Memória Paulistana: Os antropônimos quinhentistas na vila de São Paulo do Campo, Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, professora associada de Toponímia Geral e do Brasil do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da FFLCH - USP - 21/10/2022 de ( registros)
Memória Paulistana: Os antropônimos quinhentistas na vila de São Paulo do Campo, Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, professora associada de Toponímia Geral e do Brasil do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da FFLCH - USP
21 de outubro de 2022, sexta-feira. Há 2 anos
Os primeiros povoadores. Os antropônimos
A vila de São Paulo, instalada na segunda metade do quinhentismo, em terras de "serra acima", também conhecida pelos locativos São Paulo do Campo - mais raramente, São Paulo de Piratininga - e Piratininga, fato comum na correspondência de Anchieta, estruturou-se em torno de comportamentos sociais controvertidos e até mesmo discutíveis, de um certo ponto de vista. [Página 2 do pdf]
O Diário de Pero Lopes revela topônimos de origem hagionímica: "monte de Sam Pedro", "monte de Santa Ana", "ilhas de Santo André", "cabo de Sam Martinho", "rio de Sam João", "porto de Sam Vicente", alguns por força do calendário romano obedecido, outros pela força da fé. O costume, entretanto, era esse.
Situado, assim, em seu contexto, esse homem deveria carregador consigo, para onde se deslocasse, toda a mística de um mundo ordenado teocentricamente. A colônia d´além mar conheceu tal identificação; a frota de Martim Afonso era, por certo, composta por alguns homens que comungavam tais interesses:
Os Góis (Pero, Luís, Scipião), os Adornos (Francisco, Antonio e Paulo Dias Adorno), os Cubas (João Pires Cubas, Brás e Antonio Cubas, Francisco e Gonçalo Nunes Cubas), os Lemes (Antão e Pedro), os Pintos (Rui, Francisco e Antonio), os irmãos Jerônimo e Domingos Leitão, Diogo Rodrigues, Baltazar Borges, Brás Esteves ou Teves, Antonio de Oliveira, Antonio Rodrigues de Almeida, Antonio de Proença, Jorge Pire, Jorge Ferreira, Pero de Figueiredo, Cristovam Monteiro, Cristovam de Aguiar de Almeida, Pedro Colaço.
Aportando em terras do antigo Engaguaçu, alguns se estabeleceram na marinha, a destinação primeira, outros ao que parece, teriam influenciado a formação dos primeiros troncos de serra acima, o que pode ser deduzido da verificação de apelidos comuns ou idênticos na vila de São Paulo. Assim aconteceu, por exemplo, com os Cubas, os Lemes, os Pires, os Leitões, talvez os Rodrigues. Os Góis, sem dúvida, ficaram no litoral, amigos que eram de Martim Afonso. Seriam "fidalgos da Casa Real", até ostentando um "brasão d´armas".
Pero de Góis, "fidalgo honrado e muito cavaleiro", recebera do Capitão Mór, em 10 e 15 de outubro de 1532, as duas primeiras sesmarias de terra, uma em São Vicente, fronteira a Engaguaçu, e a outra, em Piratininga.
Em São Vicente, levantou o primeiro engenho de açúcar do sul, o "Madre de Deus". Loco-tenente de Martim Afonso, primeiro Capitão Mór da Armada de São Vicente, Capitão Mór da Costa brasileira, são seus títulos administrativos. Carvalho Franco, contrariando Pedro Taques, diz que ele não terminou os seus dias em São Paulo, o que não impediu de os reflexos de sua ação, como sesmeiro no Planalto, influenciarem toda a vila:
"Ele agiu nas primeiras repressões regulares contra os carijós e tupiniquins contrários do Tietê, na expulsão definitiva dos castelhanos do litoral vicentino e principalmente na implantação da indústria açucareira na capitania."[Páginas 2 e 3 do pdf]
Frei Gaspar e Pedro Taques são omissos quanto à descendência de Pero de Góis. Falam que seu irmão Luís, morador em São Vicente, trouxera para o porto a mulher, Catarina de Andrade e Aguilar e o casal primogênito Scipião, mas aí não tendo ficado por muito tempo, o casal partindo com a armada de Pero de Góis (1553) e o filho aventurado-se no Paraguai.
(...) Destes Leitões, as honras parecem ficar com Jerônimo, "o mais ativo guerrilheiro de nativos do século XVI", na vila de São Paulo. Capitão Mór e Governador de São Vicente (1572), chefiou expedição contra os carijós do sul, em incursão por mar, conseguindo envolver na empreitada grande parte dos moradores do Campo. Deixou filhos, dos quais a quarta se casou com Antonio Pedroso de Barros, "pessoa de qualificada nobreza" para Pedro Taques, vinda de Portugal com o irmão Pedro Vaz de Barros, diretamente para o porto.
Chegaram ambos com provisões régias, Antonio indicado para Capitão Mor Governador da Capitania de São Vicente e São Paulo, e Pedro, Ouvidor, o qual, em inícios do seiscentismo, "pela sua grande autoridade e merecimento de sua pessoa fora encarregado de governar a gente da vila de São Paulo e seu termo". Não cita o cronista a descendência de Antonio, mas os Pedrosos seguramente permanecem em São Paulo através dos filhos do Ouvidor Pedro, frutos de sua união com Luzia Leme, membro de outro clã importante na genealogia paulistana. [Página 4 do pdf]
Os Cubas, Brás, Gonçalo, Antonio e Francisco, foram filhos de João Pires Cubas, nobre português da cidade do Porto, também vindo na armada de Martim Afonso diretamente para São Vicente. É fora de dúvida que a presença de Brás Cubas dominou todo o cenário da marinha nos primeiros anos quinhentistas.
Imediatamente à chegada a Brasil, recebeu do Capitão Mór a sesmaria de Piratininga (10 de outubro de 1532), donde sua ligação com o Planalto. Depois, em 1536, as terras da sesmaria de Geribatiba, "fronteiras a Engaguaçu", que chegavam, para alguns, até o Piqueri, com uma ilha que levou o nome do sesmeiro, também chamada do Barnabé.
Como retribuição, foi nomeado para o cargo de Capitão Governador da Capitania, ao lado de outras honrarias com que foi distinguido (Provedor e Contador das Rendas e Direitos da Capitania, em 1551, Provedor e Contador das Renas, Capelas, Confrarias, Albergarias e Gafarias de São Vicente, em 1563).
Guerreiro, participou da defesa da vila de São Paulo contra os ataques de 1562 e, como sertanista, organizou a expedição exploratória de minérios, integrada, entre outros, por Luiz Martins, que encontrou ouro talvez em Jaraguá. Este Luiz Martins teve, por sua vez, participação na primeira Ata da Câmara de São Paulo que se conhece, como procurador do conselho, ao lado de outros nobres camaristas, Antonio Mariz, juiz ordinário, Jorge Moreira, Diogo Vaz Riscado, Garcia Rodrigues, vereadores. Foi também alcaide e almotacel em 1563, e Nuto Sant´Anna, querendo evidenciar-lhe o prestígio, destaca o fato de ter hospedado em sua casa a João Ramalho, em 1564, que era o "homem de maior popularidade e poderio durante mais de cinquenta anos do século XVI".
O irmão de Brás, Antonio, foi juiz ordinário e administrador da Fazenda do Piqueri, onde havia a capela de Santo Antônio, uma das mais antigas da vila. Nuto Sant´Anna diz que chegou à vila vindo da Borda do Campo; em 1575, seu nome figura como vereador ao lado de outros prestigiados, como Antonio Preto, Jorge Moreira, "o homem público mais importante da vila de São Paulo, na qual esteve em franca atividade por quarenta anos", Antonio Bicudo, Domingos Luis Grou e Afonso Sardinha, sertanistas; ainda aparece em 1576 e 1578 como almotacel e, em 1576, como juiz ordinário. [Página 5 do pdf]
Os Adornos que vieram com Martim Afonso não se apresentaram nas primeiras atas da Câmara de São Paulo. A ação de José Adorno tinha por centro a marinha, muito embora fosse dono de uma sesmaria em Piratininga, desde 1566; [Página 6 do pdf]
Salvador Pires e Bartholomeu Bueno figuram, porém, já nas primeiras Atas quinhentistas, o primeiro estando referido na sessão de 05.11.1562, quando seu nome aparece entre aqueles que deveriam arcar com a incumbência de erguer os muros e baluartes da vila "com pena de cinco tostões" pelo não cumprimento.
No auto de ajuntamento do povo, realizado em 08.12.1562, "nas pousadas de Jorge Moreira", está registrado que a Câmara e o povo fizeram
"uma procuração a Salvador Pires para ir ao mar a requerer coisas que são necessárias para esta vila (...)"
Estudando-se o tronco dos Lemes, verifica-se um imbricamento na terceira geração com estes Prados, da seguinte forma: Leonor Leme, filha do patriarca Pedro Leme, já referido, era casa com Brás Esteves, de São Vicente, de cuja união nasceram cinco filhos; o primeiro deles, homônimo do pai, veio a se unir a Helena do Prado, segunda filha do Capitão João do Prado. [Página 8 do pdf]
Da prole do casal, três repetem os sobrenomes paternos e maternos, dando origem, assim, ao ramo dos Lemes do Prado, ou seja, Mateus, Pedro e João Leme do Prado. Mas a quinta filha de Leonor e Brás Esteves, Lucrécia Leme, doadora dessa tipologia antroponímica à primeira filha do irmão Pedro, veio a se casar em São Vicente com um tio, Fernão Dias Paes, português de Abrantes, iniciando-se aí o tronco paulista dos Paes Lemes, de notória significação para o Planalto, ainda que este Fernão Dias não tenha sua origem no campo vinculada à viagem afonsina.
Constituiu-se, porém, em "uma das pessoas de maior respeito" da vila, vindo a ser proprietário de grande gleba nos Pinheiros. Como camarista, foi vereador em 1588 e 1592, juiz em 1590 juntamente com Antonio Preto e Antonio de Saavedra. Do assentamento dos sete filhos, ocorre o registro de fórmulas antroponímicas diversas, originárias de apelidos ou sobrenomes sobrepostos mas que formaram descendência a partir dessa base onomástica instável; assim, Isabel Paes, Leonor Leme, Fernão Dias Paes, Pedro Dias Paes Leme e Luiz Dias Leme são as combinatórias conhecidas.
O filho do povoador, Fernão Dias Paes, repete o nome do progenitor; casado com Catarina Camacho, dele disse Pedro Taques ter sido "potentado pelo domínio que teve em um grande número de nativos que fez baixar do sertão com o poder de suas armas; fundou a populosa aldeia chamada de Imbohû (Embu) que, depois (...) cederam aos padres jesuítas do Colégio de São Paulo", tornados "herdeiros dos seus bens" e "estabeleceram jazigo para serem sepultados nele, como assim se verificou". [Página 9 do pdf]
O episódio da expedição do Sabarabussu, em busca das esmeraldas, foi dissecado em seus pormenores não só por Taunay mas por outros estudiosos, aos quais se remete; os dissabores da empresa vivificam-se, contudo, na narrativa em que se depreende que, destituído da ajuda oficial, abandonado à própria sorte, o sertanista, já idoso, só pode contar com os recursos próprios e da família; nem por isso esmoreceu, continuou obstinadamente, acompanhado por alguns, Mathias Cardoso de Almeida, primo e "nome dos maiores do bandeirantismo", seu filho Garcia Rodrigues Paes, o genro Manuel de Borba Gato, Antonio do Prado Cunha, além de José Paes, o mameluco que reconhecera como filho e que, afinal, acabou tramando contra a vida do pai e por ele morto. Falecendo Fernão Dias no sertão, seu filho Garcia Paes intentou a longa viagem de volta do Sumidouro para sepultá-lo, conforme sua vontade, no Colégio de São Bento, que ajudara a reformar e onde tinha jazigo perpétuo; isto ocorreu a 30 de dezembro de 1681:
"e ainda depois de morto o perseguiram as calamidades ordinárias do sertão porque o seu cadáver, e as amostras (das pedras) padeceram o naufrágio do rio que chama das Velhas, em que se perderam as armas e tudo quanto trazia de seu uso e se afogou gente porque os nativos nadadores se ocuparam em salvar as vidas, e acudir às amostras das esmeraldas como em sua vida lhes tinha recomendado o defunto seu Senhor cujo corpo se achou depois de muitos dias a diligência de seu filhos Garcia Rodrigues Paes que o tinha ido a socorrer; e chegara ali depois de sua morte e naufrágio."[Memória Paulistana: Os antropônimos quinhentistas na vila de São Paulo do Campo, Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, professora associada de Toponímia Geral e do Brasil do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da FFLCH - USP. Consultado em 21.10.2022. Páginas 10 e 11 do pdf]