Uma história da cidade da Bahia, 2004. Antonio Risério
2004. Há 20 anos
A PRAIA TUPINAMBÁKirymuré. Paraguaçu. Eram esses os nomes que os nossos antepassados tupinambás davam,respectivamente, ao sítio onde viria a ser construída a Cidade do Salvador e à região que, àsprimeiras luzes do século XVI, receberia a denominação de Bahia de Todos os Santos.Mas a verdade é que conhecemos muito pouco (e muito mal) a história desses índios, chamados“brasis” nos textos antigos. A razão da ignorância é simples. De uma parte, os brasis não produziramsistemas escriturais próprios, nem incorporaram, a seus saberes, a tecnologia européia da escrita.Além disso, seus filhos mestiços que conseguiram se alfabetizar não se dedicaram ao cultivo dascriações culturais da parte ameríndia de seus antepassados. Resultado: não temos uma documentaçãoindígena (nem “mameluca”) acerca de sua própria vida, ou sobre o encontro e as relações daquelasaldeias com os navegantes e conquistadores que vinham da Europa. De outra parte, os escritoreseuropeus que aqui estiveram, ao longo do século XVI, estavam muito mais preocupados em retratarcondutas e crenças indígenas do que em recontar os seus processos históricos. Talvez até achassemque índios não tinham história. Mas o fato é que eles tinham. Antes que os portugueses invadissemKirymuré-Paraguaçu, este segmento da fachada atlântica dos trópicos brasílicos fora cenárioensolarado de outras ondas invasoras.Quando os primeiros portugueses, franceses e espanhóis chegaram aqui, o litoral da Bahia erahabitado, da foz do Rio de São Francisco até à altura da atual cidade de Ilhéus, pelos índiostupinambás, do grupo tupi. Não se sabe precisamente em que época eles invadiram e dominaram aregião, mas o certo é que não constituíam uma população autóctone. Até onde sabemos, as terras hojebaianas conheceram, antes da conquista lusitana, a dominação dos “tapuias”, a expulsão dos tapuiaspelos tupinaés e, finalmente, a derrota e a fuga dos tupinaés, diante do avanço irresistível da máquinade guerra dos tupinambás. Bem vistas as coisas, a dominação da Bahia pelos tupinambás fez parte deum poderoso processo expansionista. Integra a história da conquista tupi de quase toda a zonacosteira do que hoje é o Brasil. Uma conquista violenta, sanguinária, feita de batalhas tão constantesquanto encarniçadas.Ao falar de “tapuias”, não queremos, na verdade, dizer muita coisa. “Tapuia” era uma designaçãogeral para diversos grupos indígenas que não falavam o tupi. Ou, ainda, era como os tupis chamavamos seus “bárbaros”. Os europeus simplesmente adotaram a classificação indígena. E é assim que, nãomuitos anos depois da construção da Cidade da Bahia, o jesuíta Aspilcueta Navarro vai encontrar“tapuias” pelas bandas do sertão, andando pelos matos “como manadas de veados, nus, com oscabelos compridos como mulheres” e sempre levando consigo as suas flechas envenenadas. Seureinado baiano, cuja origem se desconhece, foi destruído pelos tupinaés. Estes, por sua vez, foramexpulsos de Kirymuré/Paraguaçu pelas implacáveis clavas dos tupinambás. Tapuias, tupinaés etupinambás, em suas novas posições, guerreavam sem trégua entre si. Eram três exércitos indígenasem confronto armado, com os seus guerreiros coloridos, as suas flechas de fogo, as suas canoasvelozes, os seus cantos de guerra, os seus inúmeros banquetes canibais.Tupinaés e tupinambás eram, ambos, agrupamentos tupis. Matavam-se uns aos outros porque não [Página 13 do pdf]
faziam parte de nenhuma coligação. Ao contrário do que se ensina na escola, jamais existiu uma“nação tupi”. Mesmo a noção de “tribo”, enquanto totalidade etnocultural abrangente, não encontraequivalência factual no que até hoje se conhece da história indígena do Brasil. Assim, tupinaés etupinambás se engalfinharam com violência na Bahia, numa guerra que teve como desfecho a vitóriados últimos. Em seguida, os próprios tupinambás se dividiram, com as aldeias da futura Salvadorlutando contra as aldeias de Itaparica. Logo, quando falamos de um controle tupi de boa parte da orlamarítima da Terra do Brasil (ou da “Índia Brasílica”, como Anchieta gostava de dizer), tal “controle”deve ser visto de uma perspectiva relativizadora: um índio tupi não vivia numa nação, mas numaaldeia.Uma aldeia era, de fato, uma unidade social distinta, economicamente auto-suficiente, com a suavida integrada e os seus contornos bem definidos. Era o espaço delimitado pelo aglomerado dasmalocas e pelas práticas da existência cotidiana. Envolvia a roça, as zonas de caça e pesca, as reservasvegetais, os caminhos de terra e de água. Os índios escolhiam um pedaço de mundo onde viver –geralmente, segundo Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado Descritivo do Brasil, “um sítio alto edesabafado dos ventos, para que lhe lave as casas, e que tenha a água muito perto, e que a terra tenhadisposição para de redor da aldeia fazerem suas roças e granjearias” –, e aí erguiam as suas casasamplas, chamadas “malocas”. Regra geral, uma aldeia tupinambá era composta por um conjunto queia de 4 a 8 malocas. Um reduzido número de grandes casas vegetais, feitas inteiramente de madeira efolha, muitas vezes medindo mais de 100 metros de comprimento, 10 metros de largura e aí por voltade uns 10 metros de altura. Em apenas uma delas, podiam se abrigar 200, 600 ou mais indivíduos.Pode-se falar, a seu respeito, de uma arquitetura efêmera, feita para resistir apenas por unspoucos anos, até que a comunidade, por esse ou por aquele motivo, resolvesse (ou precisasse) se pôrnovamente em movimento. “Após cinco ou seis anos, pois não costumam ficar mais tempo nomesmo lugar, [os índios] destróem e queimam a aldeia e vão edificar outra mais adiante, a umadistância de meia légua pouco mais ou menos, dando-lhe, entretanto, o mesmo nome da precedente”,informa o capuchinho Claude d’Abbeville, em sua História da Missão dos Padres Capuchinhos naIlha do Maranhão e Terras Circunvizinhas. Ao inquirir sobre os motivos dessas mudanças periódicas,Abbeville recolheu duas respostas indígenas. A primeira, de extração simbólica: era assim que osantepassados agiam; a segunda, de feitio técnico: as plantas cultivadas nas roças se compraziam emterrenos novos e assim produziam mais. Uma coisa, no entanto, permanecia, atravessando o ciclo dasmudanças. Era o nome da aldeia. O capuchinho registrou vários deles, por sinal: Itapari (‘camboa dopeixe’), Itaendaba (‘largo de pedra’), Araçaritiba (‘pouso do tucano’), Juniparã (‘jenipapo verde’),Guarapiranga (‘guará vermelho’), Icatu (‘água boa’), Caaguira (‘sombra das árvores’), Aruípe (‘riodos sapos’), Abatininga (‘cabelos secos’), Igaraupaba (‘porto das canoas’), etc. Mas, para além daimediata beleza dessa toponímia aldeã, devemos assinalar que a permanência do signo, frente àimpermanência do sítio, é em si mesma reveladora. Mostra que cada aldeia via a si mesma como umacomunidade particular, ciosa do seu caráter e de sua autonomia. Ao carregar o seu nome de um lugarpara outro, ela sublinhava a sua identidade.Além de efêmera, essa arquitetura indígena se expressava em edificações ecológicas, fosse pelos [Página 14 do pdf]
devorados em farras antropofágicas. Mas é bom lembrar também que, embora ajustada no sistema daaldeia, as malocas podiam entreter relações extragrupais. Isto é, a maloca de uma aldeia poderia estarvinculada à maloca de outra, por laços de parentesco ou de amizade. Nesse caso, a vinculaçãocostumava envolver tratos de auxílio mútuo. Formas semelhantes de relacionamento e cooperação sedesenvolviam igualmente entre aldeias. Tais nexos se tornavam especialmente manifestos emocasiões festivas, em sacrifícios rituais e nas operações de guerra.Mas não se pense que um conjunto de aldeias formava uma “tribo”. Ao contrário, as evidênciascondenam essa noção ao reino das falácias classificatórias. “Sobre a articulação dos grupos locaisem unidades mais amplas, designadas como ‘tribos’ pelos autores quinhentistas e seiscentistas, nadaconsegui obter de significativo”, declarava já o sociólogo Florestan Fernandes, ao cabo deminucioso esquadrinhamento, que desembocou no livro A Organização Social dos Tupinambás.Assim, antes de afirmar que aldeias tupis, reunidas para a guerra sob o comando de grandesmorubixabas como Cunhambebe, estavam engastadas no conjunto maior de uma “tribo”, será maiscorreto encarar a frente guerreira como uma espécie de sistema instável de grupos conectados numarede de alianças táticas e/ou estratégicas.Em Fragmentos de História e Cultura Tupinamba (texto incluído no volume História dos Índiosno Brasil, organizado por Manuela Carneiro da Cunha), Carlos Fausto soube situar bem a questão.“Várias aldeias, possivelmente ligadas por laços de consangüinidade e aliança, mantinham relaçõespacíficas entre si, participando de rituais comuns, reunindo-se para expedições guerreiras de grandeporte, auxiliando-se na defesa do território. Esse conjunto informe de grupos locais circunvizinhos,porém, não estava sujeito a uma autoridade comum, nem possuía fronteiras rígidas: era fruto de umprocesso histórico em andamento, onde se definiam e redefiniam as alianças”, escreve oantropólogo. E prossegue: “A inimizade recíproca distinguia grupos de aldeias aliadas, queoperavam segundo uma estrutura de tipo ‘rede’: as aldeias, unidas uma a uma, formavam um‘conjunto multicomunitário’, capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos da aliança e daguerra. Os limites dessas ‘unidades’ não são palpáveis, nem definitivos: um dia poder-se-ia estar deum lado, no dia seguinte do outro”.Diante dessa realidade movediça, Fausto fala então de “labilidade das fronteiras da amizade e dainimizade” e admite que uma rede de grupos locais aliados não configurava um complexo sistêmicoestável. Isto é, não formava exatamente uma “totalidade social discreta”, ou o que se pudesse definir,em termos rigorosos, como uma “tribo”. A idéia de um “conjunto multicomunitário” em ação, queFausto foi colher em Hélène Clastres, parece corresponder mais adequadamente à realidade dos fatos.Podemos checar essa correspondência factual, de resto, em diversos relatos quinhentistas, como osde Hans Staden e Gabriel Soares de Sousa. Lá estão, com a clareza possível, o “conjuntomulticomunitário” e a “labilidade das fronteiras” da aliança e da hostilidade.Já nos referimos à guerra entre tupinaés e tupinambás pelo controle de Kirymuré-Paraguaçu.Eram grupos tupis. Mas, antes que uma “tribo”, o vocábulo “tupi” define um campo lingüístico.Tupinaés e tupinambás não eram peças de uma mesma engrenagem. Não estavam submetidos a umaautoridade superior. Do mesmo modo, tupinambás de Kirymuré e tupinambás de Itaparica lutaram [Página 16 do pdf]
nisto tão piamente quanto nós nos Evangelhos, não havendo como dissuadi-los de tal idéia”. Adiante,o mesmo Thevet observa que os tupinambás não só criam no que sonhavam, como viam os seusdelírios noturnos como peças interpretáveis pelos xamãs. Havia, portanto, uma onirocríticatupinambá. Uma técnica ameríndia de interpretação dos sonhos.Mas desçamos das viagens oníricas para as paisagens mais pedestres da vigília. Aqui, podemosnos referir a uma divisão básica de responsabilidades e desempenhos. Os homens faziam a guerra –as mulheres, trabalhavam. Não é que as mulheres se mantivessem completamente alheias ao universodas atividades bélicas. Em todas as sociedades, as mulheres sempre participam do teatro da guerra. Asíndias acompanhavam os seus maridos nas investidas militares, mas realizando somente tarefas deapoio ao grupo beligerante. Do mesmo modo, os índios não desconheciam inteiramente o trabalho.O que se quer enfatizar, aqui, é que a guerra se constituía na atividade por excelência do contingentemasculino daquela sociedade, enquanto que as mulheres se encarregavam da sustentação do grupo,em termos produtivos. Os homens gastavam o seu tempo, principalmente, em emboscadas ecauinagens. As mulheres eram, sobretudo, domésticas, lavradoras, fiandeiras e ceramistas.Providenciavam o pão de cada dia das aldeias tupinambás. Daí que o velho Pero de MagalhãesGandavo tenha dito que os índios (homens) não pensavam em outra coisa que não fosse “comer ebeber e matar gente”.Mas é óbvio que, apesar da rigorosa determinação de papéis, fixados já na infância, haviadiversos momentos da vida social em que homens e mulheres se moviam juntos. Vimos que oestatuto xamânico podia ser alcançado por qualquer pessoa, desde que agraciada com os dons paraexercer a função feiticeira. A dança e o canto, igualmente, não eram monopólio de homens ou demulheres. Todos dançavam. E, segundo Jean de Léry (Viagem à Terra do Brasil), os índios se reuniamdiariamente para “dançar e folgar”. Os antigos cronistas, em verdade, ficaram surpresos com a altafreqüência de festas e bailes na vida tupinambá. Fosse no dia-a-dia da aldeia ou a caminho da guerra,aqueles brasis não paravam de dançar. E o próprio Paraíso-Guajupiá era concebido como um baileeterno, interminável. Como uma festa infinita.Outro espaço igualmente aberto a homens e mulheres era o da criação poética e musical. O padreFernão Cardim (Tratados da Terra e Gente do Brasil) chegou mesmo a dizer que as mulherestupinambás eram “insignes trovadoras”. E o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa, ao falardos tupinambás da Bahia, emprega diversas vezes a expressão “grandes cantares”. Pelo número evariedade das situações em que tais cantares afloravam, vê-se a intensidade da produção poéticomusical daqueles ameríndios. Bem vistas as coisas, a poesia, a música, o canto, a dança e o vinho(cauim) permeavam toda a vida social tupinambá. Eram como que onipresentes, marcando de umaponta a outra a existência aldeã. “Este gentio é muito amigo do vinho”, escreve Gabriel Soares, e “obebem com grandes cantares, e cantam e bailam toda uma noite às vésperas do vinho, e ao outro diapela manhã começam a beber, bailar e cantar”. Bebia-se no nascimento de uma criança, na festa doprimeiro fluxo menstrual de uma cunhã, na recepção ao hóspede, na véspera da batalha, no primeirocasamento do mancebo, após o trabalho comunitário na roça, no ritual antropofágico, ao fim doperíodo de luto pela morte de um parente, à passagem festiva dos caraíbas, etc., etc. E, quando havia cauinagem, havia canto e dança. Canções e mais canções. Poemúsica ameríndia.Gabriel Soares e Cardim, que viveram na Bahia quinhentista, nos mostram, aliás, que o grandepoeta-músico era reconhecido, respeitado e reverenciado até por grupos inimigos do seu. “Entre estegentio são os músicos mui estimados, e por onde quer que vão, são bem agasalhados, e muitosatravessaram já o sertão por entre seus contrários, sem lhes fazerem mal”, comunica Soares. Ainformação de que o criador indígena podia atravessar os campos, sem ser molestado poradversários, é confirmada por outros escritores da época. Fernão Cardim, por seu turno, acrescentaque tais cantores e produtores poético-musicais não eram canibalizados quando caíam prisioneiros.Isto dá uma bela medida do amor tupinambá pela palavra, pela eloqüência, pelo artesanato textual.“Estimam tanto um bom língua que lhe chamam senhor da fala”, diz o mesmo Cardim. Em outraspalavras, eram índios que conheciam a floresta encantada da linguagem.AMORES NA ALDEIA [Páginas 21 e 22 do pdf]
harém eram evidentes. Vantagens eróticas, sociais e econômicas: o bando de mulheres ao seu disporsignificava prestígio, variação sexual e mais braços para os trabalhos da casa e do campo. Mas essasmulheres não receberiam todas o mesmo tratamento. A ascendência da primeira esposa sobre asdemais levou Gabriel Soares a vê-la como “a mulher verdadeira”. As outras a obedeciam e a sua redeficava armada ao lado da do marido. Fica difícil acreditar que o ciúme não disparasse aí a sua famosaflecha preta, ou que a diversão masculina em redes variadas passasse em brancas nuvens. Mas é o quedizem autores quinhentistas e seiscentistas. E Montaigne invejou esse aspecto da vida conjugaltupinambá, lamentando que, na França, o ciúme impelisse as esposas a impedir que os seus maridosbuscassem “a amizade e as boas graças de outras mulheres”. Nesse panorama, Gabriel Soares é umaexceção, ao dizer que “sempre há entre estas mulheres ciúmes” – embora ele mesmo relativize a suaafirmação, falando de esposas que levavam moças solteiras para se deitar com os seus maridos, a fimde que estes não ficassem entediados.Enquanto alguns homens tinham várias mulheres, mulher alguma podia ter mais de um homem.Exigia-se dela fidelidade absoluta. À liberdade sexual das solteiras, seguia-se a monogamia rigorosada casada. Se ela cometesse adultério, experimentaria o repúdio, o espancamento ou mesmo a morte.E nem só a mulher seria castigada ou morta. Ao se referir à prática do infanticídio entre ostupinambás, assinalando que deficientes físicos eram enterrados vivos, Anchieta observou quetambém eram enterradas vivas criancinhas suspeitas de “terem sido concebidas em adultério”. Dequalquer modo, as mulheres tupinambás casadas, as “cunhãs mucupoare”, fosse por medo e/ou porintrojeção profunda de códigos culturais, costumavam ser fiéis. “São castas as mulheres a seusmaridos”, na frase concisa de Manoel da Nóbrega, em suas Cartas do Brasil. Mas se o adultério eratão severamente punido, o divórcio, por iniciativa do homem ou da mulher, era coisa fácil de obter –“se a mulher se sente farta do marido e lhe diz não querê-lo ou desejar outro, responde-lhe o espososem se perturbar: Ecoain, isto é, ‘vá para onde quiser’. A mulher pode então entregar-se a outrohomem sem inconvenientes. E pode largar o segundo, como o fez com o primeiro, o mesmo sendopermitido ao homem”, registra Abbeville. E ainda: “como o casamento é fácil, igualmente fácil édesmanchá-lo, bastando para tal a vontade recíproca dos cônjuges”. Cardim chegou até a duvidar daveracidade do casamento tupinambá, pela facilidade com que marido e mulher se separavam, “porqualquer arrufo, ou outra desgraça, que entre eles aconteça”.O enviuvamento de mulheres deveria ocorrer com muita freqüência naquele mundo de guerraspraticamente contínuas. Houve mesmo quem acreditasse que aí se encontrava uma das razões para ainstituição da poligamia entre aqueles brasis. Outra resposta ao problema da viuvidade estava noscativos. Embora nem todas aceitassem a solução (o jesuíta Leonardo do Valle conta, numa das suascartas, de uma índia que escolheu a morte, ao ver o marido morrer numa epidemia de varíola),viúvas podiam se dar à fruição regulamentada de prisioneiros de guerra, como forma decompensação pela morte do esposo. O prisioneiro tomava o lugar e os objetos do morto e se casavacom a viúva. Em todo caso, é bom salientar que as mulheres tupinambás não eram obrigadas a casar,nem a ter filhos. Praticavam, aliás, o aborto e o infanticídio. Além disso, podiam escolher, para tocaro barco da vida conjugal, uma pessoa do mesmo sexo. Lésbicas não eram forçadas ao ocultamento de [Página 27 do pdf]
pedra da ponta, “itapoã”, pela qual se antecipava a entrada da baía baiana, à vista dos lençóis de areia– e a elevação então verdejante do Morro do Conselho. A nau deu de proa ou de lado ou de quina oude popa nalgum banco areento ou coroa de pedras, se já não vinha avariada desde antes, oscilandoem direção à virada, para ceder de vez, ou paulatinamente, ao ímpeto ou à cadência das ondas. EDiogo, o vianês, estava nela. Atirou-se na água cheia de sal, agarrou-se num troço qualquer demadeira, nadou – tanto faz. O que conta é que conseguiu se aproximar da faixa mais clara da maré,ali onde as algas às vezes se enramam umas nas outras, e bem à altura da atual praia do RioVermelho, logrando, sabe-se lá como, ajustar-se entre onda e pedra. Pouco importa se com a mãosangrando, o joelho ferido, as roupas rasgadas ou a língua suplicando santos. Salvou-se. Com umbrilho náufrago nos olhos, alcançou a pedra necessária ao batimento do coração. À entrada do arpelas narinas. E ali estava. Esbarrara como náufrago, molhado e faminto, no trópico brasileiro.“Consta que deixara a sua terra, com um tio, atraído pelo gosto da aventura. Apareceu emcircunstâncias obscuras, não se apurando até hoje como isso sucedeu. Tomando terra nos baixios donorte da barra, que os tupinambás denominavam Mairaquiquiig, entrou a viver entre os índios dosarredores sem jamais regressar a Portugal”, reconta-nos, numa vida de algum sabor quinhentista, oantropólogo Thales de Azevedo, em seu Povoamento da Cidade do Salvador. Mairaquiquiig, deacordo com os entendidos, significa “naufrágio dos franceses” – o que é um registro claro dapresença de piratas da França nessa faixa territorial do Novo Mundo.Curiosamente, a toponímia tupinambá atravessou os séculos, sob a forma rápida e deliciosamenteaportuguesada de Mariquita. “Ainda hoje chama-se Mariquita certo trecho do arrabalde do RioVermelho, correspondente aos aludidos baixios”, prossegue Thales. Em vez de a alguma cachopaesperta ou mulata vivaz, “Mariquita” vem, portanto, do tupi clássico, remetendo a corsários. E lá está,no bairro do Rio Vermelho, na Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, o Largo daMariquita, com a sua pequena estátua em homenagem a Colombo, o seu posto policial preguiçoso, osseus automóveis barulhentos, o seu mercado de mariscos e cachaça, o seu rio transformado emesgoto a céu aberto.Por ter surgido do mar em meio às pedras, e à vista dos índios que ali demoravam, o jovemnáufrago vianês recebeu, dos tupinambás, um apelido preciso. Caramuru. Gabriel Soares registra:“Chamam os índios às moréias caramuru, das quais há muitas, mui grandes e mui pintadas como asda Espanha, as quais mordem muito, e têm muitas espinhas, e são muito gordas e saborosas; não ashá senão junto das pedras, onde as tomam às mãos”. No instante em que escrevo, “caramuru” é comoainda se chama o mesmo peixe, no vocabulário dos pescadores baianos, não raro vítimas suas.Caramuru – a moréia ou lampréia, peixe angüiliforme, enguia perigosa, quase uma cobra do mar, aviver entre locas e pedras, nas praias da Bahia. A expressão “moréia” vem, como se sabe, do gregomyraina, e chegou até nós através do latim, muraena. Mas “caramuru” é palavra que pertence aoléxico tupinambá. Que tenha se convertido em apelido, em nome tropical do vianês Diogo, é coisafácil de entender. Tudo está no modo como ele veio aparecendo na praia do Rio Vermelho,provavelmente magro e esfarrapado, desnutrido e pouco nutritivo, certamente encharcado, com asroupas ou restos de roupas colados no corpo macilento, esgaivotado. A sua figura esguia, deslizando [Página 41 do pdf]
desenhados, antes, em prancheta lisboeta – os tais “traços e amostras”, que era como então se faziareferência a esboços e planos de natureza urbanística e arquitetônica. Tendo em vista que a cidadetivera o seu nome escolhido antes da partida da expedição de Thomé de Sousa, que a sua feitura e asua fisionomia foram previamente planejadas, e que até o seu “escudo d’armas”, figurando umretorno da pomba à Arca de Noé, viera “desenhado e pronto” de Portugal, o estudioso EdisonCarneiro, em A Cidade do Salvador – 1549 – Uma Reconstituição Histórica, disparou sem a mínimahesitação: “uma Brasília do século XVI”.No final de janeiro, tudo pronto, as embarcações já se achavam no Tejo, orlando a bela Torre deBelém. Mas foi só no primeiro dia do mês de fevereiro, uma sexta-feira, que as naves deixaramenfim Portugal, tomando o rumo da Bahia de Todos os Santos. Formada por três naus – NossaSenhora da Conceição, Salvador, Nossa Senhora da Ajuda –, duas caravelas – Leoa e Rainha – e porum bergantim, o São Roque, a armada contava com cerca de mil homens, incluindo aí uma legião de“degredados” (que não eram somente os criminosos que costumamos fantasiar – pessoas conheciamo “degredo”, naquela época, por motivos que hoje soariam ridículos: por serem videntes, porexemplo; daí que eu costume dizer que personalidades como Glauber Rocha e Menininha do Gantoisseriam, então, sérios candidatos à degredação). Nas palavras do padre Manoel da Nóbrega, a viagemse fez “sempre com ventos prósperos... sem que sobreviesse nenhum contratempo e antes com muitosoutros favores e graças de Deus, que bem mostrava ser sua a obra que agora se principiou”.Realmente, o que houve foi uma travessia transmarina de rara tranqüilidade, prolongando-se porapenas 56 dias. E assim, a 29 de março de 1549, também uma sexta-feira, a frota exibiu as suas coresna moldura de sol da Bahia de Todos os Santos.Deu-se em Vila Velha o desembarque e o encontro, fundamental, com Diogo Caramuru. A indiadados arredores, ouvindo o cacique branco, manteve os seus arcos à sombra, distensos, em posição derepouso. “Diogo Álvares quietou o gentio e o fez dar obediência ao governador, e oferecer-se aoservir”, informa Gabriel Soares. Escolhido o local para a construção da cidade, coroa quase plana nocimo de uma colina escarpada, cortada a pique sobre o mar, os trabalhos foram imediatamenteiniciados. De começo, uma empreitada penosa. Os homens trazidos por Thomé de Sousa não tinham,evidentemente, onde dormir na terra firme. “Na faina dos primeiros dias, galgava essa gente amontanha pela manhã e descia com o entardecer a pernoitar nas naus”, reconta o supracitadoTheodoro Sampaio. O movimento no porto improvisado, de resto, fez brotar uma rancharia, onde selevantou a ermida ou capela de Nossa Senhora da Conceição (da “concepção”, poucos se lembram).Mas só depois de armada uma forte cerca de pau a pique no cume da escarpa foi que o governadorgeral, sentindo-se sossegado, levou soldados, operários e degredados para dentro do canteiro deobras.Assinaladas as portas da cidade, definidos os alinhamentos das ruas, sinalizados os locais dosedifícios públicos, foi se formando, então, o arraial, o vilarejo cercado com muros de taipa grossa,“com dois baluartes ao longo do mar e quatro da banda da terra”, cada um deles contando com“muito famosa artilharia”, ainda segundo Gabriel Soares de Sousa. Em pouco tempo, a povoação jáia ganhando alguma forma, constelando-se com as suas casas de barro cobertas de palma, bem à [Página 57 do pdf]
no tempo da extração e da comercialização do pau-brasil. Nessa conjuntura extrativista anterior àconsolidação da ocupação territorial, os brancos se achavam em estado de completa dependência. Erao índio quem podia conduzir o branco ao sítio das madeiras, era ele quem derrubava a árvore e,ainda, quem a transportava, já que, naquela época, inexistiam animais de carga na Índia Brasílica. E oíndio fazia esse trabalho em troca de facas, espelhos, tesouras, miçangas. Mas e se de uma hora paraoutra ele não quisesse mais se sujeitar àquela faina sem fim? A empresa iria por água abaixo.Escravizar índios seria vantajoso, assim, não só para vendê-los a europeus que passavam, mas paraobrigá-los a trabalhar.Não há razões históricas que nos impeçam de afirmar que, nesse período caramuru, osrelacionamentos entre brancos e brasis se estenderam do amor, do companheirismo e da amizade aodesprezo, ao nojo e até ao ódio. Os gestos dos portugueses foram dos arranjos de amor e de sexointerracial, deflagrando o processo brasileiro de mestiçagem, às práticas de captura, escravização evenda dos ameríndios. Na Terra do Brasil, aliás, a escravidão não era coisa desconhecida pornenhuma das partes em jogo. Os índios brasileiros sabiam o que significava escravizar pessoas.Tupinambás escravizavam não somente europeus e “mamelucos” (ou “brasilíndios”), mas também, eantes disso, indígenas de grupos inimigos, como tupiniquins, carijós e maracajás. Os portuguesestambém escravizavam, há muitos e muitos sóis. Tinham escravos mouros – e, àquela altura, negros,também. O comércio europeu de escravos africanos começou em 1444, quando Gil Eanes, emviagem armada pelo Infante D. Henrique, levou para Portugal uma carga de duzentos indivíduos,entre pretos retintos e outros algo clareados, pela mistura com sangue árabe ou berbere.Se não havia novidade alguma no fenômeno escravista em si mesmo, mas diferenças nasrealidades do escravo em formações socioculturais distintas, nem por isso portugueses e francesesdeixaram de introduzir uma inovação, alterando o panorama do escravismo em terras brasílicas. Elestrouxeram para cá o comércio de escravos. E a prática comercial modificou a atitude ameríndiaperante a escravidão. Hans Staden registra que, certa vez, quando os tupiniquins prenderam um loteinteiro de tupinambás, devoraram apenas os mais velhos, vendendo os jovens aos portugueses. Antesdesse comércio, tais jovens teriam sido escravizados e, posteriormente, submetidos ao ritualantropofágico. É correto assinalar, assim, um efeito anticanibal, antimágico, da conversão de genteem mercadoria.Mas as coisas só mudaram radicalmente quando, em meados do século XVI, a economia doescambo começou a ser suplantada pela cultura da cana. A mão-de-obra indígena foi se tornando deimportância crescente para o empreendimento colonial. E, com o desenvolvimento da agricultura, asimples compra de cativos em mãos dos índios passou a não dar mais para o gasto. Os colonospartiram, eles mesmos, para as ações de apresamento e escravização dos brasis. Paralelamente, avisão que esses portugueses tinham dos índios ia descoincidindo em tudo da cálida aquarela traçadapor Caminha. Eles já não olhavam para os brasis como nobres e doces representantes de umavivência paradísica anterior à Queda. Pero de Magalhães Gandavo dá voz à mentalidade reinanteentre os colonizadores, quando escreve que os índios eram desonestos, cruéis, viciados e desumanos,vivendo como animais brutos, “sem ordem nem concerto de homens”. Nos termos de Lewis Ranke, o [Página 59]
região eram, assim, agrupamentos mamelucos. Basta lembrar que a índia tupinambá CatarinaParaguaçu chegou a ver, ainda em vida, descendentes seus fazendo parte das “melhores famílias” dolugar – e ocupando postos públicos importantes. Fidalgos recebiam suas filhas em casamento. Umneto do casal Caramuru-Paraguaçu, chamado Diogo Dias, casou-se, por sinal, com Isabel de Ávila, oque fez com que o sangue indígena fosse irrigar, também, a Casa da Torre. Genes em rotação.Francisco Dias d’Ávila, o primeiro, foi, portanto, bisneto do velho Caramuru. E esse entroncamentodas famílias Caramuru (cujo nome foi traduzido algumas vezes por “moréia”, como vemos emBelchior Dias Moréia, pai de Robélio Dias, o das minas de prata) e Ávila não foi um fato isolado.Outros cruzamentos ocorreram.Satirizando a vida baiana, Gregório de Mattos não passaria ao largo do tema. Aliás, ele – que erabranco e cristão velho, descendente de senhores de engenho – não via com bons olhos a ascensãosocial dos novos-ricos, com seus anseios de fidalguia, nem a proliferação de mulatos, os quaisconsiderava atrevidos e boçais. Por isso mesmo é que dedicou alguns poemas ao desnudamento dalinhagem “pura” de alguns dos nossos fidalgos. Daqueles que formavam, como ele dizia, a nobrezade “sangue de tatu” (“tatu”, no caso, para acentuar a sua origem tropical, e não reinol). E foi ao pontocentral da questão, mostrando que, por trás dos véus, dos truques e disfarces de cariz aristocrático, oque se encontrava era a antro-pofagia. Mais preciso ainda, em sua referência baiana, Gregórioadjetivou o apelido indígena de Diogo Álvares, agrupando aqueles falsos nobres sob a denominaçãogeral de “fidalgos caramurus”. Para então disparar:Um calção de pindoba a meia porra,camisa de urucu, mantéu de arara,em lugar de cotó, arco e taquara,penacho de guará em vez de gorra.Furado o beiço, sem temor que morra,o pai, que lho envazou com ua titara,senão a mãe, a pedra lhe aplicaraa reprimir-lhe o sangue, que não corra.Alarve sem razão, bruto sem fé,sem mais lei que a do gosto, quando berra,de arecuná se tornou em abaité.Não sei como acabou, nem em que guerra;só sei que do Adão de Marapéprocedem os fidalgos desta terra.Bem, sejamos didáticos, ainda que correndo o risco de entediar os entendidos. O que Gregóriocompõe poeticamente, nesse texto, é a figura ancestral dos “fidalgos caramurus” – o Adão de Marapé(há quem leia “massapê”). “Um calção de pindoba a meia porra” é, na verdade, uma espécie qualquerde tanga de palha (pindoba = palmeira), mais ou menos na altura (ou na metade) do pênis. A figura [Página 95 do pdf]