Lucena. Partiram os três a 24 de agosto de 1554 para Cananéa, principal porto dos tupis. Aí doutrinaram os nativos e livraram da morte um castelhano e um nativo cristão. A 6 de outubro, Pero Correa e João de Sousa, deixando Fabiano de Lucena como enfermeiro do castelhano que se achava ferido, seguiram para a terra dos carijós. Estavam entre eles os nativos pregando o Evangelho e a paz quando, em novembro, apareceram dois intérpretes, um espanhol e outro português. Aquele já era conhecido dos jesuítas de São Vicente, por haver sido salvo, tempos atrás, por Manuel de Chaves, quando, com uma sua concubina carijós, estava cativo entre os tupis. Apesar de livrado de morte certa pelos jesuítas, o espanhol lhes tinha ódio pelo fato de o haverem separado da concubina, que se casou com outro em São Vicente. De maneira que começou logo a embaraçar a missão de Pero Correa e João de Sousa, incitando os carijós á guerra contra os tupis. No Natal, que parece ter sido a data marcada por Nóbrega para deixarem a terra dos carijós e procurarem a dos ibirajáras, Pero Correa e João de Sousa, acompanhados de dez ou doze principais até os limites da região que ocupavam com sua gente, se embrenharam pelo sertão. E aí morreram flechados por alguns carijós, que o ódio do intérprete castelhano instigara. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 84]
É coisa sabida e pela boca de todos corre que ha certos demônios, a que os Brasis chama de "corupira", que acometem aos nativos muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os nativos deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, pena de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos "curupiras" que não lhes façam mal. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 128]
(179) Jean des Boulez ou Joanes de Bolés, o Jean Cointa de Léry. Vindo com Bois de Comte em 1557, foi expulso do forte de Coligny por Villegaignon e refugiou-se com outros franceses na aldeia de Olaria. Em 1558 ou 1559 chegou á fortaleza da Bertioga (São Vicente), com a notícia da invasão dos tamoios chefiada por artilheiros franceses, denúncia que foi a sua vingança contra Villegaignon e lhe valeu o reconhecimento dos vicentinos. Turbulento, inteligente, falando perfeitamente o espanhol, começou logo a hostilizar os jesuítas e escreveu uma invectiva que mandou a Luiz da Grã, que descera de Piratininga para desmascará-lo.
Entregue á justiça eclesiástica, foi remetido para o Norte. Esteve em Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco e Baía, onde pôs Mem de Sá ao par dos acontecimentos do Rio de Janeiro. Em 1560, tornou ao Sul na armada do governador que desalojou os franceses da fortaleza de Coligny, tomando parte no combate, que auxiliou grandemente com suas informações.
Seguiu depois para Santos, onde o vigário Gonçalo Monteiro, na qualidade de ouvidor eclesiástico e a requerimento do padre Luiz da Grã, ordenou uma devassa, afim de apurar as heresias de que era acusado Bolés. Alegava Luiz da Grã que a devassa feita, por ocasião da primeira estada do francês na Capitania vicentina, se perdera. Na segunda depuseram os jesuítas Nóbrega, Anchieta, Ferrão Luiz e alguns moradores, entre os quais José Adorno. Absolvido pelo ouvidor eclesiástico, que não achou nos depoimentos prova de "coisa importante nem que obrigue" e apelou da sentença para o bispo d. Pedro Leitão, embarcou Bolés na nau de Estácio de Sá, que voltava para Portugal. Ao arribar a nau na Baía, a 28 de dezembro de 1560, foi preso, amandado do bispo, e recolhido ao cárcere. Instaurado o auto de culpas, tomaram-se, entre outros, os depoimentos de Estácio de Sá e dos jesuítas Gaspar Pinheiro e Adão Gonçalves. Finalmente, já em meados de 1563, avocada a causa pelo cardeal d. Henrique, Bolés foi remetido para o Reino, na nau Barrileira, de que era "mestre e senhorio" Gonçalo Dias da Ponte. Entre, a 28 de outubro do mesmo ano, ao alcaide do cárcere da Inquisição de Lisboa, respondeu a processo, durante o qual requereu uma justificação dos serviços prestados no Rio de Janeiro. O Tribunal, por acórdão de 12 de agosto de 1564, recebeu-o na Santa Madre Igreja, como pedia, sob condição de abjurar seus "heréticos errores" e condenou-o "em pena e penitência" ao cárcere, "pelo tempo que parecer aos Inquisidores". Recolheu-se então Bolés ao mosteiro de São Domingos, onde não chegou a ficar três meses por lhe ter sido logo permitido cumprir em liberdade o resto da penitência. Mas tarde foi desterrado para a Índia. É, assim, redondamente falso que tenha sido executado em 1567 no Rio de Janeiro, com Anchieta feito seu assistente, espiritual. [Página 162]
XV Ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, Janeiro de 1565[Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 196]
Assim que nós outros em terra, cada dia esperávamos por alguns destes, porque todos vêm aportar áquela fronteira, dos quais bem criamos que trariam mui boa vontade de nos matar, como soubessem quem estávamos em suas terras, e logo aos 23 de maio chegaram duas canôas; em uma delas vinha um grande principal da mesma aldeia em que estávamos, que chamavam Pindobuçú [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 204]
XX De Piratininga, em 15 de novembro de 1579 (302), ao capitão Jerônimo Leitão, em São VicenteDepois que vim até agora andei por estas aldeias negociando gente para a viagem, pouca achei porque toda ela é pouca. E posto que agora com a canoa de Salvador Correa se poderão escusar estes trabalhos, porque ela com ajuda de Nosso Senhor bastava para me levar, todavia bem sei que nem com isso V. M. me ha de deixar ir só; e por isso não quero partir de cá até não aviar a gente, e levá-la comigo, porque se a deixar á sua discrição não sei quando partirão. Antonio de Macedo aviou vinte mancebos com seu irmão João Fernandes os quais partirão terça-feira querendo Deus, mas não pude acabar com eles que fossem senão por o caminho velho da Borda do Campo. E lá hão de esperar por uma canoa.Domingos Luiz estava acabando a igreja. Já lhe dissemos missa nela com muita festa. Logo se parte para o Caraguaba; não achei de sua banda gente que tirar, porque não vão desapercebidos e contudo daqui e dali me parece que se ajuntaram alguns quinze ou dezesseis entre os quais irá Cairobaca, porque o achei meio amotinado contra Domingos Luiz, e trabalhei polo levar para lá por que não se vá pelo caminho de seu irmão. Faço conta de partir terça-feira com eles por água. Ele se ofereceu para a viagem liberalmente. E até sexta ou sábado ser no Cubatão com ajuda de Nosso Senhor. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 268]
Informação do Brasil e de suas Capitanias, 1584
A Baía e Rio de Janeiro são d´El-Rei e cidades e todas mais capitanias são de senhorios e vilas. De Pernambuco que é a primeira capitania, está em oito graus, até São Vicente é a última e está no trópico de Capricórnio quase em 24 graus, pode haver 350 léguas por costa correndo-se de Norte-Sul, Nordeste-Sudoeste, e de São Vicente até a lagoa dos Patos, onde começa a nação dos Carijós que sempre foram da conquista de Castela, pode haver 90 léguas pelo mesmo rumo. Todo êste gentio desta costa, que também se derrama mais de 200 léguas pelo sertão, e os mesmos Carijós que pelo sertão chegam até ás serras do Perú, teem uma mesma língua que é grandíssimo bem para sua conversão. Entre eles pelos matos ha diversas nações de outros bárbaros de diversíssimas línguas a que êstes nativos chamam Tapuias, que quer dizer escravos, porque todos os que não são de sua nação teem por tais e com todos teem guerra. Dêstes Tapuias foi antigamente povoada esta costa, como os nativos afirmam e assim o mostram muitos nomes de muitos lugares que ficaram de suas línguas que ainda agora se usam; mas foram se recolhendo para os matos e muitos deles moram entre os nativos da costa e do sertão. Estes, posto que têm alguma maneira de aldeias e roçarias de mantimentos, é contudo muito menos que os nativos e o principal de sua vida é manterem-se de caça e por isso têm uma natureza tão inquieta que nunca podem estar muito tempo num lugar, que é o principal impedimento para sua conversão, porque alioquin é gente bem inclinada e muitas nações deles não comem carne humana e mostram-se muito amigos dos Portugueses, dizendo que são seus parentes e por meio deles tem pazes com os nativos que tratam com eles, de que antes eram inimigos. Só uma nação destes que chamam Guaimuré, que ao princípio foram amigos dos Portugueses, são agora crudelíssimos inimigos, andam sempre pelos matos e tem posto em grande aperto a capitania de Porto Seguro e Ilhéus, e já quase chegam á Baía. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Página 302]
No mesmo ano de 1549 que chegou o padre Manuel da Nóbrega ao Brasil, mandou o padre Leonardo Nunes e o irmão Diogo Jacome é capitania de São Vicente, que é a última da costa, onde foi recebido dos Portugueses como anjo ou apóstolo de Deus e vivendo eles dantes tão mal ou peor que os Brasis, fizeram tão grande mudança de vida que ainda agora se enxerga naquela terra um nescio quid de mais virtude, devoção e afeição á Companhia que em toda a costa, porque também a vida do padre Leonardo Nunes era mui exemplar e convertia mais com obras que com palavras.
Aqui fizeram os moradores uma casa á Companhia, que foi a segunda que houve no Brasil. Aqui se receberam logo á Companhia o irmão Pedro Correa e o irmão Manuel de Chaves, homens antigos na terra e línguas, e com ajuda deles se começou a ensinar a doutrina na língua do Brasil aos Mamalucos e Mamalucas, filhos dos Portugueses e aos escravizados da terra, que havia muitos, com que começou de haver alguma luz no Brasil pelas muitas pregações que o irmão Correa lhes fazia em sua língua. Aqui finalmente se entendeu mais de propósito na conversão do gentio, o qual, como foi sempre muito amigos dos Portugueses, deram muito deles de boa vontade seus filhos ao Padre para que fossem ensinados, dos quais ajuntou muitos e os batizou, ensinando-os a falar Português, ler e escrever, e sustentou do necessário para o corpo com grandíssimo trabalho seu e dos irmãos até o ano de 1554, que foram passados ao campo de Piratininga onde ha muito mantimento.
Este se pode chamar o primeiro colégio dos catecúmenos que houve no Brasil, o qual o padre Manuel da Nóbrega, indo áquela capitania no ano de 1533, levou por diante, ordenando que fosse confraria do Menino Jesus, juntando-lhe alguns dos moços órfãos que vieram de Portugal no tempo do Padre Domênico e alguns mestiços da terra, onde todos eram doutrinados: e os de Portugal aprendiam a língua da terra.
Esta maneira de confraria se ordenou também na Baía e na capitania do Espirito Santo, mas depois, vindo as Constituições e por ordem de Roma, se desfizeram, e tornou tudo o que tinham á Companhia na qual ficaram muitos destes órfãos que vieram de Portugal, e alguns dos de cá recolhidos que foram e ainda são grandes obreiros nela, ocupando-se na conversão do gentio coma língua que sabem e o sacerdócio que receberam.
No ano de 1554, mudou o padre Manuel da Nóbrega os filhos dos nativos ao campo, a uma povoação nova chamada Piratininga, que os nativos faziam por ordem do mesmo Padre para receberem a fé. Também mandou alguns 12 irmãos para que estudassem gramática e juntamente servissem de intérpretes para os nativos, e assim aqui se começou o estudo da gramática de propósito e a conversão do Brasil, porque naquela aldeia se ajuntaram muitos nativos daquela comarca e tinham doutrina ordinária pela manhã e á tarde e missa aos dias santos, e a primeira se disse no dia da conversão de São Paulo do mesmo ano e se começaram a batizar e casar e viver como cristãos, o qual até aquele tempo não se tinha feito nem na Baía nem em alguma outra parte da costa. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Páginas 315 e 316]
Dos costumes dos Brasis
Desde o rio do Maranhão, que está além de Pernambuco para o Norte, até a terra dos Carijós, que se estende para o Sul desde a alâgoa dos Patos até perto do rio que chamam de Martim Afonso, em que pode haver 800 léguas de costa, em todo o sertão dela que se estenderá com 200 ou 300 léguas, tirando a dos Carijós, que é muito maior e chega até ás serras do Perú, ha uma só língua.
XXXIX - Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584)
Todos estes ordinariamente andam nus, ainda que os Carijós e alguns dali para avante,por ser terra muito fria, usam de peles de veados e outros animais que matam e comem, e as mulheres fazem uns como mantas de algodão que cobrem meio corpo. [Cartas,informações, fragmentos históricos e sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), 1933. Páginas 328 e 329]