“Faço saber aos que esta minha carta de sesmaria vierem...”: estudo sobre a distribuição temporal da concessão de terras rurais na Capitania de São Paulo, 1568-1822, 2009. Nelson Nozoe - 01/01/2009 de ( registros)
“Faço saber aos que esta minha carta de sesmaria vierem...”: estudo sobre a distribuição temporal da concessão de terras rurais na Capitania de São Paulo, 1568-1822, 2009. Nelson Nozoe
2009. Há 15 anos
dois pedidos, os irmãos alegaram que haviam perdido o tempo para confirmarem-naspor causa de andarem occupados na abertura do caminho das novas minas do Cuiabá,a serviço de Sua Majestade.26 Motivo semelhante alegou José Madeira Salvadores. Este,morador na Vila de São Paulo, obteve do mesmo governante uma nova via dodocumento de doação de uma gleba de légua em quadra na Freguesia de Cotia,anteriormente expedido por D. Pedro de Almeida, mas que o beneficiário, por terassistido nas Minas Gerais e haver tido algumas doenças, perdera o prazo paraconfirmá-la.27
Em todos os casos citados, os requerentes observavam invariavelmente que a sesmaria era lavrada por familiares e alentada escravaria e pagavam o dízimo a Deus, de que resultava conveniência para a Fazenda Real. Tais fatos eram igualmente mencionados na maioria dos pedidos de carta de sesmaria de terras – com ou sem títulos, confirmados ou não – havidas por herança, doação, compra e arrematação em hasta pública ou em praça dos ausentes, e outros meios similares que envolvessem mudança e/ou supressão de beneficiários. Muitos pedidos decorrentes de herança recebida por falecimento dos pais não deixam de causar estranheza posto tratar-se de concessão feita para que o agraciado possuísse [...] como couza própria , tanto elle, como todos os seus herdeiros ascendentes, e descendentes [...].
Em 1725, o coronel Domingos Rodrigues Affonseca Leme requereu uma nova carta para o lote de uma légua em quadra localizado no caminho de Caucaya, distrito de Sorocaba, que lhe deixara sua mãe, Dona Antonia Pinheiro Raposo. Dezenove anos antes, a falecida havia adotado procedimento semelhante para obter confirmação do capitão-general da Capitania Rio de Janeiro, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, após a morte de seu pai, o mestre de campo Antonio Raposo Tavares. [O trecho citado em itálico foi colhido no documento de doação feita ao coronel Domingos Rodrigues Fonseca Leme. Carta de 15 de junho de 1726. Sesmarias, v. 3, p. 18-21 e carta de confirmação de 10 de abril de 1706. Documentos Interessantes, v. 52, p. 9]
Por conta da inexistência de um documento público alternativo legalmente reconhecido, simples desmembramentos, aumento ou diminuição nas dimensões da gleba, alteração de suas confrontações etc, davam ensejo a novos pedidos.
O capitão-mor José de Góis e Moraes informou em petição encaminhada a Rodrigo César de Menezes, concernente a uma área de uma légua e meia em quadra entre os rios Hyapó e Itajoacoca, que se tratava da separação de uma sesmaria, onde o suplicante assentara uma fazenda de gados, e que outrora havia sido dada a ele, a seu pai, o capitão-mor Pedro Taques de Almeida, e a seu cunhado, Antonio Guedes Pinto, pelo governador D. Álvaro da Silveira e Albuquerque. [Carta de 7 de junho de 1725. Sesmarias, v. 3, p. 43-6.]
Em decorrência da falta de um diploma alternativo de propriedade legalmenteaceito, a carta de sesmaria serviu, na perspectiva dos suplicantes, a diferentespropósitos, tanto como instrumento de aquisição ou modificação de direitos, assimcomo meio de resguardo ou prevenção contra a ação, efetiva ou potencial, de invasores.Para tanto, incorriam em despesas e sujeitavam-se a morosos trâmites, cujos resultadoseram incertos.30 Não são poucos os relatos de extravio e desencaminhamento de papéis ou mesmo indeferimento encontrados nos documentos compulsados. Anexo ao ofício de20 de dezembro de 1766, o Morgado de Mateus enviou ao conde de Oeiras algunsrequerimentos de sesmarias encontrados na Secretaria e que não haviam sido deferidospor serem contrários às ordens vigentes.
Entre eles, incluía um, encaminhado por Pedro da Silva Quevedos, morador na Vila de Sorocaba, no qual solicitava a doação de uma gleba de uma légua e meia de comprido e três quartos e uma légua de largo na estrada para Curitiba, onde pretendia constituir uma fazenda de gado. As terras haviam sido compradas e se achavam já ocupadas por vários moradores. O governante esclarece que havia recusado o pedido por diminuirem-se os moradores desta Capitania de que há grande falta, ficando desarranchados e dispersos pelos matos [...].31 Em outra correspondência àquele ilustre destinatário, o governante paulista sugeria que
Atendendo à conveniência do Povo de que sempre he mayor numero, e que esse pela sua pobreza muitas vezes não tem o dinheiro para pagar os despachos de huma Carta de Sesmaria, e por outra parte lhes he dificil juntar-se a outros pelas differenças que de ordinario ha, ou pelas distancias em que vivem para juntos tirarem entre si huma Carta de Sesmaria de que se pagão emolumentos não só nesta Secretaria mas também na confirmação no Conselho Ultramarino, ficam por esse modo precisados e formam citios volantes [...] que para os pobres houvessem humas datas de terras pequenas com emolumento proporcionado nesta Secretaria com que os pobres podessem possuir com titulo justo [...] sem dependencia de as mandarem confirmar, ficando essa obrigação somente para aquelles que quizessem tirar datas avultadas para Fazendas mayores como té agora se pratica [...].32
As dificuldades para obtenção de diplomas legais acabavam por acarretar umgrande número de propriedades sem títulos, simples posses. Não obstante, ao mesmotempo, verificava-se um “desvirtuamento” dos propósitos originais das cartas desesmaria – a transferência de terras do domínio público para as mãos de particulares,com o objetivo de torná-las produtivas e, assim, gerar rendas para o Estado –, que, emlarga medida, passaram a formalizar, particularmente nas zonas de ocupação maisantigas, operações realizadas entre particulares, principalmente por intermédio dedoações, heranças e compras.33 Em conseqüência, o instrumento jurídico perdia, aolongo do tempo, suas funções originais para se tornar numa espécie de indulto.
A confirmação das Cartas de Sesmaria
A confirmação da carta de sesmaria representava – ao lado do cultivo – uma providência crucial para assegurar o domínio sobre as terras perante a Coroa; seu cumprimento imprimia segurança ao sesmeiro na medida em que as terras recebidas deixavam de incorrer no risco de serem declaradas em comisso, isto é, em falta, e, por isso, sujeitas a serem tidas por devolutas e, portanto, passíveis de doação a outros. Consoante vários autores, a obrigação foi instituída, no tocante às sesmarias, por meio da carta régia de 23 de novembro de 1698.
De fato, na série dos Documentos Interessantes consta uma ordem geral, que manda d´ora em diante se declare nas sesmarias de terras que os capitães-mores concedem serão obrigados a pedir confirmação real, em prazo determinado segundo a distância do reino, para evitar danos que podem resultar da repartição desigual. Todavia, somente doze anos depois encontramos em na amostra trabalhada o primeiro documento de doação com tal exigência.
Antes daquele ano, foi localizada uma única carta, datada de 7 de abril de 1706, na qual o governador do Rio de Janeiro, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, confirmou, a pedido de D. Antonia Pinheiro Raposo, uma doação feita havia mais de setenta anos, pelo capitão-mor da Capitania de São Vicente, Antonio de Aguiar Barriga, ao marechal de campo Antonio Raposo Tavares, que recebera hua costa de terras que estão hindo para o certão pelo caminho de Cahancaya de um rio chamado Nhadipahyba [...], onde estabelecera uma fazenda com lavouras.
Tudo indica ter sido uma confirmação indevida, posto que se tratava de uma atribuição real. O signatário refere-se ao documento de confirmação como uma carta de sesmaria, embora nela não tenha feito incluir a cláusula de confirmação. Esta carta foi excluída da análise feita no presente tópico.
Na carta de sesmaria que trata da doação feita por Antônio de AlbuquerqueCoelho de Carvalho, capitão-general da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, aThomé Rodrigues da Silva e Maria Leite, moradores na Vila de São Paulo, encontra-sea primeira referência à obrigação de confirmá-la. No documento em tela – referente auma gleba que teria meia légua de testada e outra meia de sertão, onde o casal tinha seusítio e casas de vivenda na paragem chamada Tatuapé e Piquiri, nas cercanias do TietéAnhembui, no termo da vila, em 10 de julho de 1710 –, sem menção a qualquerdeterminação régia, lê-se que [...] serão obrigados os ditos Thomé Rodrigues da Silva eMaria Leite a mandar confirmar esta carta de data por Sua Magestade que Deusguarde dentro de três annos pelo seu Conselho Ultramarino [...].36 Poucos dias antes daemissão do título atinente àquela concessão, o mesmo governante havia fornecido umacarta a favor de José Alves Lanhes, agraciado com uma légua em quadra no caminhonovo para as Minas, que não trazia inscrita a referida obrigação. Como todas as demaiscartas anteriores, mencionava-se apenas um decreto de 22 de outubro de 1698,antecedida da declaração de compromisso do beneficiário de que [...] cultivarão epovoarão as terras dentro de dois anos e não o fazendo neles ou se venderem a quem ascultive se lhe denegara mais tempo e se julgarão as ditas terras por devolutas paraquem as poça cultivar e se darem de sesmaria na forma da ordem de S. Mage.37 Ocapitão-general Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho foi justamente odestinatário da carta régia de 15 de novembro de 1711 que, além de limitar o tamanho enúmero de concessões no caminho novo para Minas, estabeleceu que as cartas deveriamser confirmadas no tempo devido.38Títulos coevos de doação passados por governadores da Capitania do Rio deJaneiro também não estampam aquela exigência. Neste caso se enquadra a carta de 25de dezembro de 1710, do governador Francisco de Castro Moraes, que concedeu aomarechal de campo João de Paiva Souto Maior, uma légua em quadra no caminho novopara Minas.39 Apenas a partir de 1713 o requisito em foco começou a fazer-se presentenas cartas que, tendo sido outorgadas por governantes fluminenses, foram contempladas [“Faço saber aos que esta minha carta de sesmaria vierem...”: estudo sobre a distribuição temporal da concessão de terras rurais na Capitania de São Paulo, 1568-1822, 2009. Nelson Nozoe. Páginas 9, 10 e 11 do pdf]