A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja - 01/01/1996 de ( registros)
A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja
1996. Há 28 anos
Há anos estou dedicando-me a pesquisas sobre a História da Igreja em Santa Catarina. Trabalho árduo e gratificante. Diversos capítulos já foram publicados nesta Revista, para que pudesse receber opiniões, incentivo, críticas.
Agora, às vésperas dos 500 anos de Evangelização no Brasil, agradeço a oportunidade de publicar a primeira parte desta História, que abrange o período não institucional da Igreja catarinense, isto é, a época em que não nenhuma organização hierárquica, apenas Missão junto aos nativos. Também no âmbito civil, não há vilas nem cidades nem freguesias. Somente o nativo carijó, que vai ter sua vida destroçada pela Conquista.
O período inclui as missões franciscanas - primeira tentativa organizada de Missão no Brasil - e jesuíticas: a Província de Jesus e a Missão dos Carijós. Abrange os anos de 1500 a 1650. Agradeço qualquer opinião para que possa melhorar o escrito.
1 - O sertão dos Patos e seu povo Os primeiros habitantes a penetrarem em território de Santa Catarina foram grupos de caçadores e coletores, que teriam atingido a região através do vale do rio Uruguai, há 4.500 anos atrás [Teresa Domitila Fossari: Cultura pré-histórica da Ilha de Santa Catarina, in História Sócio-Cultural de Florianópolis, Clube Doze de Agosto - Editora Lunardelli - IHGSC, Florianópolis, 1991, p. 9-25. Silvio Coelho dos Santos: Índios e Brancos no sul do Brasil, Edeme, Florianópolis, 1973, p. 29-30)].
Posteriormente o litoral, em face dos amplos recursos alimentares de que dispunha, serviu como polo de atração, abrigando populações diversificadas, e por um longo período de tempo. O povoamento do litoral teve início cerca de 2.500 aC., estendendo-se praticamente até a chegada dos europeus. Os grupos humanos, pescadores e coletores, pré-ceramistas, foram substituídos por grupos ceramistas, talvez agricultores, por volta do ano 1000. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Página 59, 1 do pdf]
Tudo indica que os europeus vieram interromper o fluxo dos povoadores nativos, de tradição tupi-guarani, que estavam a demandar as terras do litoral.Segundo relatos dos missionários e viajantes, era bastante expressivo o número de nativos nas terras catarinenses no momento da Conquista.No litoral - os nativos da grande nação tupi-guarani, da língua "geral", aqui denominados carijós, nome originado do tupi-guarani "Carai-Yoic", branco, mestiço. Inicialmente designado os filhos dos fugazes acasalamentos entre nativos e brancos, depois estendeu-se aos habitantes de todo o Sertão dos Patos.
No interior - o grupo "jê", denominado botocudo, bugre, kaiakang, xôkren, eweikorna, hoje "xókleng". Os xókleng e kaiakang tiveram seu território palmilhado, mas praticamente não interessaram aos bandeirantes pois eram semi-nômades, viviam dispersos em pequenos grupos; falavam uma língua diferente e não tinham maiores tradições de trabalho agrícola.
Os carijós viviam ao sul da Capitania de São Vicente, de Cananéa ao Rio Grande, e eram tidos como "o melhor gentio da costa". Vestiam apenas uma espécie de avental (tanga), feito de fibra vegetal, de pele ou de pluma, que descia dos quadris até as pernas. As mulheres andavam de cabeça coberta e usavam no cabelo fibras tintas de várias cores.
Acreditavam num Ser supremo mas, como o restante dos guaranis, não tinham formas públicas de culto religioso. A vida religiosa desenvolvia-se em torno dos pajés (xamãs): restringia-se às necessidades imediatas de cura para as doenças, à vingança contra os inimigos e à busca de sorte no quotidiano. Uma religião prática.
O missionário São Roque Gonzales, no dia que foi morto (15 de novembro de 1628), escreve um bilhetinho ao superior da Missão, dizendo que os caciques tinham descido dos montes e a única coisa que lamentava era não ter mais cunhas e machados porque, se tivesse um pouco mais, seria capaz de trazer mais uns 500 nativos.
Isto se entende facilmente, pois, na derrubada de uma árvore, o trabalho que fazia uma pessoa com o machado de ferro era equivalente ao de uns 15 nativos com machado de pedra. Pela busca do ferro, grupos nativos atacam outros que o utilizam, para apropriar-se dos objetos deste material.
Os carijós não ficaram imunes a esta sedução-necessidade, corrompendo-se para obter estes instrumentos que facilitariam em muito seu trabalho.
Tinham a pele mais clara que o restante dos nativos brasileiros. Sobre seus hábitos alimentares, em 1628 o Padre Francisco Carneiro SJ teceu este comentário:
"... os carijós, em entremo comilões, por natureza e por uso tão habituados nesse exercício, que como animais do campo gastam o dia inteiro e parte da noite em comer, sem interpolação ou distinção de tempos que monte!"
Por suas qualidades naturais, o carijó foi a maior vítima da sanha escravagista bandeirante, que nele viu o melhor braço para o serviço em suas fazendas.
2 - Planta-se a CruzNo mapa de Juan de La Cosa, de 1550, aparece Santa Catarina. Vai ser um território estratégicamente muito importante - especialmente a ilha de Santa Catarina - para os navegadores que demandavam o Rio da Prata.São Francisco do Sul, cujo porto foi ponto de referência obrigatório tanto das rotas marítimas quanto da ação missionária, foi a primeira terra catarinense fecundada pelo madeiro da Cruz. A 6 de janeiro de 1504 aportou a primeira expedição colonial, com a chegada do bretão Binot Paulmier de Gonneville, a bordo do "Espoir", ali permanecendo até 3 de julho. Numa pequena eminência à beira-mar, ele e seus companheiros levantaram uma cruz de madeira: realizou-se, ao toque de tambor e trombeta, a primeira celebração religiosa em terra catarinense. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Páginas 60 e 61, 2 e 3 do pdf]
Retornando à França, Gonneville levou consigo o velho Namoa e o jovem Icá-mirim (Essomeric, afrancesado), filho do dos carijós, Arosca, sob o pretexto de "ensinar-lhe o uso da artilharia e fazer tudo quanto viam e ensinavam aos cristãos", prometendo trazê-lo de volta dentro de 20 luas, o que não foi cumprido. Em troca casou-o em 1521, aos 32 anos de idade, com sua filha Suzanne. Lagou-lhe parte de seus bens e deu-lhe o título de "Barão": um nobre carijó incluído na nobreza européia!Escreve W. Piazza que um neto de Içá-Mirim, Jean Paulmier de Gonneville, abraçou a carreira eclesiástica e chegou a ser Cônego da Catedral de Saint Pierre de Lisieux. Distinguiu-se pela sua alcunha e pelas viagens que realizou por diversos países da Europa, em missão diplomática. Em 1663 apresentou ao papa Alexandre XII a "Declaração de Viagem", acompanhada de um memorial, justificando um pedido para fundar uma missão cristã na terra austral. O Cônego de Gonneville queria ainda provar que a terra visitada em 1504 por seu antepassado tinha sido a Austrália! Icá-Mirim e Namoa, "emigrantes" brasileiros para terras europeias, fizeram o caminho inverso dos conquistadores que depois destruíram sua cultura e gente.
3 - Náufragos, desertores, sacerdotesOs primeiros cristãos que se estabeleceram provisoriamente em terras catarinenses, na Ilha de Santa Catarina, foram os náufragos da expedição de João Dias de Solis, em 1515: o português Henrique Montes, o espanhol Melchior Ramirez e o negro Francisco Pacheco.
Em 1514, aportou em Meiembipe (Ilha de Santa Catarina) a expedição comercial lusitana de Nuno Manoel e Cristóvão de Haro: trocaram o nome de Meiembipe pelo de "Ilha dos Patos"; posteriormente, toda a área circunvizinha foi conhecida como o "Sertão dos Patos".
É do Padre Inácio de Siqueira SJ, em junho de 1635, a primeira descrição literária da Ilha de Santa Catarina: "Ilha de Santa Catarina, onde a gloriosa Virgem reside só no nome, mais deserta que em Sinai, porém mui piedosa para as embarcações que ali recebe e agasalha como se fora seio esta sua enseada, que ali tem".
4 - Os frades e a província de Jesus
Conforme já afirmamos, São Francisco do Sul foi o berço de Santa Catarina e a primeira presença cristã e franciscana em território catarinense. Em 1537, uma expedição capitaneada por Alonso Cabrera partiu da Espanha rumo ao Rio da Prata, em socorro à expedição de Pedro de Mendoza, o fundador de Buenos Aires. Estava acompanhada de cinco franciscanos, tendo como superior Frei Bernardo de Armenta, natural de Córdova na Espanha. Dos outros frades se conhece o nome de Alonso Lebrón, natural das Ilhas Canárias.Em princípios de 1538, após infrutíferas tentativas de entrar no Rio da Prata, a nau Marañona foi arrastada pela tempestade e se refugiou no porto de São Francisco.
Desembarcando com seus companheiros, Frei Bernardo de Armenta não perdeu tempo e iniciou o trabalho de Evangelização. Foi auxiliado por três espanhóis da expedição de Caboto que tinham ficado na terra catarinense e que conheciam a língua nativa.
A 1°. de maio de 1538 Frei Bernardo escreveu a Juan Bernal Diaz de Luco, do Conselho das Índias espanholas:
"Isto aconteceu pela Divina Providência, pois aqui achamos três cristãos, intérpretes da gente bárbara que falam bem esta língua pelo longo tempo de sua estada. Estes nos referiram que quatro anos antes um nativo, chamado Esiguara (grafado também Etiguara, Origuara, Otiguara), agitado como um profeta por grande espírito, andava por mais de 200 léguas predizendo que em breve haveriam de vir os verdadeiros cristãos irmãos dos discípulos ao apóstolo São Tomé, e haveriam de batizar a todos. Por isto, mandou que os recebessem com amizade e que a ninguém fosse lícito ofendê-los"´.
Estas palavras deixaram os nativos muito impressionados. Esiguara desempenhara o papel de precursor. Em São Francisco, os frades encontraram este campo favorável devido a ele. Esiguara foi um tipo de pregador ambulante servindo-se de linguagem apocalíptica, que tão fundo calava na receptiva alma carijó. O campo estava fertilizado pela sua palavra. Também lhes ensinara entoar hinos e cânticos, através dos quais aprenderam a guardar os mandamentos e a ter uma só mulher de remota consanguinidade.
Quando chegaram os espanhóis, náufragos da expedição de Alonso Cabera, os Carijós julgaram que fossem os irmãos dos discípulos de São Tomé. Receberam-nos com muito amor, levando-os para as suas aldeias, dando-lhes comida e bebida e varrendo os caminhos por onde andavam.Alguns discípulos de Esiguara receberam os frases com incrível alegria e chegavam a ser chatos, no dizer do Frei Bernardo, com tantos agrados que faziam.
Continua o frade:"Tão grande é o número de batizados quase nada podemos fazer afora deste ministério. Nem para dormir ou comer há quase tempo. De boa vontade casam com uma só mulher e os que estavam acostumados a ter mais de uma, separam-se das outras. Os velhos, dos quais alguns tem mais de 100 anos, recebem com mais fervor a fé, e o que de nós aprendem, comunicam-no publicamente aos outros".
Frei Bernardo de Armenta viu que sozinho não daria conta do ministério. Entusiasmado, pediu que fossem enviados pelo menos 12 confrades de vida apostólica das Províncias de Andaluzia e dos Anjos, conforme escreveu ao Dr. Juan de Bernal Diaz de Luco:"São tão grandes as maravilhas que Nosso Senhor realiza entre eles que não saberia contar, nem haveria papel suficiente para descrevê-las. Portanto, em nome daquele amor que Jesus Cristo teve pelo gênero humano em querer-nos redimir na preciosa árvore da Cruz, pois toda a sua obra foi para salvar e redimir almas, e aqui temos tão grande tesouro delas, peço que V. Mercê assuma esta empresa como sua e fale a S. Majestade e a esses senhores do Conselho, para que favoreçam tão santa obra, e o favor será que nos enviem 12 frades de nossa Ordem de São Francisco, que sejam acolhidos, e que S. M. os peça na Província de Andaluzia e na dos Anjos. E encarregue S. M. aos provinciais destas Províncias que enviem frades como Apóstolos. E, além disso, que S. M. envie um feitor seu que traga trabalhadores que não tenham ofício de conquistadores."
Este último pedido é indicativo do projeto evangelizados de Bernardo de Armenta e Alonso Lebrón: pedem lavradores que não sejam conquistadores, e missionários que não acompanhem a Conquista. Conforme anotaremos depois, os dois frades tinham muito claro que o anúncio do Evangelho não podia se resumir a um apêndice da obra conquistadora, incapaz de se livrar da violência e da morte.Estavam convencidos, igualmente, de que o trabalho apostólico ultrapassava a fronteira nitidamente religiosa e se deveria fazer muito para a promoção do nativo:
"Venham também muitos camponeses com perito chefe agricultor, que mais proveitosos são do que os soldados, porque estes nativos devem ser convencidos pelo amor, não pelo ferro".
Dá importância às ferramentas, às espécimes de gado, ovelhas, sementes de cana-de-açúcar, algodão, trigo, cevada e todas as qualidades de frutas, sem esquecer de contratar também mestres de açúcar, para montar engenhos. Inclui também artistas.
Os lavradores que chegassem a São Francisco ou à Ilha de Santa Catarina deveriam estabelecer estreita colaboração com os nativos, que poderiam ajudá-los a plantar canaviais e lavrar as roças.A este projeto missionário deu o nome de "Província de Jesus".Podemos afirmar que, de um lado, Frei Bernardo de Armenta possuía entusiástico espírito apostólico e se achegou ao nativo sem preconceito, alimentado pelo amor e não pelo interesse; por outro lado, não escapou do projeto colonizador, ao pedir que chegasse agricultores andalusos para trabalhar as terras, das quais fatalmente os carijós passariam a ser servos, deixando de ser donos.
Tal entusiamo fez com que o chefe da expedição temesse perder os frases. Por isso, proibiu-os de saírem da embarcação, o que não amedrontou a Armenta e Lebrón, que ameaçaram Cabrera de excomunhão por violar a liberdade eclesiástica, o Direito Canônico e os privilégios franciscanos, pois não tinha autoridade sobre eles, que não foram enviados pelo Rei e nem socorridos pela sua Fazenda.
Quanto a eles, permaneceram no território catarinense, enquanto seus companheiros foram para o Rio da Prata. Então desceram ao sul, fundando uma missão entre os nativos carijós na região chamada Mbiaça (Laguna). Percorreram o litoral catarinense num raio de 80 léguas. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Páginas 60, 61 e 62, 2, 3 e 4 do pdf]
4.2 - O Mito do Pai Sumé
Em sua carta a Juan Bernal Diaz de Luco, a 1°. de maio de 1538, Bernardo de Armenta fala que Esiguara anunciava a seu povo que após ele "viriam os verdadeiros discípulos de São Tomé"."
Isto que dizer que já estava vivo no meio carijó o mito Apóstolo Tomé que teria estado na América e anunciado a Evangelização posterior. Estamos diante de um mito cujo desenvolvimento supõe o encontro de três tradições: a dos primeiros cristãos americanos, a dos primeiros frades e a dos jesuítas.
Os primeiros cristãos que chegaram à América devem ter utilizado o mito para convencer os nativos a aceitarem o Evangelho. No Paraguai, Perú, Bolívia já se tinha implantado o mito.Com a chegada de Frei Bernardo de Armenta e Alonso Lebrón, os nativos devem ter fundido neles a imagem mítica de São Tomé nas Américas. Os frades entendiam sua missão não como um trabalho estável, mas como preparação para a chegada de outros evangelizados, o que de fato ocorreu em 1539, com a chegada de seis franciscanos ao Rio da Prata. Isto confirmou as palavras que se colocavam na boca de São Tomé:
"Chegaram outros sacerdotes em suas terras, e que alguns virão apenas rapidamente, pera logo retornar, mas que os outros sacerdotes, que chegarão com cruzes nas mãos, esses serão seus verdadeiros padres, e ficarão sempre com eles, os farão descer até o rio Paranapané, aonde farão duas grandes reduções, uma na boca do Pirapó e outra no Itamaracá".
São exatamente os dos locais onde, naquele tempo, os jesuítas organizaram as reduções de Loreto e Santo Inácio. Neste momento já estamos diante da terceira tradição: a dos Jesuítas, que identificaram o mito do Pai Sumé (São Tomé) com os frades, com ele buscando legitimidade histórica e religiosa para seu trabalho.
Pai Sumé é o enviado de Deus que prepara seu caminho, que prega a Boa-Nova, que anuncia o estabelecimento definitivo do Cristianismo. Neste sentido, Lebrón e Armenta, andarilhos por Mbiaça, Itapocu, Campo, Ubay e Pequiri, formam um mito metade realidade, metade idealidade. Efetivamente os nativos identificaram Armenta com Pai Sumé.
Apenas três citações:
1) Pedro Durantes: "Depois, nesta casa e nas outras que encontrei pelo caminho em seis jornadas que andei pelo Campo, me receberam bem pelo que lhes dava, e porque os nativos que andavam comigo diziam que eu era filho do Comissário a quem eles chamavam de Pai Sumé".
2) Acusação do Fiscal, Licenciado Villalobos, contra Cabeza de Vaca, em Madri, a 20 de janeiro de 1546:
"Durante o caminho que Alvar Nuñes fez por terra, abandonou treze cristãos, dos quais dois morreram e os demais escaparam dizendo que eram filhos de Pai Sumé, que é o Comissionário Frei Bernardo de Armenta, frade da Ordem de São Francisco".
3) Lafuente Machan, na sua obra "Os Conquistadores do Rio da Prata", afirma que, ao morrer, Armenta era muito estimado pelos nativos, "que o chamavam de Pai Sumé".
Tudo isso reforça o significado que Bernardo de Armenta e Alonso Lebrón tiveram na evangelização da América latina, por seu trabalho iniciado entre os carijós em terra catarinense e nas vizinhanças de Assunção.
Com suas personalidades tornadas mito, muito contribuíram para o trabalho que os jesuítas implantaram entre os guaranis, nas Reduções. Foram precursores. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Páginas 64 e 65, 6 e 7 do pdf]
5 - Os bandeirantes: morte das missões5.1 - Prenúncio de morteEm 1551 esteve na Ilha de Santa Catarina o fundador de Assunção, Juan de Salazar. A 1o. de janeiro de 1552 descreve, em Mbiaça, o estado lastimável em que se encontrava a Ilha:
"Achei esta Ilha despovoada num raio de pouco mais de 10 léguas. Como há muito tempo não chegam vassalos de Sua Majestade, os portugueses vieram negociar com os nativos, dizendo que são castelhanos e de paz e assim encheram os navios e os levaram como escravos para vender em São Vicente e em outros lugares da costa, para os engenhos de açucar, causando grande prejuízo à terra, e a nós que viemos e aos que virão, e a Deus grande desserviço.
V. S. e outros, por favor, mandem-nos restituir os principais e os demais que o possam, pois os que ficaram clamam e pedem por eles, o que será motivo de grande graça a Nosso Senhor e a Sua Majestade. Respondi-lhes que o Imperador nosso senhor resolverá tudo, e nos fizeram e fazem muitas boas obras na esperança em que se encontram e, verdadeiramente, não sei o que teria sido de nós em nossas grandes necessidades, não fosse seu socorro.
Também encontramos aqui, entre esses nativos, um cristão que eu tinha enviado de Lisboa no ano de 1548, para que viesse a essa costa a fim de prevenir os nativos sobre como chegaria a armada e para que arrumasse abastecimento; ajudaram-nos muito com seu língua, pois não trazíamos nenhum e também encontramos outro cristão, Alonso Vellido, vizinho de Porcuna, pessoa honrada que veio com Cabeza de Vaca e, com sua licença, veio com Frei Bernardo de Armenta; quando o padre morreu o deixou recomendado aos nativos: estes dois cristãos evitam que os portugueses façam apresamentos ainda maiores. Deste modo, os portugueses tem procurado matar a estes dois cristãos, a fim de poderem enganar aos nativos." [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Página 65, 7 do pdf]
6 - Os Jesuítas e a Missão dos CarijósEm 1540 o papa Paulo III reconhecia a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola. Nove anos depois, em 1549. seis deles chegaram a Salvador, acompanhando a expedição de Tomé de Souza. Eram jovens pioneiros: Manoel da Nóbrega tinha 31 anos e José de Anchieta, quando chegou quatro anos mais tarde, apenas 19 anos. Pioneiros, porque foi no Brasil que iniciaram seus trabalhos apostólicos nas Américas. Só em 1576 passaram para o México e em 1586 para Tucumán na Argentina. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Página 66, 8 do pdf]
6.2 - De caçador a amigos dos nativosPero Corrêa foi o primeiro irmão recebido na Companhia pelo padre Leonardo Nunes, em São Vicente, em 1549. Português de nascimento, gastara bons anos de sua vida nas diversões, aprisionando e salteando nativos, mas era tipo em grande conta pela sua prudência. Era um dos principais moradores de São Vicente, e grande língua (intérprete) da terra. Em 1542 conseguiu a concessão de muitas terras, inclusivo da maior das três ilhas que estão diante de Peruíbe, para seu projeto de carga e descarga de naus.
Cansado e arrependido de sua vida de vícios e violências, decidiu consagrá-la a serviço dos nativos, dos quais tanto aprisionara e matara. Em 1553 doou todos os seus bens à Companhia. Em 1554 participou da missão fundadora de São Paulo de Piratininga, onde foi aluno de gramática de Anchieta.
Neste mesmo ano, Nóbrega enviou-o, juntamente com os Irmãos João de Sousa e Fabiano de Lucena, para prosseguir a missão junto aos carijós. Sua primeira missão seria estabelecer a paz entre os tupis e carijós e iniciar a catequese entre os ibirajaras. Partiram a 24 de agosto de 1554 para Cananéa, onde doutrinaram os nativos e livraram da morte um castelhano e um nativo cristão. A 6 de outubro seguiram para a terra carijó.
Estavam eles entre os nativos pregando o Evangelho e a paz quando, em novembro, apareceram dois intérpretes, o espanhol acima citado e outro português. O espanhol era conhecido dos jesuítas de São Vicente, por haver sido salvo quando, com uma concubina carijó, era prisioneiros dos tupis. Apesar de ter sido salvo de morte certa pelos jesuítas, o espanhol lhes devotava ódio mortal pois o tinham separado de sua concubina, que se casara com outro em São Vicente.
Para ele, chegara o momento da vingança: começou a embaraçar a missão de Pero Corrêa e João de Sousa, incitando os carijós à guerra contra os tupis. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Página 67, 9 do pdf]
6.3 - O primeiro encontro na LagunaEm 1596 chega a São Vicente um navio, trazendo 70 carijós apanhados numa emboscada. Entre eles estava Caiobig, irmão do cacique Facaranha. O fato era grave, pois quebraria a paz entre portugueses e nativos. O capitão recebeu ordem de devolvê-los, mas não teve coragem de fazê-lo "sem levar padres, a cuja sombra fossem melhor recebidos e andassem mais seguros".
Viajaram acompanhados pelos Padres Agostinho de Matos e Custódio Pires. A 4 de dezembro de 1596 chegaram ao porto da Laguna dos Patos. Plantaram uma cruz, e junto dela construíram uma capela. Os portugueses devolveram os nativos e o povo carijó ficou muito satisfeito com a presença dos missionários.
Anunciaram a boa nova aos outros que, de muitas léguas, alguns de 200, acorriam para ver os missionários. Abraçaram-nos com muito amor, derramaram lágrimas e pediram-lhes, ou que morassem entre eles, ou retornassem logo. Como não havia ali povoação de portugueses, os padres não acharam que fosse segura sua permanência. Retornaram a São Vicente.
6.4 - Planos para fundar uma residênciaO Padre Fernão Cardim, ao retornar de Roma trouxe a resolução de iniciar missões estáveis entre os carijós e até fundar uma Residência. Com esta finalidade, a 27 de março de 1605 partem de Santos os Padres João Lobato e Jerônimo Rodrigues, acompanhados de 7 nativos cristãos da aldeia de São Barnabé do Rio de Janeiro.
Após viagem cheia de peripécias e perigos, com para no rio São Francisco, onde encontraram um dos carijós restituídos na expedição de 1596, chegaram à Laguna a 11 de agosto. Foram recebidos por 17 nativos, que deram mostras de alegria, mas logo decepcionando os padres, pois queriam mesmo era receber presentes e resgates! Procuraram visitar as aldeias vizinhas, mas ficaram admirados porque os carijós davam o nome de aldeia a uma casa apenas...Quando acharam uma com duas casas, ali se detiveram para construir uma igreja. Era Embitiba, com seus nove ou dez moradores, alguns cristãos antigos, dos tempos de Frei Bernardo de Armenta.
No dia de São Bartolomeu, 24 de agosto de 1605, celebraram a primeira missa naquela terra. E escreve o Padre Jerônimo: "Tomou-se posse, da parte de Deus, de gente que o demônio tantos mil anos tinha em seu poder."É do Padre Inácio de Siqueira, em 1635, a poética descrição da Laguna:
"Chama-se este porto de Laguna, porque, como nele se ajuntam quatro rios caudais, para ir beber no oceano por uma só boca, e esta seja muito estreita, é força que hajam as águas de esperar vez e represar a sede, que trazem, de beber no salgado, por espaço de seis ou sete léguas, até que o mar dá entrada ao rio, que mais quer ainda, que as águas se vão todas de mistura. A esta represa, que aqui fazem os rios, chamam os carijós Alagoa. Toda a barra é muito dificultosa assim ao entrar como sair, e como nós não levávamos piloto, que lá tivesse entrado, foi o desejo que nos meteu de dentro mediante a divina graça."[A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Páginas 68 e 69, 10 e 11 do pdf]
6.5 - Ovelhas no meio dos lobos
Em 1617 os jesuítas resolveram retornar à terra dos carijós, nutrindo ainda o desejo de estabelecer residência estável entre ele. Vieram os Padres João Fernandes Gato e João de Almeida. Ao chegarem, perceberam alguma coisa no ar: os portugueses, por mensagens secretas, preveniram os nativos conta os padres, aconselhando-os a se acautelarem com aqueles dois homens, que eram mais e que, se chegassem a ouvir-lhes a voz, ficariam sem remédio seus escravos!Os moradores de São Vicente, Santos e São Paulo fizeram os maiores esforços para que a expedição fracassasse, pois temiam muito perder os postos de resgate, que lhes possibilitavam altos negócios.
Os nativos não lhes deram crédito e receberam os padres com festa e regozijo na Ilha de Santa Catarina. De toda a redondeza acorreram para saudá-los. Puderam os missionários pregar com muito fruto, passando-de logo para a Laguna e depois para Araranguá e Boipetiba, último posto de resgate usado pelos paulistas.
Além da pregação, curaram doentes, alguns com postemas perigosas, sangraram outros e instruíram os que estavam em perigo de morte, principalmente crianças, batizando-os em seguida.
Em Boipetiba (Mampituba), encontraram-se com o Caraibebê (Grande Anjo), um dos principais chefes do sertão do Rio Grande, temível feiticeiro, do qual diziam que não nascera de mulher e que dava aos filhos mais do que pediam para assim o temerem e obedecerem a qualquer recadinho. Igualmente puderam falar com os Arachãs.
O caminho da Laguna a Boipetiba foi feito a pé e adoeceram os dois padres, o Padre João Fernandes estando quase à morte. Ainda assim, da cama, "que eram quatro paus fendidos sobre quatro forquilhas, com uma pouca de erva em cima", atendia aos nativos, que também adoeceram. O principal da aldeia de Boipetiba, vendo que o padre não melhorava e temendo que morresse em sua casa, o que era considerado de mau agouro, pediu que o botassem foram. Mas, escreve o Padre João de Almeida, "livrou-o Deus desse trabalho com a saúde que lhe deu."
Esta missão teve os melhores frutos, vindo milhares de nativos ao encontro dos sacerdotes. Certamente eles representavam para os carijós o único caminho de liberdade, pois "queriam ter perpétua amizade com os portugueses, mas viver sob o patrocínio dos padres."
Esperavam os jesuítas descer com uns três ou quatro mil nativos e para isso escrevem a Salvador Correa de Sá pedindo farinha a embarcações de alto bordo até outubro de 1618. Mas até janeiro do ano seguinte não chegou nada, por culpa de alguns moradores de São Vicente e de Cananéa, que queriam a qualquer preço acabar com a missão.Quando esses perceberam que, mesmo assim, os padres iriam viajar com os carijós, enviaram duas canoas, uma antes e outra ao mesmo tempo, com recados para seus "compadres" como o grande Tubarão, o Conta-Larga, o Papagaio, o Grande Anjo. Os recados falsos diziam que os padres iriam buscar os nativos para os repartir, levar para Portugal e outras terras mais distantes, vendê-los e maltratá-los.
E chegaram ao desplante de se dizerem emissários de Salvador Corrêa de Sá e de seu filho. E influenciaram os nativos, que voltaram atrás, mas pedindo que os padres ficassem com eles ou mandassem outros. Com muita tristeza, João Fernandes Gato e João de Almeida se despediram. Junto viajaram embaixadores dos nativos, para pedirem outros sacerdotes ao provincial Simão de Vasconcelos. Chegaram ao Colégio do Rio de Janeiro em 23 de março de 1619. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Páginas 69 e 70, 11 e 12 do pdf]
6.6 - Em Defesa da vida para todos Em 1622 organizou-se uma nova expedição, com a decisão de levar adiante a Residência. Foram escolhidos os Padres Antonio de Araújo, que acabara de publicar o "Catecismo da Língua Brasília", e novamente João de Almeida. Em 1624 vêm o Padre Pedro da Mota e o Irmão Pero Domingues, com o objetivo de retornar com o Padre João de Almeida que não se sentia bem e tinha problemas pessoais de relacionamento com o Superior, Padre Araújo.
Foram incansáveis no meio de um mundo tumultuado pelos brancos, que ali iam com o fim único de exploração humana e se serviam de astúcias, violências e injustiças para prejudicar a missão. Chegaram à Laguna e na terra firme construíram uma casa para as missas e os demais Sacramentos.
No princípio os nativos se mostraram duros e desconfiados. Num dia, porém, foi proferido um sermão sobre a importância do Batismo, mostrando-de de uma parte o fogo do inferno e de outra os bens da glória eterna. A graça tocou de tal modo aqueles corações que, com lágrimas nos olhos, muitos pediram o batismo.
Após oito dias de intensa catequese, 200 foram batizados. Tomaram tal afeição aos padres que muitos morando uma légua distante da igreja, não perdiam Missa nos dias santos, mesmo em tempo de muito frio e chuva. Causou a maior impressão a conversão de um grande cacique, famoso pelos assaltos praticados contra os guaianazes. De joelhos pediu o Batismo e abominou publicamente todas as suas valentias passadas.
De passagens pelas aldeias, detiveram-se nas terras do Tubarão, onde 27 receberam o Batismo. Tubarão veio ao seu encontro e recebeu dos padres toda uma motivação para se converter. Declarou, porém, sobranceiro:
"O Batismo era para crianças e Deus não criara para o céu, mas para morador da terra; era testemunha e prova da qual verdade, que o pusera nesta e não naquela."
Numa grande doença, porém, o Tubarão esteve para se batizar. Não foi aceito, por não demonstrar as disposições necessárias. Voltando a doença, novamente pediu o Batismo, não convencendo os padres, que não confiavam na firmeza de sua fé, permanecendo no sertão como antes. Batizaram, porém, dois de seus filhos.
Caminhando sem cessar, cuidando sempre da pregação, visitando os enfermos, provendo-os com o que podiam e sangrando-se, batizando os que estavam em perigo de vida, chegaram à aldeia do Caibi, já em pleno Rio Grande do Sul, onde tencionavam fundar uma grande aldeia cristã. Ali quiseram ajuntá-los, para viverem comunitariamente, mas os nativos já tinham sido predispostos pelos portugueses, que não os queriam vivendo juntos, o que dificultaria o trabalho de levá-los cativos.
Igualmente o Anjo, grande feiticeito, lhes disse que o demônio tinha prevenido que, se os padres entrassem em suas terras, suas artes não teriam mais efeito. Mandou recado aos padres que não passassem adiante, nem fossem às suas terras.
Era o ano de 1626. A grande aspiração dos jesuítas, de estabelecer uma Residência, ia ser frustrada pela ação do Anjo e, sobretudo, dos escravizadores que não tardariam a chegar às aldeias, destruindo-as onde quer que as encontrassem. Esses homens, cristão também (!), impediram tanto o trabalho missionário como a colonização do Rio Grande do Sul.
Os padres voltariam à Laguna e dali mandariam notícias ao Rio de Janeiro. Então o Padre Francisco Carneiro, reitor do Colégio, preparou-se para vir em pessoa e com poderes para resolver os problemas, manter ou suprimir a Residência. Trouxe consigo alguns nativos da aldeia de São Barnabé, entre eles Silvestre, homem de confiança. Em São Paulo, agregou mais alguns e o Padre Manuel Pacheco e o Irmão Francisco de Morais, que iniciava sua carreira de grande sertanista.
A 5 de abril de 1628, chegaram à Laguna dos Patos recebidos pelos Padres Antonio de Araújo e Pedro da Mota, que vieram esperá-los à entrada do porto, com cinco canoas cheias de nativos. O padre Francisco Carneiro foi logo se inteirando da situação. Soube que pouco antes a aldeia tinha sido atacada por Mbaetá, irmão do Tubarão.
Enviou Silvestre a falar com o Anjo. Contatou também com outros chefes, como Bacaba, Boipeba, Maracanã e Aberaba. Aberaba viera d sertão distante 50 léguas e depois acompanhará os padres com o nome, cristão e prestigioso, de Matias de Albuquerque. Também foi informado de que andava por ali um mulato fugido, pombeiro e porta-voz dos escravistas, e cujos conselhos e perfídias estragavam tudo.
Com todas essas notícias, o Padre Carneiro resolveu retornar com os padres e os nativos que quisessem acompanhá-los, dizendo-lhes que era melhor irem para o Rio de Janeiro, onde poderiam viver com segurança. Os carijós se impressionaram pouco com as motivações. Um deles, porém, Boipeba, afirmou que não era bom ser feito cristão para depois viver como pagão e que ele, por amor de sua terra, tinha anteriormente pedido aos padres que ficassem com eles; agora, na impossibilidade de ficarem, os acompanharia com a sua família.
Entretanto o Padre Pedro da Mota, o Irmão Francisco de Moraes, Silvestre e mais alguns nativos tinham-se internado pelo sertão, numa viagem de 16 dias, longe da Laguna, a fim de ajuntar e persuadir os nativos a irem com os padres. Nesta dolorosa viagem por frios e desabrigados caminhos, com os trabalhos "que tiveram, de lavar, servir, amparar e ainda trazer às costas os doentes", foram surpreendidos por um "andaço de febres malignas". Adoeceram também eles.
Faleceram alguns nativos e o próprio Padre Pedro da Mota. Depois de 12 dias de doença e de receber os Sacramentos, expirou numa terça-feira, 30 de maio de 1628. No mesmo dia foi enterrado na capela da igreja, defronte do altar, em um caixão de cedro.
"E assim confiamos lhe terá o Senhor dado o prêmio de seus trabalhos, em particular deste último, que por amor e por obediência e bem do próximo, padeceu até das a vida", escreveu o Padre Carneiro.
O chão de Laguna, que já recebera o corpo de Frei Bernardo de Armenta, recebia agora o do Padre Pedro da Mota.
Os padres encetaram a viagem de retorno, levando consigo mais de 400 nativos. Quando estavam na Ilha de Santa Catarina, receberam notícias assustadoras sobre os escravistas, os preparativos da expedição de Manuel Preto e Antonio Raposo Tavares, tormenta que em breve iria abalar toda a Capitania de São Vicente e o trabalho missionário, que praticamente seria destruído.
Na Ilha chegaram dois patachos, afora um que já por ali se encontrava, carregados de quase 50 compradores de carijós. Olharam os padres com ódio, mas conformados, pois esses nativos, que com eles iam, ainda não tinham sido pagos.
O Padre Carneiro insistiu com eles para que fretassem um dos barcos até Cananéa, pois assim a viagem seria menos longa e penosa. Com desprezo, negaram o pedido.Partiram a 14 de julho, no mesmo dia, chegando à Enseada das Garoupas (Porto Belo), onde se abasteceram de peixe e outros produtos que ali se encontravam com mais facilidade. Permaneceram nas Garoupas 9 dias, quando tiveram que se dividir: o Padre Antonio de Araújo e o Irmão Francisco de Morais iriam por terra, com 220 almas e as canoas para os mantimentos e as passagens dos rios; e os padres Francisco Carneiro e Manuel Pacheco, na barca, com 185.
Esses últimos partiram a 24 de julho, chegando à Cananéa no dia 28, onde se detiveram por 23 dias, sendo muito bem acolhidos pelos moradores. Novamente se colocou o problema de uma embarcação. Tentaram em Santos, junto ao Padre Francisco da Silva, Vigário da Vara. Este, porém, exigiu um preço muito alto, o que faria a viagem importar em inexistentes 400 cruzados. Por fim, dois moradores cederam gratuitamente suas embarcações.
Chegando Em Santos, viram o pouco gosto dos moradores pelo fato de os nativos serem levados para o Rio, quando seria melhor para suas fazendas que ficassem por ali mesmo. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Página 71, 13 do pdf]
6.8 - O coração e a fé carijó
Padre Siqueira os julga o nativo mais dócil do Brasil, "assim nas feições e proporção dos corpos como naqueles dotes que ficam na fundição da alma".
Sua mulheres são a mais vem honestamente cobertas, as criancinhas são muito bem vivas e hábeis em gravar na memória as lições da catequese. Uma menina recitou de memória a Ave-Maria, após tê-las escutado apenas três vezes. Há outras que sabem de cor todo o Catecismo.
São devotíssimos da Confissão, acusando-se de faltas insignificantes. Pode-se conhecer a proximidade da morte de um doente pela sua confissão, pois se acusa com tanta contrição e afeto da alma que parece estar sendo preparado por Deus. Quando cometem mesmo um só pecado, não esperam o domingo para acusação: acorrem logo ao confessionário. Também no início de qualquer enfermidade pedem a Unção dos Enfermos. [Página 72]
IV - Rito do casamento (anterior ao Concílio de Trento - 1545-1563)
O casal de noivos está na igreja e tem início o ritual.1. Pregão: o sacerdote proclama quem vai se casar.2. Anúncio dos impedimentos. São 24 impedimentos dirimentes, isto é, que tornam o casamento nulo. Transcrevemos apenas alguns, mais indicativos da vida familiar nativa:
- o que se casa com medo da morte ou de algum grave e ruim tratamento, ou contra sua vontade ou imposição do pai, mãe, ou parente que o faz casar, não fica casado, deve separar-se; - o que furtou alguma mulher à força, com intenção de casar com ela, não pode com ela casar enquanto assim a tiver e a não restituir; - o pai, ou mãe carnal não pode casar com algum filho, ou filha, neto, ou neta, ou descendente seu;
- os que se concertaram para matar ou mandar matar a mulher, ou marido de algum deles mesmos, seguindo-se a morte, não podem casar um com outro, ainda que não houvesse cópula precedente ou subsequente a tal concerto; - o casado que matou ou fez matar a mulher ou marido para se casar com o qu efoi seu cúmplice no adultério, não pode se casar com ele, ainda que o tal cúmplice não soubesse, nem desse consentimento para tal morte;
- o casado que antes de consumar o matrimônio se calou e consumou com outra, nem ainda depois da morte da primeira pode casar com a segunda; - o desposado que dormiu com a irmã ou mãe da sua esposa não pode casar, nem com a esposa, nem com a mãe, ou irmão ou parente no quarto grau;
- o forro (liberto) que se casa com a escrava, ou vice-versa, pensado que é forra, não fica casado. Apartamos os tais e casamo-los com outras; - o impotente não pode casar. Se casar, há de se apartar;
Os impedimentos expressam uma preocupação minuciosa de mudar o sistema da vida conjugal nativa, situando-a na moral cristã. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Página 75]
6.10 - Fracassa a MissãoNa Laguna, a expedição missionária de 1635 encontrou ancoradas 62 embarcações dos paulistas, que nesse ano retornaram para a compra de carijós. Quinze eram navios de alto bordo e as demais, canoas muito possantes. Com eles, os de São Paulo esperavam levar cativos uns 12.000 carijós, pelas contas do Padre Siqueira.
Quando os padres arribaram com o Santo Antônio, ali estavam 600 brancos escopeteiros, que sentiram sua presença como um arpão no coração, pois os padres eram o amparo do carijó. Apavorados com a possibilidade de os missionários deixarem-nos retornar sem presas, tramaram queimar o navio, ou afundá-lo, ou prender os padres, ou deixá-los ajuntarem-se aos nativos para depois os repartirem entre si.
Neste momento perigoso os padres se encheram de coragem e fizeram tais ameaças de inferno que os homens se recolheram às suas embarcações esperando hora melhor.
Andando algumas léguas pela praia, encontraram uma aldeia tomada pelo sarampo. A maioria dos nativos estava mora, não restando vivos mais de 100, aos quais catequizaram e ministraram o Batismo. Esta aldeia pertencia ao Terreiro Espantoso, desolado por não ter podido espantar o sarampo, ele que espantara tantos outros males.
Os padres ficaram sabendo que seu filho, mais velho "nunca tinha mamado na mãe nem em outra mulher e nascera com todos os dentes"... Perguntaram à suas mãe como tinha criado o menino, se não lhe dera leite, e ela respondeu: "com mel, com papinhas, e outras potagens..."
O Terreiro Espantoso não perdeu a oportunidade de mostrar seu poder. Vendo alguns nativos pescarem numa lagoa, pediu que repartissem o peixe com ele. Como não aceitaram disse: "Ora passem embora, que eu lhes tirarei as águas onde eles pescam o peixe."
E, daí a pouco, as águas se recolheram com tanto ímpeto, que levaram consigo muitas casas, matando moradores. Depois dessa, os padres resolveram deixar o Terreiro Espantoso por lá mesmo, pois seria muito perigoso levar no navio "um tão grande amigo de Lúcifer"!
Continuando, o cronista afirma que toda a Província dos carijós estava dividida entre dois donos: o Anjo, e um parente seu, o Grande Papagaio (Marunaguaçu). O Anjo, com toda a sua mística de poderoso e bafo santo, tinha dominado a região norte e se tornara grande amigo dos paulistas, o que significa a sua transformação em agenciador do comércio escravo. Negociando por um espaço de 20 anos, vendera como escravos a 120 mil nativos!
Para poderem ter prisioneiros para o comércio, inicialmente os carijós fizeram guerra a outras tribos. Depois passaram a vender seus irmãos mais do interior. Os paulistas muito ganharam com essa colaboração. Quando os nativos começaram a perceber os enganos que eram vítimas, o litoral já estava bastante despovoado. Então os paulistas entraram sertão adentro, já não mais comerciando e sim capturando pela força da espada. Invadindo as aldeias, tomaram as mulheres mais bonitas, os jovens e crianças mais sadias, separando pais e filhos, maridos e mulheres.
O Padre Siqueira narra que, em sua estada na Laguna, em alguma praia vira um traficante descendo com muitos nativos, porém 200 deles tinham morrido de fome e frio. Com tanta perda, retornou ao sertão para buscar outros. Deduz o padre que para os portugueses eram necessários dois, para terem depois um escravo.
Acontecia que as crianças não podiam acompanhar o passo dos adultos e então, para os pais não se deterem e se preocuparem com elas, o traficante lhes partia a cabeça... E, na ganância de embarcarem muitos, os paulistas "de tal maneira os apertam e cozem uns aos outros, que jamais se podem deitar nem dormir, salvo meio assentados".
Por este motivo, alguns navios que partem com 300 ou 400 deles, chegam à Capitania quase vazios, com não mais de 30 vivos. E dentro de um ano morrem outros ainda, não suportando o miserável cativeiro.
Enfim, ironia da história, também o Papagaio, após tantos anos de serviços prestados vendendo seus irmãos, não tendo mais de 150 na sua aldeia, dos 1200 que eram, veio refugiar-se junto aos padres. Estava amedrontado. Queriam os traficantes fazer também dele um cativo! Fugindo, no caminho foi salteado pelos paulistas que lhe roubaram mais gente ainda, mas conseguiu chegar aos braços dos missionários. Estes, recolhendo nativos onde encontraram, chegaram ao porto da Laguna.
Como não tivessem mantimentos, pescaram e torraram peixes para fazer farinha e biscoitos e ajuntaram muitos palmitos. Com medo de algum assalto, partiram logo.
Durante a viagem, doutrinaram os nativos pela manhã e pela tarde, com muito proveito. E assim, sem perderem um só, chegaram à aldeia de São Francisco Xavier, de onde tinham partido. Ali muitos foram batizados, inclusive o Papagaio, que tomou o nome de seu padrinho, Rodrigo de Miranda Henriques, Governador do Rio de Janeiro. [A Evangelização em Santa Catarina. Parte I: Vida e Morte no Mundo dos Carijós (1500-1650), 1996. Padre José Artulino Besen, professor de História da Igreja. Páginas 77 e 78, 19 e 20 do pdf]