Mexericos de um peito azedo: os capítulos de Gabriel Soares de Sousa, 07.2013. Gabriela Azevedo
julho de 2013. Há 11 anos
Importantes quadros da Companhia de Jesus reunidos em Salvador em 1592 foram unanimes em negar todas as acusações contra eles encaminhadas a Felipe II pelo colonizador português Gabriel Soares de Sousa. Pronunciaram-se escandalizados de “tão baixas palavras, e torpes juízos”, identificando o “quão azedo” se encontrava “o peito” donde saíam (SOUSA, 1942:372).
A expressão “peito azedo” que pode ser traduzida como “coração amargurado”, manifesta um dos lados da sua defesa, a bem dizer, o âmbito pessoal e íntimo com o qual pretenderam minimizar as denúncias do explorador quinhentista. Séculos mais tarde, Antônio Serafim Leite classificou os mesmos Capítulos escritos pelo senhor de engenhos contra os inacianos que atuavam na América portuguesa como “mexericos de soalheiro” (SOUSA, 1942:344).
De fato tanto as acusações quanto as réplicas tratam muitas vezes de pormenores como a quantidade de porcos, vacas, galinhas, currais e lançam mão de queixas, desavenças e injúrias tão próprias ao cotidiano que parecem de menor valor. Este diz que me disse, cheio de picuinhas é, no entanto, extremamente comum neste tipo de escrita assim como sua desqualificação historiográfica.
Como destacou num artigo recente a historiadora Mary Del Priore (2013:22), mexericar era uma forma de distração tão corriqueira que chegou a obter um item específico no Livro V das Ordenações Filipinas do século XVII:
Por se evitarem os inconvenientes que dos mexericos nascem, mandamos que se alguma pessoa disser à outra que outrem disse mal dele, haja a mesma pena, assim cível como crime que mereceria, se ele mesmo lhe dissesse aquelas palavras que diz que o outro terceiro dele disse, posto que queira provar que o outro o disse (Lara,1999:267).
Os Capítulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao SR.D. Cristóvam de Moura contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil com umas breves respostas destes mesmos padres que deles foram avisados por um seu parente a quem os ele mostrou retratam estes fuxicos de uma vivência próxima e tensa entre os moradores do primeiro século do Brasil colonial. Aproxima-se de uma subliteratura, pelo seu gênero indefinido, seu teor panfletário, polemico e conjuntural.
Por outro lado, testemunha uma história não tão interessante do ponto de vista de um retrato apologético e edificante seja da Igreja, seja da colonização brasileira, ou de ambas simultaneamente. Esta crônica quase jornalística envolvendo os conflitos entre aqueles que a princípio estariam do mesmo lado no processo colonizador, colonos portugueses e jesuítas, é por si só interessante, mas permite principalmente uma investigação que se abre como um leque para temáticas referenciais tanto da história colonial e da historiografia brasileira quanto da renovada história da Igreja e das religiosidades.
Os Capítulos secretos
Após dezessete anos vivendo na América portuguesa, transitando entre o centro administrativo, Salvador, onde atuara como camarista e o Recôncavo, onde possuía terras, circulando nas áreas de Jaguaribe, São Gonçalo e Nazaré, o português Gabriel Soares de Sousa retornou a corte, então sob o período da União Ibérica.
Seu destino final era a Espanha, como declara em seu testamento lavrado em agosto de 1584, na Bahia (SOUSA, 1974:301). Embarcou numa grande nau carregada de açucares que ancorou no porto de Pernambuco, parada de abastecimento de água e víveres, graças ao conhecimento e orientação do navegador Pedro Sarmiento de Gamboa. Este, vindo numa embarcação carregada com mil quintais de pau brasil do Rio de Janeiro para buscar lenha, víveres e roupas para uma viagem de retorno ao Estreito de Magalhães, teve que lançar mais de trezentos quintais de pau no mar por falta de fundo. Sem outro piloto que se atrevesse, Sarmiento sondou os fundos num batel e acenando com uma bandeira permitiu que a sua nau ancorasse sem perigo. Atrás dela vinha a que se encontrava Gabriel Soares (MENDONZA, 1866:402).
Não se sabe a data exata em que desembarcou na corte nem os caminhos que percorreu no tempo em que esteve pleiteando autorização oficial, garantias, privilégios e recursos humanos e materiais para realizar uma expedição inédita de desbravamento, reconhecimento e procura de metais preciosos nas cabeceiras do rio São Francisco.
Para alcançar seu intento ofereceu a Felipe II um roteiro completo das terras brasileiras, um memorial da principal e mais lucrativa província do Brasil, que juntos formam o conhecido Tratado descritivo do Brasil em 1587, e um pequeno relatório dos conflitos envolvendo desde os pequenos moradores às principais autoridades coloniais com diversos membros da Ordem inaciana.
Apresentou ainda uma Relação do Descobrimento das Esmeraldas, precioso itinerário entregue a ele por seu falecido irmão, o explorador João Coelho de Sousa, até hoje não encontrado.
De acordo com Gabriel Soares, os breves apontamentos contra os padres jesuítas, diferentemente dos seus demais escritos espontaneamente elaborados, fora realizado por solicitação do próprio monarca representando um grande risco para sua difamação na Bahia, caso chegasse ao conhecimento dos mesmos.
Soares não só deixa claro sua preocupação como ainda indica o sigilo necessário, recomendando “o resguardo que convem” (SOUSA, 1942: 347). A proposta era comum, Felipe II se valia de uma série de relatórios requeridos aos seus súditos de diversas procedências para manter seus domínios sob vigilância, já haviaordenado em 1586 até mesmo a um respeitável membro da Companhia de Jesus, o padre italiano Alessandro Valigniano, a elaboração de um documento igualmente secreto sobre as fontes de rendimento dos inacianos na Índia (CARDIM, 2001: 290).
No caso dos Capítulos, o perigo não se referia aos arcana imperii, os segredos de Estado, mas ao procedimento tão ou mais arriscado de denunciar a atuação da já poderosa Companhia de Jesus especialmente num momento crítico de recrudescimento da Inquisição na Ibéria cujo alcance chegaria quase simultaneamente ao próprio retorno de Soares ao Brasil, em 1591.
O texto, formado por quarenta e quatro itens denominados Informações, do punho de Soares, e subsequentes Respostas, dos jesuítas, principia com uma memorialística na qual o explorador reconhece os primeiros anos de ação da Companhia no Brasil como exemplares, de convivência harmoniosa, auxílio mútuo entre moradores e religiosos, chegando os últimos a serem adorados “como a deuses na terra” (1942:348).
A situação muda, segundo o colono, ao se encerrar o governo do Pe. Provincial Luis da Grã e ter início a sua sucessão por Ignácio Tholosa.1 Ao chegar com novos religiosos e encontrarem a Companhia bem servida defazendas, mantimentos, cinco aldeamentos e fábrica própria, entre outras formas de rendimento, “entenderam que não tinham necessidade de ninguém” e passaram a agir de acordo com “os seus proveitos”, demarcando terras, fazendo “casas de prazer para sua recreação” e solicitando provisões do rei com grandes isenções (1942:350). O relato a partir daí aumenta progressivamente o nível das críticas, citando brigas e contendas que envolvem desde a gente pobre e simples até os mais importantes da terra. Entre os grandes estão o [Mexericos de um peito azedo: os capítulos de Gabriel Soares de Sousa, 07.2013. Gabriela Azevedo. Páginas 1, 2 e 3]
200 índios flecheiros retirados (provavelmente a contragosto) das aldeias dos padres jesuítas, na organização dos brancos voluntários e em cinquenta quintais de caroços de algodão da Fazenda para serem revertidos em armas. Alguns capitães desistiram da empreitada, mas Soares partiu finalmente da povoação de Graciosa, localizada dentro de um dos seus engenhos.
A conquista não teve êxito, faleceu próximo ao local em que havia sucumbido antes seu irmão em circunstâncias controversas. O seu mestre de campo, Julião da Costa, sobrevivente, retornou com as notícias trágicas ao governador e com seu itinerário.
Seus ossos foram depois transladados por seu sobrinho indireto Bernardo Ribeiro ao Mosteiro de São Bento, onde foi sepultado sob uma lápide com os dizeres econômicos que postulara atualmente localizada no claustro. Outros Eldoradomanícos que vieram após ele procuraram obter as mesmas prerrogativas para seus empreendimentos, como o próprio governador Francisco de Sousa, Bento Maciel Parente e Belchior Dias Moréia.2
Em algum momento entre o seu retorno e fim da sua expedição, o que temia veio a acontecer: o texto que oferecera na corte chegou ao conhecimento dos padres jesuítas. Contudo não chegou a sofrer qualquer consequência direta ou indiretamente, estava certamente muito bem amparado por concessões régias além de envolvido em seu empreendimento tão custoso do qual não retornaria. Não podemos deixar de considerar o fato do primeiro visitador do Santo Ofício em terras brasileiras mancomunar-se com os “homens bons” do lugar, como observou Ronaldo Vainfas (1997:8). As suas acusações não chegam a corresponder à lista dos delitos expostos no Edito de fé e Monitório publicados em Salvador em 28 de julho de 1591, concedendo o período da graça por trinta dias aos seus moradores e arredores. No entanto, como notou Vainfas, a chegada da Primeira visitação do Santo Ofício provocou uma onda de medo, destruiu famílias e amizades. Coincidentemente, o sobrinho indireto de Gabriel Soares foi um dos primeiros delatados. [Mexericos de um peito azedo: os capítulos de Gabriel Soares de Sousa, 07.2013. Gabriela Azevedo. Página 7]
A Inquisição, a família e suspeitas
No dia 29 de julho de 1591, Bernardo Ribeiro foi denunciado pelo vigário da Igreja de Nossa Senhora do Socorro de Tasuapina, o padre João Fernandez, por afirmar após se recuperar de uma doença grave que a fé sem obras bastava para a salvação da alma. Apesar da aparente simplicidade do crime frente a outros como as idolatrias e as sodomias ouvidas pelo visitador e mais conhecidas por terem sido bem exploradas pela historiografia brasileira, Ribeiro incorria num grave delito, determinante no momento de cisão da Igreja Católica. Filho de Maria de Argolo e de Antonio Ribeiro, provedor da fazenda, nascido na Bahia, solteiro, tinha cerca de trinta anos naquele tempo e, segundo consta, era “magro”, “trigueiro” e um tanto altivo. O processo se prolongou por quase dois anos e contém oitenta e dois fólios.3 Iniciou-se no mesmo momento da preparação da viagem de Soares e só foi concluído em 19 de dezembro de 1592, mais de seis meses após o seu falecimento.
Ao ser chamado em 11 de novembro de 1592 à Mesa de Consciência e inquirido como era de praxe sobre a sua genealogia, Ribeiro informou não ter conhecido os avós paternos. Os maternos eram Rodrigo de Argolo, nobre castelhano que chegara à Bahia em 1549 com o primeiro governador geral, Tomé de Sousa, e Joana Barbosa. Possuía tios por parte do pai moradores de Viseu que não sabia os nomes, um irmão estudante em Coimbra e duas irmãs moradoras de Jaguaribe. Joana de Argolo, viúva de Diogo Correa de Sande, senhor de um engenho vizinho ao de Gabriel Soares e de Fernão Cabral de Ataíde, famoso pela Santidade e Helena de Argolo, casada então com Manuel de Sá Souto Maior. Na mesma localidade moravam seus tios maternos, Paulo de Argolo e Ana, “mulher que fora de Gabriel Soares”. Ribeiro recebeu uma sentença leve; penitências espirituais e o pagamento das custas do processo.
Soares de Sousa não teve filhos, legítimos nem ilegítimos e sua família no Brasil se restringia aos parentes de sua mulher. Nada foi legado para estes em seu testamento, nem mesmo para sua esposa. Para ela pedira apenas que fosse enterrada junto a ele na Capela mor de São Bento, o que não se realizou porque ela se casou novamente. Deixou para duas irmãs viúvas residentes em Lisboa, Margarida de Sousa e Maria velha, certa quantia. Preocupou-se especialmente com seu cortejo, campa, lápide e salvação, determinando que fosse rezada uma missa para sua alma enquanto o “mundo durar”. Quinhentos cruzados foram destinados para cinco moças pobres (uma ajuda para os seus casamentos) e quarenta mil reis para a Santa Casa da Misericórdia. Informou sobre um livro de contas a ser visto para que se liquidassem todas as suas dívidas vendendo seus bens e finalmente legara o que sobrava para o Mosteiro de São Bento (Sousa, 1974: 297-301). Nenhuma referência a qualquer outro familiar morador da Bahia. Ao contrário, assim como não herdara nada, nada legara.
O título completo dos Capítulos publicado nos Anais da Biblioteca Nacional do Brasilsob a égide do padre jesuíta Serafim Leite em 1942 que citamos no início deste artigo contémuma indicação preciosa e enigmática: informa que os padres teriam sido avisados sobre osCapítulos “por um seu parente a quem os ele mostrou”. Ribeiro, seguindo a tradição familiarchegou ao cargo de Provedor da Fazenda e Juiz da Alfãndega da Bahia em 1606 e recebeu,em 1612, uma sesmaria no Jequiriçá com engenho de açúcar. Há suspeitas sobre sua ascensãoe atuação; teria se utilizado da estratégia de omitir a sua própria formação em Teologia emCoimbra, alegando ignorância de seus erros para o visitador do Santo Ofício e só alcançaria aprovedoria por herdar o cargo pelo falecimento do seu cunhado Manuel Souto Maior,enquanto uma das filhas da sua irmã Helena não se casasse (SOVERAL, s/d,CALMON,1985:327).
Mas é o próprio Serafim Leite quem contradiz a informação de que os jesuítas só teriam conhecido os Capítulos por via de “um parente” de Soares ao mencionar uma carta do Padre Amador Rebelo de Lisboa ao Geral da Companhia, datada de 18 de abril de 1592, recomendando que caso El-Rei solicitasse padres para a expedição do “capitão” Gabriel Soares não lhes concedesse. Por diversos motivos. Por sua expedição ser um pretexto para “tomar e saltear índios”, devido aos práticos informarem sobre a inexistência de minas, pelo perigo dos religiosos nunca mais retornarem e especialmente por “querer mal aos Nossos, manifestamente, como mostram os Capítulos e falsos testemunhos que neste reino deixou”.Acrescenta ainda, de acordo com Leite, que “nenhum Superior de outras Ordens quis dar Padres para ir com Gabriel Soares” (LEITE, 1938:179). A missiva é intrigante. Confirma a mercê de “Capitão” recebida por Soares, todavia é incompatível cronologicamente com outros dados. O aventureiro já embarcara de volta ao Brasil na data da carta e com quatro religiosos, nenhum deles jesuíta. Rebelo, procurador do Brasil em Lisboa, ratifica saber dos Capítulosantes da sua chegada às mãos dos padres no Brasil reconhecendo inclusive o título com o qual o texto seria posteriormente arquivado. E, por fim, revela que o próprio Gabriel Soares divulgava suas queixas, deixando rastros de suas críticas. [Páginas 8 e 9]
As dúvidas sobre como o texto chegou ao conhecimento dos padres jesuítas ainda nãoforam elucidadas. A trajetória de sua revelação só bem posterior, sobretudo de um autorigualmente reconhecido apenas no século XIX, faz deste texto mais um exemplo dasvicissitudes porque passaram diversos manuscritos dos Quinhentos, a exemplo dos de FernãoCardim, Frei Vicente do Salvador e Pero de Magalhães de Gandavo.
Trâmites
Sabemos positivamente que uma cópia chegou ao então provincial Marçal Beliarte no Brasil e este encaminhou o material para diversos clérigos mais experientes na vivência na colônia para que respondessem as informações prestadas pelo colono português. As réplicas foram assinadas por vários membros da Companhia de Jesus que participaram da quarta Congregação provincial convocada para 25 de maio de 1592 na Bahia (BARBOSA, 2006). A data da assinatura final do documento é de 13 de setembro de 1592, quando Gabriel Soares seguramente já estava morto uma vez que a abertura do seu testamento se dera em 10 de julho deste mesmo ano.
As Respostas apresentam o mesmo tom exaltado das Informações. Denunciam os maus tratos recebidos pelo gentio da parte dos colonos, os interesses particulares de Gabriel Soares no apresamento dos indígenas, suas atividades de venda de índios e a segurança que tinha em denunciar sem averiguar suas informações de que os apontamentos dados em Madri seriam “impossíveis virem ao Brasil” (1942:360). Apesar de todo esmero em responder minunciosamente cada artigo, as Respostas não tinham como destino qualquer exposição pública. A assinatura de padres do gabarito de Marçal Beliarte, Ignácio Tholosa, Rodrigo de Freitas, Luís da Fonseca, Quiricio Caxa, Fernão Cardim, Luis da Grã e José de Anchieta confirmam a importância das acusações, porém sua finalidade se encontrava em rebater imediatamente e se antecipar à chegada das críticas ao superior em Roma.
Assim são os próprios jesuítas que enviam o exemplar com as críticas e as réplicas para Roma, o queacabou por assegurar sua sobrevivência no acervo romano do Brasil, o Archivum SocietatisIesu Romanum. [Mexericos de um peito azedo: os capítulos de Gabriel Soares de Sousa, 07.2013. Gabriela Azevedo. Página 10]
Revelações
Por quase quatro séculos o documento permaneceu arquivado até chegar ao interessedo padre Serafim Leite, biógrafo oficial da Companhia de Jesus. A História da Companhia de Jesus no Brasil fazia parte de um projeto geral de escrita moderna e de defesa da Ordem emresposta a toda a perseguição sofrida principalmente desde a política do Marquês de Pombal ea sua supressão pelo Breve Dominus as Redemptor assinado pelo Papa Clemente XIV em 21de julho de 1773 até a instauração da República em Portugal. Vários trechos dos Capítulosforam citados nos dois primeiros tomos da História da Companhia de Jesus no Brasil,publicados simultaneamente no ano de 1938 e rebatidos no mesmo tom e argumentospraticamente daqueles usados pelos religiosos em 1592.A publicação dos Capítulos na íntegra respondeu as indagações do historiador SérgioBuarque de Holanda (1940) acerca da clareza dos métodos, rigor científico e intenção deprobidade do historiador jesuíta. Assim foram realizadas duas edições. A primeira pelaEthnos: Revista do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnologia, em 1941, e logoem seguida pelos Anais da Biblioteca Nacional, em 1942.Na História da Companhia de Jesus questões sobre os rendimentos e o funcionamentodos colégios entre outras já haviam sido contestadas. Todavia é na apresentação aos Capítulosque o estudioso Serafim Leite é mais enfático, resumindo os ataques do senhor de engenhosaos seus interesses exclusivos pela escravidão indígena: teria preferido que os Jesuítas se limitassem, por exemplo, a cantar os louvores deDeus no silêncio de uma cela ou nos cadeirões de um coro... e entretanto deixassemos Índios, inermes, à livre disposição da sua cobiça e da dos mais. É vocaçãoaltíssima essa de cantar os louvores de Deus, mas para isso já havia instituições daIgreja: não era mister nova organização, com fim idêntico (1942:343).Sem dúvida alguma eram as atividades ativas da Companhia o seu diferencial e osmotivos dos maiores conflitos tanto na América portuguesa quanto em outros domínios. MasSerafim Leite vai além. Comparando as informações do Tratado aos Capítulos, identifica queSoares fora objetivo e até elogioso no primeiro citando uma frase em que este diz, referindose as atividades dos jesuítas “que tem feito muito fruto na terra”. E conclui que o senhor deengenhos adotara diferentes critérios; era “só louvores” quando escrevia para o público, nocaso do Tratado, e quando denunciava, “detração e vitupério”; “como demonstração decaráter, sintomático...” E mais adiante afere que o senhor de engenhos “ baixou a mexericosde soalheiro; denegriu, interpretando-as mal, as inevitáveis discordâncias da vida..” (Soares,1942: 343-344). Esta dicotomização da personalidade de Soares iria se reproduzir em outrasleituras. Convém revermos os termos. [Mexericos de um peito azedo: os capítulos de Gabriel Soares de Sousa, 07.2013. Gabriela Azevedo. Página 11]
Gabrieis
A revelação do perfil antijesuíta do autor consagrado ao longo do século XIX peloTratado descritivo do Brasil em 1587 surpreendeu estudiosos.O médico parasitólogo M. Augusto Pirajá da Silva dedicou quase duas décadas àpesquisa do Tratado, inseriu oitocentas e noventa e seis notas explicativas ao documentoprocurando reunir novos documentos e informações sobre o colono, na esteira de FranciscoAdolpho de Varnhagen, o primeiro a identificar e legitimar a autoria do Tratado descritivo aGabriel Soares e estabelecer o seu perfil biográfico. A volumosa pesquisa foi publicada naedição de 1944 do Tratado descritivo do Brasil pela Biblioteca Histórica Brasileira,rapidamente esgotada. As anotações foram reeditadas em 1974 e nelas só há uma mençãolacônica e taxativa: “Gabriel Soares de Sousa foi inverídico e injusto na sua obra intitulada OsCapítulos, escrita contra a benemérita Companhia de Jesus no Brasil” (SOUSA, 1974: 278).João Fernando de Almeida Prado, bibliófilo, escritor, jornalista e historiador dedicouno livro A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil, publicado em 1945, um capítulo ao“Antagonismo entre atividade econômica dos jesuítas e Gabriel Soares de Sousa”. Neste quepermanece sendo o único estudo dedicado especificamente aos Capítulos de Soares publicadono Brasil, se propôs a compreender os interesses que levaram o colono a se distanciar dospadres jesuítas. Em vista das idiossincrasias que notou aposta no “cotejo entre libero e contralibero” pelos segundos, os padres, e atribui as dissonâncias a aspectos de foro pessoal, aoexcesso de utilitarismo e ao contágio por outras formas de pensar. Sem depreciar o colonosupõe nele certa ingenuidade, atribuindo suas ações a responsabilidade de outros: “deixara-seperturbar Gabriel Soares por excesso de utilitarismo, contagiado como ficou pelo modo depensar dos latifundiários, instigados para mais por Manuel Teles, velho desafeto dos jesuítas”(PRADO, 1945: 253).
O advogado, jornalista e historiador Cláudio Ganns, responsável pela descoberta e divulgação do manuscrito espanhol do Tratado descritivo e de um a bibliografia exemplar deste, se autodefinira certa vez como um homem habituado a “pecar pela franqueza” (1943:212). Seu comentário é bastante contundente:
Portanto- agora- Gabriel Soares aparece com tendo enriquecido no tráfico de índios. Como conciliar esta aptidão, de cubiça desvairada, para os bens materiais, adquiridos por forma criminosa com o seu “testamento”(1584), ao qual deixa “toda a sua fazenda” aos beneditinos?E, ademais, como conciliar esse último despreendimento, em vésperas de partir para a Europa, com a embriaguez dos descobrimentos (prata e esmeraldas) que o faz esperar aqui, de 5 a 7 anos, pelas licenças reais e o levou a caminhar, logo a seguir, atrás deste espelho enganador (1591), em que vem a morrer?(1958:157).[Mexericos de um peito azedo: os capítulos de Gabriel Soares de Sousa, 07.2013. Gabriela Azevedo. Página 13]
A ambiguidade que o surpreende é fruto de suas impressões, pois assim comoapresentamos, Ganns averiguou as fontes de onde provinham os argumentos de Serafim Leitenotando o quanto a “duplicidade” destacada pelo erudito poderia ser questionada: “Quementretanto confrontar as referências da “Memória” (Cap. 9 da 2ª parte), quando ele fala dosjesuítas, com o que disse dos beneditinos (Cap. 11 da 2ª parte), comprovará que aquelasparecem irônicas ou propositadamente exageradas”(1958:156). J.F de Almeida Prado, M. A. Pirajá da Silva e Claudio Ganns desenvolveram suasatividades eruditas no circulo de sociabilidades do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiroem torno de uma proposta historiográfica cujo trabalho sistemático foi responsável pelosalicerces de uma historiografia interpretativa. Seus estudos monográficos em geralcorroboram com a chamada historiografia tradicional, direcionada para a herança lusitana, opapel do Estado e das instituições na construção da nacionalidade.Antes da revelação dos Capítulos encontramos apenas um comentário depreciativo àmemória de Gabriel Soares. Pedro Tasques de Almada Paes Leme, citando por sua vez oAbade de Vallemont, refere-se a enigmaticamente a um “fingido descobridor” que teriapleitado em Castella o título de Marquês caso descobrisse as Minas. 4 A alusão certamenteremete a Soares, o primeiro a solicitar tal título, mas os motivos para a sua identificação como“fingidor” permanecem obscuros.Questões historiográficasNuma obra clássica, O Problema da Descrença no Século XVI. A religião de Rabelais,publicada em Paris em 1942, Lucien Febvre defendeu a impossibilidade da existência dadescrença nos primórdios da Idade Moderna abalizado fundamentalmente num argumentolinguístico consistente. Sua proposição já foi questionada de diversas formas. Contudopodemos dizer que estudos posteriores que abarcam este mesmo período e a temática dasquestões religiosas dialogam de forma implícita ou explicita com o mesmo problema quemotivou o historiador francês, os limites entre a ação individual e a forte presença em todas as [Página 14]