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Articulando escalas: Cartografia e conhecimento geográfico da bacia platina (1515-1628), 2018. Tiago Bonato, Universidade Federal do Paraná
2018. Há 6 anos
nos mapas, entre geografia e história. Mapear um rio era também contar sua história. A“caravela pintada no mar”, que “fala da expedição marítima que permitiu a representação dascostas (...) equivale a um descritor do tipo percurso”, dentro da cartografia48. Por fim, os mapasteriam se afastado em definitivo dos percursos, se tornando “o lugar para expor os produtos dosaber”, para mostrar os resultados legíveis:O palco, cena totalizante onde elementos de origem vária são reunidospara formarem o quadro de um “estado” do saber geográfico, afastapara a sua frente ou para trás, como nos bastidores, as operações de queé efeito ou possibilidade. O mapa fica só. As descrições de percursosdesaparecem. É possível expandir essa análise para toda documentação cartográfica do novo mundo.Mais do que simples representações do território, mais ou menos apuradas ou corretas, os mapasde tornaram ferramentas a serviço dos Impérios ibéricos nos primeiros séculos da colonização.O mapeamento dos territórios conquistados dava aos soberanos ibéricas a ficção do saber, mas,mais do que isso, mostrava aos demais europeus o poder exercido pelo império. Além dadescoberta contínua de novos contornos, ilhas, rios e serras, a nomeação dos territórios foiconstante. Afinal, “todo poder é toponímico e instaura a sua ordem de lugares dando nomes”.49* * *

Além dessas, outras escolhas foram feitas durante a pesquisa, como seus limitestemporais e espaciais. Do ponto de vista temporal, a pesquisa compreende, estritamente falando,os anos entre 1515, data da expedição de Sólis que entra pela primeira vez no estuário platino,e 1628, data da chegada de Luís Céspedes Xeria em Assunção para iniciar seu governo. Aprimeira data, mesmo sendo óbvia em relação ao recorte espacial da pesquisa, merece umapontamento: ela mostra a importância da pena e do compasso na conquista americana. O rioda Prata, ou de Sólis, aparece nas fontes – e portanto pode ser efetivamente um objeto depesquisa – a partir do momento em que é registrado pela primeira vez. Não a partir do momento que o primeiro europeu desembarca em suas margens, ou da primeira escaramuça entreeuropeus e indígenas na região, mas sim do momento em que a pena registra, primeiro empalavras, depois em mapas, a grandiosidade do rio que durante algum tempo foi confundidocom o estreito de Magalhães. Seu aparecimento constante e sucessivo, a partir daí, nos mapase descrições do novo continente mostram a importância do registro.

De outro lado, a viagem do governador Luís Céspedes Xeria marca o fim do primeiro século de exploração efetiva na região. Se Alvar Nuñez Cabeça de Vaca já havia atravessado essa porção do continente como governador em meados do quinhentos, no século XVII a época dos aventureiros e conquistadores já havia passado, dando lugar ao tempo dos colonizadores.

O fato de Céspedes, um fidalgo espanhol nomeado como governador do Paraguai seguir viagem por terra desde a costa atlântica até Assunção, em um momento em que as epopeias desvairadas da conquista são apenas episódios isolados, mostra um espaço, senão conquistado do ponto de vista militar – e de fato passariam séculos até que isso fosse possível, conforme mostra a documentação desse período e dos séculos subsequentes – muito mais circulado e conhecido.

É também na parte final da década de 1620 que a documentação mostra o maior assédio por parte dos paulistas às missões jesuítas espanholas da região do Guairá, atual estado do Paraná. O grande êxodo dospadres com milhares de guaranis rumo ao sul pelo rio Paraná, registrado em várias ocasiões pela historiografia se deu nesses anos, quando grandes expedições formadas por paulistas e indígenas assaltaram constantemente as missões, provocando seu abandono.

Esse intervalo de tempo inclui também a União Ibérica, entre 1580 e 1640, momento em que Portugal e suas colônias foram incorporadas ao imenso império filipino.51 Longe de ser um período coeso e homogêneo, a União das coroas foi marcada por inúmeros conflitos e demandas, resolvidos por meio de armas e de negociações.52 Mesmo sob o mesmo soberano, [Página 39]

capítulo foi dividido em quatro partes. A primeira gira em torno da viagem feita pelo governador Luis Céspedes Xeria a caminho do Paraguai. Nomeado em Madri, o fidalgoespanhol viajou por quatro anos até atravessar a América do Sul por terra, desde a costa atlântica pelo camino de San Pablo e chegar em Assunção.

Na segunda parte do capítulo trato dos caminhos e obstáculos da travessia dessa região, atualmente parte dos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, no Brasil e a porção nordeste do Paraguai. Do ponto de vista natural, rios, cachoeiras e grupos indígenas. Do ponto de vista oficial, a proibição da circulação pelo caminho, ordem que foi continuamente desobedecida.

Justamente por isso há uma farta documentação sobre essa circulação. A terceira parte do capítulo trata dos antecedentes dessa travessia. Se no século XVII a frequência das notícias de circulação é maior, os caminhos do interior não eram novidades. Muitos personagens encontrados na documentação quinhentista haviam cruzado esse território no século anterior.

Por fim, uma quarta parte analisa um conjunto de descrições do território platino, grande parte delas ainda não publicadas. A documentação mostra uma prática de espaço e um saber não sabido, para usar os termos de Michel de Certeau, que mostra não apenas a dinâmica da ligação entre os espaços platinos, mas também outra formade conceber o espaço que pouco ou nunca chegou aos mapas da região.

O quarto e último capítulo busca articular as diferentes escalas de observaçãoapresentadas nos capítulos anteriores, oferecendo mais algumas respostas para a questão domapeamento da região. Alguns mapas manuscritos, esquemáticos, quase rascunhos – incluindoum desenhado e enviado pelo governador Céspedes Xeria ao rei durante sua travessia terrestrefluvial – podem ser um importante elo de ligação entre o conhecimento geográfico obtido aorés do chão pelas expedições que cruzaram as terras sul americanas e o conhecimento estático,do alto, gravado nos mapas a serviço do Império. Além disso, analisei dois outros elementosfundamentais da cartografia na região: as fronteiras e o conhecimento indígena presente nosmapas.Por fim, algumas questões técnicas. Optei por traduzir a historiografia utilizada eminglês, espanhol e francês, no corpo do texto, deixando o original nas notas de rodapé. Procedida mesma maneira com as poucas fontes citadas em inglês e francês. Já as fontes em espanhol,grande maioria da documentação citada, decidi não traduzir para manter a estrutura e teor dostrechos. Alterei apenas as fontes manuscritas cujo espanhol seiscentista dificultava a leitura.Nesses casos, depois da trasncrição, modernizei ou traduzi, dependendo do caso, deixandosempre o original transcrito em nota de rodapé. A maior parte dos mapas utilizados nãoapresenta título no interior da carta. Portanto, tanto nas legendas como no corpo do texto, [Página 44]

Se os relatos mostram as entradas e o desejo de chegar às terras ricas em ouro e prata, acartografia acompanha esse processo. Colocando lado a lado os planisférios de Diego Ribeiroe o de Alonso Chaves, datadas de 1525, 1527, dois de 1529 e de c.1535, o alongamento dosrios em direção às serras andinas fica bastante visível, bem como a grande mudança daconfiguração dos rios a partir do planisfério de 1529, possível reflexo das explorações deCaboto (Figura 16). 325A bacia platina na carta de c.1535 (e) tem um traçado bastante similar ao das cartas deRibeiro de 1529 (c e d), incluindo dois detalhes importantes. Primeiro um alongamento maiordo rio à esquerda do Paraguai, em direção ao interior do continente. Segundo, um grande cursofluvial que a partir da costa, na altura do Rio de Janeiro, entra no território até tocar no rioParaná. Mesmo que não tenha sido apropriado nos mapas do restante do século como foram ostributários do Prata, o rio San Sebastien sugere, com mais de um século de antecedência, umcaminho fluvial a partir da costa, próximo ao percorrido pelo governador do Paraguai LuisCéspedes e Xeria, tratado no próximo capítulo. [Página 140]

A configuração dos rios no mapa de Viegas difere em alguns aspectos importantes darepresentação feita por Diego Ribeiro em 1529. Além da toponímia interior, inexistente nomapa português – prática que se repetirá em grande parte dos mapas analisados no decorrer doséculo –, a disposição e tamanho dos rios é visivelmente diferente. No mapa de Ribeiro vemoslogo à entrada do estuário dois rios que vão ao norte, nomeados de rio Negro e rio Huruay.Depois, o “gran rio de Paraná” apresenta uma curvatura que o coloca paralelo a costa, seguindoao norte. À sua esquerda partem dois outros grandes cursos fluviais: um paralelo, ao norte,nomeado de Paraguai; e um perpendicular, orientado totalmente ao oeste, chamado de “Rio delEperi”, certamente o rio Heperín, ou rio barrento, citado por Luis Ramirez em sua carta de 1528. Na carta de Viegas, a primeira diferença que salta aos olhos é o tamanho dos rios, comsua forma bastante alargada. Sobre a configuração dos rios, Jaime Cortesão afirma que “pelaprimeira vez, uma carta geográfica mostra, desaguando no estuário da Prata, o Uruguai, oParaná e o Paraguai”.330 A afirmação só vale para a cartografia portuguesa, apesar do autor nãofazer a ressalva, já que o mapa de Ribeiro já apresenta os três rios desaguando no Prata, emproporções menores. É necessário lembrar que nenhum dos rios do interior é nomeado no mapade Viegas. Para autores da PCM, acompanhando a análise de Jaime Cortesão em sua obra Afundação de São Paulo, de 1955, um dos pontos a salientar do mapa é justamente o traçado dorio da Prata, “distinto do que se vê em cartas anteriores e mais perto da realidade, com o RioParaguai prolongando-se mais para o norte e o Rio Paraná terminando em três braços, um delesaproximando-se do Porto de S. Vicente e representando certamente o Tietê.”331 No trabalhocitado, Jaime Cortesão afirma que o cartógrafo “faz terminar o curso do Paraná, por formaaproximada da realidade, em três afluentes que banham o espaço, hoje correspondente aosEstados de São Paulo e de Minas Gerais”. Além disso, “sobrepondo a carta de Gaspar Viegasao mapa atual do Brasil, pode verificar-se que, nas suas linhas gerais e caracteres de posiçãoem relação ao Paraná e ao litoral, o mais meridional dos afluentes em que este rio terminacoincide com o Anhembi ou Tiete”. Difícil confirmar ou refutar essa hipótese, sem mais dados.Mesmo porque o relato de Pero Lopes indica uma entrada da expedição no Prata apenas até asproximidades da boca do rio Paraná, numa [Articulando escalas: Cartografia e conhecimento georográfico da bacia platina (1515-1628), 2018. Tiago Bonato, Universidade Federal do Paraná. Página 143]

Esses dois mapas – de Ribeiro de 1529 e de Viegas de 1535 – podem ser tomados comomodelos fundamentais desse segundo momento de configuração do espaço platino, em que osprojetos, as ambições e, mais que isso, os desejos dos impérios ibéricos tomam rumosdiferentes. Enquanto portugueses parecem preocupados em explorar sua parte do territórioamericano a partir da costa, os cartógrafos espanhóis parecem querem mostrar o caminhonatural dos rios que levam às serras fabulosas, repletas de outo e prata. Analiso adiante, o quantoessas duas representações marcaram o imaginário cartográfico europeu e permaneceram, compoucas diferenças significativas até o final do século. Antes de concluir esse tópico, é preciso ainda fazer uma última reflexão. Ao final dasegunda parte da Fundação de São Paulo, “Martin Afonso e a primeira solução realista doproblema de Tordesilhas”, Jaime Cortesão conclui que o explorador “ergue-se no átrio dahistória da colonização portuguesa do Brasil, como o homem que relanceou as grandespossibilidades da fundação de Piratininga”. O tom que dota Martin Afonso de uma capacidadevisionária é confirmado logo abaixo: “Toda a história da metrópole da expansão geográficabrasileira estava em germe na consciência geopolítica do fundador”.334 Deixando de lado as questões teleológicas a respeito de um germe geopolítico, importaaqui investigar de onde veio a intuição de Martin Afonso quando da fundação da vila, que defato foi feita em local que se mostrou estratégico para as explorações território adentro. Aresposta, o próprio autor nos dá, quando fala sobre um certo índio escravizado de nomeFrancisco, propriedade de Gonzalo de Acosta, e sua atuação na expedição do adelantadoAlvarez Nuñez:O índio Francisco, cujo nome uma ação casual e generosa, em momento deaflição coletiva, salvou do esquecimento, não passa dum dos muitos eloshistóricos, quase sempre calados ou ignorados pelos cronistas, mas queforneceram os ensinamentos geográficos que dirigiram os pioneiroseuropeus nas suas primeiras e profundas penetrações no interior docontinente.335 Uma década depois, em outra obra seminal, História do Brasil nos Velhos Mapas(1965), Cortesão volta a afirmar a importância dos informantes indígenas. Segundo ele, o“notabilíssimo traçado” da bacia platina no mapa de Viegas de 1534 “se deve em boa parte ainformes indígenas, já que não é possível atribui-lo exclusivamente a explorações de espanhóis [Articulando escalas: Cartografia e conhecimento georográfico da bacia platina (1515-1628), 2018. Tiago Bonato, Universidade Federal do Paraná. Página 146]

Charles Boxer retratou bem a realidade administrativa e jurídica da região. Segundo ele, “o vice-reino espanhol do Peru deve ter sido, seguramente, uma das unidades administrativas mais vastas e mais trabalhosas que o homem já vira diante de si”, uma vez que, no início do século XVII, a jurisdição do vice-rei “abrangia – ou supunha-se abranger – todo o continente sul-americano, desde o Panamá até o Cabo Horn, com exceção do Brasil, das Guianas e da costa do Caribe, correspondente à Venezuela dos dias atuais”.

O controle exercido pela Coroa nesse imenso território, devido a fatores geográficos e de um universo extremamente disperso, “oscilava entre a ação efetiva e uma meramente nominal.427 Do ponto de vista administrativo, o mundo paraguaio fazia parte, até 1617, das Província do Rio da Prata e do Paraguai, subordinadas ao vice-reino do Peru. Juridicamente, essa região estava submetida à audiência de Charcas, fundada em 1561 e responsável pelas regiões do Alto Peru, de Tucumán, do Paraguai e do Rio da Prata428.Em 1617 ocorreu a separação das províncias do Rio da Prata, que passaram a se chamarProvíncia do Rio da Prata, com sede em Buenos Aires, e Província de Guairá ou do Paraguai,com sede em Assunção. Antes da divisão oficial, ainda em fins da década de 1600, pedidos ediscussões frequentes a esse respeito podem ser acompanhadas na documentação. A maior partedeles dizia respeito ao tamanho desmensurado desse unidade admistrativa, principalmente peladificuldade de se chegar de uma vila a outra e ao problema do comércio.429

Em 1610 o vice-rei do Peru, Marques de Montes Claros, escreveu ao rei sugerindo que fosse feita a divisão, de modo que as cidades de Assunção, Villa Rica, Santiago de Jerez e Ciudad Real formassem a nova província do Guairá. O vice-rei sugeriu ainda que a vila de São Paulo fosse comprada pelo soberano espanhol e inserida na província.430

Essas questões mostram a conexão estreita entreos territórios do Paraguai e a costa atlântica do Brasil, por vezes mais efetiva do que com oestuário platino e Buenos Aires.Para deixar ainda mais complexo os labirintos burocráticos da região, o território daProvíncia de Guairá coincidia com uma das mais vastas províncias missioneiras da Companhiade Jesus: a Província do Paraguai. Além do território do atual Paraguai, a província jesuíticaabarcava os territórios das atuais Argentina, Uruguai, uma parte das terras pertencentes hoje aoBrasil e à Bolívia, além do território do Chile, emancipado como vice-província no início doséculo XVII.431Num ambiente atravessado por diversas redes hierárquicas, jurisdições separadas porfronteiras tênues e muitas vezes indefinidas, não espanta o fato de que o governador tenhaconquistado desafetos nos mais diversos grupos sociais. Era grande na região a tensão entre osvecinos e os padres da Companhia, devido principalmente à concentração de indígenas nasgrandes reduções da região. O problema é visível no pedido feito pelo Procurador Geral daCiudad Real ao governador, logo em sua chegada ao Guairá. O procurador solicitava queCéspedes fizesse cumprir as ordenanças reais, “mandando aos padres doutrinantes daCompanhia de Jesus que na paga das mitas não coloquem estorvo”. Segundo ele,desde que entraram nas reduções desta província [os padres] nãoquerem nem tem querido dar mais do que eles gostam, que de dois mile quinhentos índios que há nas reduções que pertencem aos vecinos (...)apenas vem cinquenta e quatro índios de mita, de onde poderiam sairmais de trezentos432 [Articulando escalas: Cartografia e conhecimento georográfico da bacia platina (1515-1628), 2018. Tiago Bonato, Universidade Federal do Paraná. Páginas 210 e 211]

livro é Salvador de Sá e Benevides, filho de uma das famílias fundadoras do Rio de Janeiro eque teria uma importante participação nos eventos militares da restauração portuguesa emmeados do século. A convergência das trajetórias de Céspedes e dos Sá e Benevides acontecequando o espanhol se encontra no Rio de Janeiro, ainda em trânsito para sua jurisdição noParaguai.Céspedes demorou alguns anos, entretanto, para chegar à capitania do Rio de Janeiro.Depois de cruzar o atlântico, o governador aguardou na Bahia de Todos os Santos um navioque tomasse o caminho do sul, já que seu objetivo era chegar até o porto de Buenos Aires, noestuário do Prata, e de lá seguir viagem até Assunção. Em Salvador, Céspedes foi bem recebidopelo governador D. Francisco de Moura e por seu sucessor, Diogo Luis de Oliveira. Pelo menosaté recusar uma pequena embarcação que Oliveira conseguiu, fretada por outra espanhola, DonaAna de Avendano, que rumava para Buenos Aires. Céspedes recusou a oferta por considerar opaquete tão pequeno que não poderia aguentar a bagagem e a tripulação de Dona Ana – baús,malas, cinquenta negros, mais quinze passageiros e seus criados – muito menos suas própriascoisas. Depois desse episódio, queixou-se ao rei da má vontade do governador Oliveira emajudá-lo.437 Outra oportunidade de deixar a Bahia foi frustrada pelo ataque de holandeses aoporto. Entre as embarcações destruídas pelos corsários estava aquela em que Céspedes seguiriaviagem oito dias depois, para “las partes mais cerca del rio de la plata”.438

Quase dois anos depois de atravessar o oceano, em janeiro de 1628, Céspedes conseguiuenfim embarcar para o Rio de Janeiro. Os imprevistos continuaram, entretanto, com contornos mais prósperos. Primeiro, Céspedes recebeu a proposta de casamento dos Sá.

Na véspera da partida, Martim de Sá e seu filho, Salvador, sugerem que Céspedes deveria casar-se com Dona Vitória de Sá, irmã de Martim e tia de Salvador e “o arruinado fidalgo só podia aceitar contente esta oferta de casamento com uma herdeira bela e rica que, além de sua alta jerarquia e nascimento, recomendava-se por um dote de 40.000 ducados em caixa, além de grandes plantações de cana de açúcar e extensas propriedades territoriais”439. Em sua correspondência, o próprio Céspedes relata sobre a proposta inesperada:

Se ofrecio que estos señores aficionados de mi justo agradecimiento tuvieron por bien de estimar mi persona para (...) esposso de una hija de el capitan gonçalo correa de sa sobrina del governador y poblador que fue desta tierra y assi teniendome por feliz y estimado tan buena suerte acepte el favor por pagar no resistiendo a su gusto las mercedes que tenia recebidas si bien tengo por cierto haver sido milagroso este matrimonio pues haviendo tenido impedimentos tan forçossos y passado los trabajos que tendo escritos (...) quiso nuestro señor premiar la paciencia con que los he ofrecido a su divina magestad dandome por compañera una señora tan principal como hermosa y virtuossa440.

Do ponto de vista dos Sá, os interesses no casamento eram visíveis. José Vilardaga, ao estudar as conexões entre o mundo paulista e o paraguaio concorda que o matrimônio consolidava “as redes de contatos desta influente família fluminense”, que já detinha relações, aliados e privilégios em Angola, Buenos Aires e São Paulo. A união feita com Céspedes fazia com que a ponta paraguaia e de Tucumã fosse amarrada, fechando assim “sua inserção no amplo circuito de contrabando, das trocas no mercado regional platino e vicentino, dos engenhos de açúcar, do ouro paulista, do fornecimento de escravos negros e do apresamento de cativos indígenas. Um empreendimento diversificado e articulado”.441

Além do inesperado casamento, Céspedes recebeu ampla ajuda no Rio de Janeiro:

Viendo esto y el no haver como tengo dicho otra embarcacion fue de parecer el governador Martin de sa que me fuese por tierra determineme de seguir su consejo diome todo lo necesario para mi avio canoas negros e infinitos regalos pero el mayor y de mas estima fue a su hermano el capitan goncalo correa de sá para que fuese haciendome merced todo el camino y allanar las dificuldades del”442 [Páginas 213 e 214]



O conselho de seguir caminho por terra até São Vicente – e de lá ao Paraguai – veio logo após “outra má vontade inexplicável e gratuita do Destino”, para retomar a expressão de Taunay. Mais uma vez o fidalgo espanhol havia conseguido uma embarcação, dessa vez por intermédio de Martin de Sá.

Era a única barca que se encontrava no porto e, mesmo estando carregada, o governador ordenou que fosse descarregada para levar Céspedes a Buenos Aires. Quando o barco estava pronto para partir, já com as bagagens de Céspedes a bordo, as autoridades locais, por ordem do governador geral Diego Luis Oliveira – que já tinha entrado em atrito com Céspedes em Salvador – prenderam o capitão do navio, por “cantidad de derechos que havia usurpado a la Real hacienda”443.

Segundo Céspedes, Martin de Sá ainda tentou de todas as maneiras fazer com que a embarcação fosse liberada, sem sucesso. Diante disso, é lícito pensar que se tratava de mais um empreendimento comercial dos Sá, rumo ao estuário do Prata.

A solução foi seguir daí à capitania de São Paulo, caminho feito ora por terra – onde acomitiva se perdeu durante dias -, ora em pequenas embarcações pela costa. Em São Vicente, foi ainda necessário vencer a verticalidade da densa floresta atlântica da Serra do Mar, “trabajossimo camino por donde no pueden andar cavalgaduras y los hombres para haver de passarle a de ser en hamacas en hombros de los naturales de la tierra”. Só então é que o governador pôde chegar à vila de São Paulo de Piratininga, já no planalto, onde iniciou nova etapa de sua aventura, a que mais interessa nesse estudo.

No povoado, Céspedes solicitou permissão às autoridades locais para percorrer o caminho do Paraguai, camino de San Pablo ou simplesmente camino proibido, via terrestre-fluvial que ligava a vila de São Paulo aos sertões do Guayrá e à Província do Paraguai. A escolha do caminho fez com que se multiplicassem nas fontes e na historiografia posterior as polêmicas e ambiguidades que cercam a figura do governador.

Affonso de Taunay, ao escrever sobre os bandeirantes paulistas, acusa a ingratidão de Céspedes ao falar dos paulistas ao rei Felipe III,445 como gente que praticava “as mayores crueldades, trayciones e vellaquerias.446

A despeito dessas impressões, o governador obteve aval do capitão geral de Santos, Álvaro Luis do Valle e do ouvidor da capitania, Amador Bueno para seguir pelo caminho proibido e incumbiu o famoso sertanista Manoel Preto “para que el con seis indios solamente sin en su compañia llevar persona blanca ninguna lleve al dicho señor governador por el rio abajo en canoas sin salir fuera del camino so pena que saliendo le hagan traydor a la Corona de su magestad”447. 3.2 – “Por tierra y a pie, por grandes corrientes y saltos”: o caminho de São Paulo ao Paraguai

No início da década de 1940, Alice Piffer Canabrava publicou sua tese de doutorado, feita na Universidade de São Paulo sob a orientação de Affonso de Taunay. Na pesquisa realizada a partir de uma abordagem muito original e com base em um sólido corpusdocumental, a autora demonstrou a importância do comércio português no estuário da Prata.

Tratava-se, nesse caso, de um comércio ilegal ou contrabando, visto que funcionava à revelia das ordens reais e dos monopólios comerciais estabelecidos pela coroa de Castela. As mercadorias europeias que circulavam oficialmente na colônia deveriam ser transportadas da Espanha até o mar das Caraíbas, onde os portos de Nombre de Dios e, depois de 1593, Porto Belo, ambos na região do istmo panamenho, funcionavam como porta de entrada do comércio. Eram nessas localidades, segundo a autora, que ocorriam “as famosas feiras em torno das quais gravitava toda população comerciante da América do Sul”.448

Dali as mercadorias eramtransportadas por vias terrestres e fluviais – rotas difíceis e perigosas, segunda a documentaçãodo período – até a povoação de Panamá. Já na costa oeste do continente, navios da frota doPacífico levavam os produtos até o porto de Callao; de lá rumavam a Lima, capital do vicereino do Peru; depois a Arica, porto de acesso a Vila Imperial de Potosí, a mais de quatro mil [Páginas 215 e 216]

Algumas décadas depois, em 1622, o procurador geral das Províncias do Rio da Prata eParaguai, Manuel de Frias, escreveu ao rei tratando das vias de comércio entre Brasil e Peru.Segundo ele, havia dois caminhos por onde chega a mercadoria,um por mar e outro por terra; essa última é continuada como Castela eAragão, a qual continuação se concede, mas não o exemplo, que seriamais próprio dizer como Castela e Noruega, pois não é daqui até lá ocaminho mais difícil e menos trilhado que do Brasil ao Paraguai porterra452

Apesar da dificuldade apontada por Frias, fato é que o caminho entre São Paulo eParaguai foi intensamente utilizado. José Carlos Viladargada, ao analisar o transito de pessoas pela região, encontrou referências a cento e oito pessoas que teriam atravessado o caminho, a grande maioria no século XVI. Na metade do século encontramos uma das primeiras referências a ele. Dona Mência Calderon, viúva de Juan de Sanabria, nomeado governador do Rio da Prata, escrevia de Assunção que se podia ir de São Vicente até ali “por cierto camiño nuevo que se habia descubierto”. [3 apud HOLANDA, Sérgio Buarque. Expansão Paulista em fins do século XVI e princípio do século XVII In: Publicações do Instituto de Administração. n.29, pp.3-23, junho de 1948, p.12.]

Aliás, foi para impedir essa comunicação entre castelhanos do Paraguaie os paulistas que Tomé de Souza, quando esteve em São Vicente ordenou o fechamento docaminho e a fundação de uma vila no campo, serra acima para servir de “porta do sertão ecaminho forçado dos viadantes”. A vila, Santo André, seria um posto de vigilânciapermanente.454

Em uma de suas relações ao Consejo de Indias, provavelmente do final damesma década de 1550, o piloto Juan Sanchez de Viscaya conta que, estando passando oinverno no porto de São Francisco, nas proximidades da Ilha de Santa Catarina, depois datravessia do Atlântico, uma comitiva de espanhóis foi até São Vicente a tratar com osportugueses.

De lá o próprio Tomé de Souza enviou uma caravela para buscar os demais, naqual veio um padre que fez “muchas promessas”, entre as quais “favoreceria para yrmos portierra ao Paraguai”. Chegando em São Vicente, entretanto, descobriram que "dexo mandadoTomé de Souza governador del rey de Portugal que no dexasen pasar a ninguno español por tierra”.455 Das intenções do governador em mandar buscar os espanhóis nada mais sabemos.Segundo Sérgio Buarque, a proibição foi especialmente rigorosa nos anos 1550 e surtiu efeito,uma vez que “durante o meio século que se seguiu à viagem de Salazar e dos Góis [1555], ficoude todo esquecido, segundo parece, o caminho por terra à Assunção”.456Com as dificuldades das rotas oficiais de comércio, via mar das Caraíbas e Peru, por umlado, e a facilidade de comércio pela costa atlântica e pelo interior da terra, a despeito dasproibições, por outro, foram traçadas as linhas definidoras de um comércio intercolonialregular, intenso e ilegal. O trabalho de Canabrava, pioneiro, trouxe à tona a importância dessastrocas comerciais para o desenvolvimento e sobrevivência da região, além de mostrar, emnúmeros, o comércio interno efetuado que escapava aos olhos da Coroa. Mesmo muito fecunda,a perspectiva de análise não encontrou muitos seguidores no período e permaneceu esquecidapela historiografia, sendo retomada somente décadas mais tarde, com o acirramento do debatehistoriográfico acerca do comércio interno e grau de autonomia das colônias americanas emrelação às potências europeias.457Na metade do século, Charles Boxer, em estudo já mencionado, deu uma contribuiçãoimportante para o estudo desse espaço, mostrando as conexões entre a passagem do governadorpor terras sul-americanas e as rotas comerciais que ligavam a costa do atlântico ao mundoparaguaio e às minas de Potosí. As tentativas de ligação entre o Paraguai e o alto Peru,especificamente Potosí, já haviam sido demonstradas por Canabrava. Os rios da bacia tiverampapel crucial nesse contexto, visto que o principal caminho para se aproximar da região da [Articulando escalas: Cartografia e conhecimento georográfico da bacia platina (1515-1628), 2018. Tiago Bonato, Universidade Federal do Paraná. Páginas 218 e 219]

cordilheira eram os rios Pilcomayo, Bermejo ou Salado, todos na margem direita do rioParaná.458

A importância da região no comércio continental já foi bastante atestada pelahistoriografia. A circulação de pessoas envolvidas com as redes comerciais pelos caminhosterrestres e fluviais torna esse um espaço profícuo para entender os processos de conhecimento e concepção geográfica. Não era nenhuma novidade, na primeira metade do século XVII, a considerável circulação de pessoas naquelas paragens. Em carta de 02 de novembro de 1628 o padre Joseph Domenes alertou o novo governador que “estan estos caminos infestados destos portugueses”.459

Logo que saiu da vila de São Paulo, Céspedes tomou, portanto, um caminho conhecido. Seu relato desse trecho da viagem é sucinto:

caminhei quarenta léguas por terra e a pé por ser caminho que não se pode andar de outra maneira, com infinitos trabalhos, de chuvas e rios que passamos. Cheguei a um [rio] onde estive um mês fazendo embarcações de troncos grandíssimos que tinham oito braças de circunferência.460

O rio em que a comitiva passou um mês fazendo as embarcações era o rio Anhembi, atual Tietê. Foi necessário contornar um grande salto, “por nombre cachuera que cae de Altissimos riscos y peñascos”461 antes de chegar às suas margens. Céspedes batizou o porto de embarque com o nome de Nuestra Señora de Atocha. A partir desse ponto a viagem só deixou de ser fluvial nas muitas corredeiras e cachoeiras Anhembi abaixo. As canoas construídas [Página 220]

de Boxer nas conexões entre Céspedes, os Sá e Benevides e o mundo peruano. Dessa forma, muito mais que uma simples escolha fortuita, o caminho feito pelo governador tentava amarrar as duas pontas de um cobiçado circuito comercial, desde a vila imperial de Potosí e toda sua movimentação de pessoas e prata, até a costa do atlântico, ponto de partida para se cruzar o oceano.

A companhia de viagem de Céspedes também não contribuiu para sua imagem frente aos jesuítas no mundo guairenho: as comitivas bandeirantes que chegaram na região junto como governador, e as sucessivas orlas que continuaram a chegar, foram um dos grandesempecilhos para a administração de Céspedes, logo deposto do cargo de governador, depois de intensas disputas com os jesuítas e com os vecinos espanhóis.

A questão do caminho novo do salto foi apenas um dos elementos de animosidade entre a ele e os padres da Companhia. Mais importante aqui é o papel daquele passo, como estratégico para aqueles que vinham da costa atlântica em direção aos caminhos que seguiam ao mundo peruano. Sobre esses caminhos, não é possível esquecer, entretanto, que a escolha por trilhar o interior do território já havia sido feita inúmeras vezes. Havia já quase um século que soldados, conquistadores e funcionários reais a serviço das Coroas ibéricas atravessaram saltos e palmilharam antigas trilhas e caminhos indígenas nas matas sul americanas.

3.2.2 – “Precipitam suas águas, como se caíssem do céu”: a visão europeia dos saltos doParaguaiNa virada do século XX, em artigo publicado na Revista do Instituto Histórico eGeográfico de São Paulo, Eduardo Prado diferenciava as três classes de cachoeiras bemdistinguidas nos roteiros antigos:aquellas em que era preciso desembarcar toda a carga e varar ou arrastaras canôas por terra; aquellas em que as canôas podiam passar, masdescarregadas, sendo a carga levada por terra; e, finalmente, aquellasem que as canôas podiam passar, mas só com meia carga.484 [Página 228]

famoso de todos, que ligava a costa do Brasil ao Paraguai, chamado de Peabiru ou Piabiyu, ou ainda Caminho de São Tomé ou do Pay Zumé.522 Aqui, uma vez mais encontramos uma enxurrada de referências, muitas vezes cruzadas, entre caminhos indígenas reais percorrido por europeus e o mito do santo evangelizador que o teria construído. A referência mais famosa ao caminho, ligando-o ao santo e às suas pegadas é do padre Montoya, escrita em 1639:

É fama constante em todo o Brasil entre os moradores portugueses eentre os naturais que habitam toda a Terra Firme que o santo apóstolocomeçou a caminhar por terra desde a ilha de Santos, situado ao sul, naqual hoje se vem rastros que manifestam este princípio de caminho ourastro, nas pegadas que o santo apóstolo deixou impressas em umagrande pedra que está no final da praia, onde desembarcou em frente abarra de São Vicente, que por testemunho público se veem hoje, menosde um quarto de légua do povoado. Eu não as vi, mas 200 léguas dessacosta terra adentro, vimos meus companheiros e eu um caminho que tem oito palmos de largura e nesse espaço nasce uma pequena erva e nos dois lados do caminho cresce até quase meia vara, e ainda que murcha a palha se queimem aqueles campos, sempre nasce a erva a este modo. Corre este caminho por toda aquela terra e me tem certificado alguns portugueses que corre sem interrupção desde o Brasil e que comumente o chamam o caminho de Santo Tomé e temos tido a mesma relação dos índios de nossa espiritual conquista. 523

Ainda hoje a questão dos caminhos indígenas interligando regiões longínquas da porção sul do continente americano gera muita discussão entre historiadores, geógrafos e arqueólogos. Existem muitas pesquisas que tentam desvendar os supostos mistérios da milenar trilha, chamada Peabiru, que partiria da costa atlântica brasileira, chegando até a costa do Pacífico, no Peru. Durante algum tempo a construção do caminho chegou a ser considerada uma obra incaica. Além dos incas e de São Tomé, outras hipóteses atribuem aos indígenas do tronco macro Jê a construção, como forma de ligar uma tribo à outra. Alguns resquícios do caminho foram encontrados por arqueólogos em cidades do interior do estado do Paraná. De qualquer forma, se a existência do caminho, ou de caminhos, é evidente, sua construção, continuidade e utilização ainda geram discussão.524

Do ponto de vista da história, a documentação é vestigial e bastante confusa a esse respeito. Ao que tudo indica, existia a possibilidade de se ir por terra da costa atlântica até os contrafortes andinos e o Peru. Entretanto, não me parece possível afirmar com segurança, a partir da leitura documental, a existência de um grande e único caminho que ligasse esses territórios. Ao que parece os caminhos eram muitos. Não há dúvidas, porem, de que a penetração e a ocupação do território só foram possíveis com a utilização desses e a partir de alianças com os grupos ameríndios.

3.3.2 – Dos muitos caminhos percorridosEm meados do século XVI, Diogo Nunes escreveu a d. João uma carta descrevendo suaviagem ao Peru e ao interior do continente, na região do rio Amazonas. A partir dali, segundoele, era possível “ir a São Vicente atravessando pelas cabeceiras do Brasil, tudo por terra firme”.Mesmo com a ressalva de que “há muita terra que andar”, a travessia do continente parecia serrealizável.525 A carta traz também uma descrição da terra, registrando a imprecisão geográficacomum nas primeiras expedições território adentro, notadamente o itinerário dos grandes rios.Segundo Nunes, Esta terra está entre o rio da Prata e o Brasil, pela terra adentro por estaterra vem o rio grande das Amazonas e na paragem desta terra tem esterio muitas ilhas no rio e bem povoadas de gente bem luzida e da outrabanda do rio há muita povoação da mesma gente de maneira que de umabanda e de outra está bem povoada526A grande quantidade de povoações indígenas era uma constante em toda a região e éreforçada continuamente na documentação. Quando trata dos povos que encontrou, DiogoNunes fala da abundância de peixes que obtinham no rio, e que “eles levam a vender pelosertão”. Nesse comércio, “eles têm contratações com outros índios” e “vão os caminhos muitoabertos de muito seguidos porque corre muita gente por eles”.527

Outro indício dos caminhos aparece na carta do irmão Antônio Rodrigues aos jesuítasde Coimbra, escrita em São Vicente em maio de 1533. Rodrigues tem uma trajetória peculiarpelo continente americano. Depois de atravessar o oceano como soldado da armada de PedroMendoza com destino ao Rio da Prata em 1534, ele aparece como um dos possíveis soldadosdesertores que acompanharam o bávaro Ulrico Schmidl quando foi de Assunção a São Vicentepor terra, para embarcar com destino a Europa, no ano de 1553.528 A carta de Antônio Rodrigues deve ser tomada também como uma espécie de expiação, na qual ele conta sobre seu processo de conversão. O início da carta marca o tom que acompanha sua narrativa:

Ainda que até agora, com muitos perigos, andei navegando por este mardo sul, onde há tantas tormentas, que poucos navios escapam, contudoconfesso, Caríssimos Irmãos, até agora ter navegado por outro mar maisperigoso, que é o deste mundo e suas vaidades, onde tantos se perdem,do qual Nosso Senhor me livrou por meio do Padre Manuel da Nobrega(...) vendo quanto tempo e com quantos perigos tinha sido soldado nomundo, com tão pouco proveito, e que entrando nela entrava em melhor batalha, que é de almas, e com tão grande prêmio, que é a remuneraçãoeterna529

O soldado arrependido conta na carta sobre sua ida do Brasil ao Peru e de outros episódios marcantes da conquista e povoação do rio da Prata, que aparecem também em outras fontes coevas. Não deixa de ser interessante o fato de Rodrigues falar de Brasil, uma vez que, pela descrição, sabemos que sua expedição partiu do Paraguai com destino ao Peru. Isso pode significar uma ideia de unidade territorial do ponto de vista jesuíta. De qualquer forma, no final da carta o autor conta que deixou aquela terra do Paraguai e veio a São Vicente, “que são perto de 360 léguas, por uns gentios chamados Topinaquinas”.530

Depois disso, já tratando dos projetos de conversão indígena, Rodrigues afirma que “já o caminho está feito daqui ao Perú, e a gente muito aparelhada para receber a nossa santa fé”. Como exemplo bem sucedido, cita dois freis franciscanos que, alguns anos antes “entraram cerca de 50 léguas daqui desta Capitania, pela terra adentro, caminho dos Carijós, e a uma aldeia deles chamaram Província de Jesus, onde fizeram admirável fruto”.531 Não é difícil perceber, através do trecho citado, que a circulação de indígenas e jesuítas era frequente pela terra adentro. Da mesma forma é visível que os caminhos percorridos eram indígenas, o caminho dos carijós, pelo qual os referidos freisentraram.

Entradas em outras regiões da América portuguesa corroboram o fato de que diversoscaminhos cortavam o interior do continente. Na virada do século, uma expedição saiu da vila de São Paulo com destino aos sertões ao norte da capitania. Apesar das poucas referências a ela na documentação, parece ter sido uma das entradas realizadas a mando do governador D. Francisco de Souza, em busca da serra de Sabarabuçu, supostamente rica em metais e minérios [Articulando escalas: Cartografia e conhecimento georográfico da bacia platina (1515-1628), 2018. Tiago Bonato, Universidade Federal do Paraná. Páginas 241, 242, 243 e 244]

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