' Santos, Heróis ou Demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e colonizadores na América Meridional (São Paulo e Paraguai/Rio da Prata, séculos XVI-XVII), 2012. Fernanda Sposito. Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em História. Orientador: Prof. Dr. Pedro Puntoni - 01/01/2012 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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Santos, Heróis ou Demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e colonizadores na América Meridional (São Paulo e Paraguai/Rio da Prata, séculos XVI-XVII), 2012. Fernanda Sposito. Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em História. Orientador: Prof. Dr. Pedro Puntoni
2012. Há 12 anos
Ao mesmo tempo, nos domínios castelhanos, a colonização começoua se consolidar nessa parte da América a partir de redutos guaranis,como Assunção, pois Buenos Aires, que deveria funcionar como porta deentrada para o interior, não se constituiu inicialmente como uma baseespanhola. Somente no final do século XVI (1580) que a cidade daSantísima Trinidad e porto de Santa María de Buenos Aires foramrefundados, o que marcou também a expansão da frente espanholanaquelas partes. Desse período é a chegada dos jesuítas à província doParaguai, embarcados, aliás, da Bahia (1587), o que iniciou a missionaçãojesuíta na região, até então realizada pelos franciscanos, mas cujo maiorfruto só poderia ser colhido com a instalação das missões jesuíticoguaranis (1609) na província do Guairá, onde já havia algumas cidadesespanholas fundadas e foi o limite oriental mais extremo onde a ocupaçãocastelhana chegou. Usando de uma metafóra de José Carlos Vilardaga, que tambémanalisou as relações entre a vila de São Paulo de Piratininga e a provínciado Paraguai entre o final do século XVI e início do século XVII, era comose essa região fosse um amplo tabuleiro de xadrez, em que os diversosgrupos sociais ali presentes relacionavam-se tais quais as peças dessedelicado jogo, com avanços e recuos de ambos os lados.13

13 “No sentido leste, assentavam-se os portugueses, e, assim, a expansão castelhana apartir do Paraguai participou também das disputas entre Castela e Portugal pelahegemonia no rio da Prata e nos limites ao sul do Tratado de Tordesilhas. Desenrolavase, desse modo, uma espécie de ‘xadrez estratégico’ jogado por Domingos de Irala, noParaguai, e por Tomé de Souza, em São Vicente, na década de 1550. Segundo algumasanálises inauguradas por Jaime Cortesão, há de se levar em consideração uma políticaimperial e colonial, em geral, incorporada pelos governadores e adelantados, e que tinharazoável clareza da importância estratégica dos espaços coloniais na América.

Assim, a coincidência entre as ações de Irala, de um lado – que teria chegado, em 1552, no salto do Avanhandava às margens do rio Anhembi (Tietê) para combater os grupos tupisalertando ao rei da necessidade de consolidar as conquistas do Guairá para barrar umpossível avanço português

Irala teria chegado no salto do Avanhandava às margens do rio Anhembi
1552, terça-feira (Há 472 anos)

–, e as medidas de Tomé de Souza, de outro – que proibiu otráfego nas rotas que ligavam Cananéia e São Vicente ao interior paraguaio, tentandotransformar a vila de Santo André da Borda do Campo, criada em 1553, em postoavançado e fronteiriço do avanço português, essencialmente litorâneo –, faria parte destadisputa colonial. Entretanto, para além dessa suposta política imperial aparentementecoerente e demarcatória, o que parece ter acontecido foi um processo de ocupaçãomarcada pelas conveniências e necessidades locais. Isto explicaria, por exemplo, porqueo próprio Irala foi acusado de fornecer índios escravos para São Vicente, em troca deferro e outras mercadorias, alimentando uma relação teoricamente indesejada, aomesmo tempo em que moradores da capitania de São Vicente se deslocavamcontinuamente para o Paraguai, levando, inclusive, as primeiras cabeças de gado para a região. Foi, essencialmente, a busca de novas encomiendas e canais de escoamento quedirecionaram a expansão a leste, assim como foram os vínculos marítimos portuguesesque barraram o avanço, a oeste, de São Vicente.” José Carlos Vilardaga. São Paulo naórbita do Império dos Felipes. Conexões castelhanas de uma vila da América portuguesadurante a União Ibérica (1580-1640). Tese de doutorado em História Social. São Paulo:FFLCH-USP, 2010., p. 205. [Página 16]

Já Buenos Aires (pertencente até 1618 à província do Paraguai ea partir de então, com a divisão da província em duas partes, tornou-secapital da recém criada província do Rio da Prata) não obteve êxito emsua primeira fundação em 1536, devido às privações de alimentos einstalações por que passaram os primeiros europeus que ali quiserampermanecer. Narrativas um tanto quanto exageradas dos eventos dãoconta que alguns espanhóis teriam comido seus companheiros parasobreviver, conforme fala do próprio rei espanhol em 1539.36 Como citado, os colonizadores dali juntaram-se aos de Assunção e somenteem 1580 esse núcleo foi refundado, sendo sua reconstrução efortificação possível, em grande medida, graças à mão de obra guarani,vinda do Paraguai entre os séculos XVII e XVIII, como mostrou EduardoNeumann.37 [Páginas 41 e 42]

Nos domínios portugueses da América, havia outra configuraçãoétnica e geopolítica. Conforme dito acima, depois de esgotada a reservade mão de obra indígena nos entornos da vila de São Paulo dePiratininga, fundada em 1554, composta inicialmente pelos índiosaliados tupiniquins e derrotados os inimigos que, impondo cercos à vila,impediam a circulação de seus habitantes, passou-se a buscar essas“peças” e “gentios” em regiões cada vez mais distantes. As “peças” eramos índios escravos, em tese capturados através da guerra justa, que sópoderia ocorrer mediante autorização do rei ou das mais altasautoridades coloniais. Os “gentios” eram aqueles trazidos da mata por“resgate” ou “descimento”, não convertidos, que permaneciam livres eeram destinados aos aldeamentos ou às casas de moradores. Essesgentios, em troca de instrução, catequese e acolhimento que deveriamreceber por parte dos brancos, prestavam serviços aos particulares ouem obras públicas, recebendo pagamento por isso. Se nas primeirasdécadas da vila, a expansão se deu nos aldeamentos além-muros dopequeno núcleo urbano (Pinheiros 1560; São Miguel 1560; Guarulhos1585), no século seguinte culminaria com a criação de novas vilas ealdeias. Em direção ao Rio de Janeiro, no vale do Paraíba: Mogi dasCruzes 1611; Taubaté 1640; Guaratinguetá 1651; Jacareí 1653, aldeamento Escada/Guararema 1611. No sentido oeste: aldeamentos deBarueri 1609; Carapicuíba 1615, Embu 1624 e Itapecerica (dataindeterminada); vilas de Santana de Parnaíba 1625; Itu 1654; Sorocaba1670; Paranaguá 1640; Curitiba 1654; Jundiaí 1656 [ver Tabela]. 38Esse movimento de fundação de novas vilas teve um duplocaráter, complementar e contraditório, síntese da própria colonização:ao mesmo tempo em que demonstra o desenvolvimento dos lusos nacapitania de São Vicente, em sua expansão para novas áreas, buscandoterras a cultivar, minérios a explorar e apresentando-se como umasolução para as disputas entres as elites da vila de São Paulo, ao lhesproporcionar novos espaços de mando e riqueza, é alimentada pelaaniquilação/submissão das populações autóctones. O marco dessemovimento expansionista dá-se praticamente na virada entre os séculosXVI e XVII e é considerado de maneira geral pela historiografia como oinício do banderismo ou bandeirantismo, que será visto mais à frente.Uma rota importante, que representa o grande interesse econexão entre a vila de São Paulo e o lado espanhol da América, eraaquela que, partindo da capitania vicentina, chegava à região do Guairáe culminava nos atuais territórios de Santa Catarina e Mato Grosso doSul. Aventa-se que tal caminho, por sua vez, seria um aproveitamentode trajetos pré-coloniais, denominado Peabiru, que passaram a serutilizados pelos exploradores desde os primeiros anos da conquista daAmérica, mas cuja autenticidade, segundo Sérgio Buarque de Holanda,seria difícil de verificar, uma vez que se mistura aos “motivos edênicos”da colonização. Isso porque os religiosos buscavam encontrar nosrelatos de nativos das diversas partes da América indícios de que SãoTomé tivesse vindo ao continente, segundo interpretavam a partir dealgumas passagens bíblicas. Para os jesuítas, como Montoya, se osíndios diziam que fora um antigo ser mítico, Zumé, que teria lhes legado tal caminho, isso seria a prova da vinda de São Tomé, o que fez com queo Peabiru fosse rebatizado pelos padres como Caminho de São Tomé.Na versão que da abertura dessa estrada nos conservou o PadreAntônio Ruiz de Montoya, da Companhia de Jesus, alude-se à famacorrente em todo o Brasil, entre os moradores portugueses e aosnaturais que habitavam a terra firme, de como o santo apóstoloprincipiou a caminhar por terra desde a Ilha de São Vicente, “em quehoje se vêem rastros, que manifestam esse princípio de caminho [...],nas pegadas que [...] deixou impressas numa grande penha, em frenteà barra, que segundo público testemunho se vêem no dia de hoje, amenos de um quarto de légua do povoado”. “Eu não as vi”, pondera omissionário, mas acrescenta que à distância de duzentas léguas dacosta, terra adentro, distinguiram, ele e seus companheiros, umcaminho ancho de oito palmos, e nesse espaço nascia certa ervamuito miúda que, dos dois lados, crescia até quase meia vara, e aindaquando se queimassem aqueles campos, sempre nascia a erva e domesmo modo. “Corre este caminho”, diz mais, “por toda aquela terra,e certificaram-se alguns portugueses que corre muito seguido desde oBrasil, e que comumente lhe chamam o caminho de São Tomé, aopasso que nós tivemos a mesma relação dos índios de nossa espiritualconquista”. 39 [Páginas 42, 43 e 44]

No entanto, Afonso d´Escragnolle Taunay (1876-1958) é mais categórico. Para ele, não só é possível afirmar que tal rota existiu, como se poderia delimitar seu trajeto. Assim, o Peabiru teria cerca de 200 léguas (1.200 quilômetros), iniciando-se em São Vicente, subia para São Paulo, passando por Sorocaba, Botucatu, seguindo pelo rio Paranapanema e atingindo o rio Tibagi (no território do atual Estado do Paraná).

Nesse ponto, abria-se uma bifurcação: o primeiro caminho descia ao sul, em direção aos Patos (atual território de Santa Catarina) e o segundo seguia o Paranapema até a confluência com o rio Paraná, em direção ao norte. A partir daí, entrava-se no rio Ivinheima (afluente da margem esquerda do Paraná) e, por terra, chegava-se à Vacaria40, culminando no território do atual Mato Grosso do Sul.41

Estas rotas indicariam, portanto, os meios de acesso através da capitania de São Vicente às regiões das reduções do Guairá, Itatim, Uruguai e Tape [ver Mapa 2]. Os dois núcleos principais em torno dos quais gravitam as questões abordadas nesse trabalho – São Paulo no Brasil e Assunção nas Índias de Castela – estavam sob jurisdição de cada um dos reinos,mas também foram governadas por uma só Coroa durante a UniãoIbérica (1580-1640). Nesse sentido, olhar sobre a região e estaslocalidades específicas permite-nos uma análise de como o cenáriopolítico europeu, as sucessões dinásticas e as disputas entre os reinosrepercutiam na administração colonial e no cotidiano de seushabitantes. Para alguns historiadores, esse é um tema de sumaimportância e buscou-se mostrar como a União Ibérica inflenciou numamaior proximidade e conexões entre as partes espanhola e portuguesada América meridional, como fizeram diversos estudos, tais quais deAlice Canabrava, Rafael Ruiz e José Carlos Vilardaga.42 Os núcleosprincipais distavam entre si cerca de 1.300 km de distância. Comodiscutido acima, essas fronteiras, além de não demarcadas, eramaltamente permeáveis, a despeito das reiteradas proibições de livrecirculação por parte de cada um dos reinos [Santos, Heróis ou Demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e colonizadores na América Meridional (São Paulo e Paraguai/Rio da Prata, séculos XVI-XVII), 2012. Fernanda Sposito. Páginas 44 e 45]

9 O problema todo foi relativo a uma omissão que Benites teriatido como capitão, chefiando 40 homens que deveriam impedir osportugueses de atacarem o povo de Ytupé, na boca do rio Ynay,instalando um presídio no local. No entanto, esse capitão não só deixoude atravessar o rio para empreender a fortificação, como teria recebidoum bilhete dos portugueses, avisando de seus intentos de atacaraqueles índios. Benites, ao receber tal recado, dispersou seus homens evoltou à vila. Diante desses fatos, o capitão de guerra e justiça maior deVila Rica mandou prender o desertor, ordenando-lhe que ficasse emcasa. Ao irem prendê-lo no dia seguinte, encontraram-no na rua e, nasequência, empreendeu-se uma perseguição contra Benites. Primeiro oforagido escondeu-se no cemitério da igreja e, dali, conseguiu escapar.Diante disso, publicou-se aviso em 22/07/1631 para que ele seapresentasse à justiça em três horas, notificação pregada e lida peloíndio ladino Juan junto à casa do cabildo de Vila Rica. Na sequência, ocapitão de guerra foi prender Benites em sua chácara e ele estavainstalado do outro lado do rio. Os oficiais solicitavam uma canoa paraque pudessem atravessar e prendê-lo, mas ele se negou a fazê-lo,perdendo-se horas nessa ação. A seguir, tem-se a transcrição integral do bilhete enviado pelosertanista Cristóvão Donis (Diniz?) ao capitão Benites. Esse documentoé um riquíssimo registro da forma como os portugueses se colocavamnaquelas partes, transcendendo às descrições de seus ataquesviolentos. Embora o bilhete relatasse a realização dessas ações contraos índios, seu mote é perceber um certo tratamento amistoso entre oshomens que circulavam por aquela região, o que demonstra oscontatos, conhecimentos e interesses comuns entre portugueses eespanhóis no Paraguai. José Carlos Vilardaga, analisando esse caso, usou-o como exemplo das conexões entre os núcleos espanhóis eportugueses da América meridional, mostrando que Benites teriacontatos com a vila de Parnaíba, na capitania de São Vicente. Além domais, o bilhete do sertanista Donis seria um indício do quanto Parnaíbahavia se tornado um importante reduto de sertanistas.30Meu senhor Capitão Francisco benites – Pela de vossa mercê soubetinha vossa mercê saúde a qual aumente o senhor por largos anos – odizer me (sic) vossa mercê que não lhe Respondera a uma foi Por faltade papel como manifestei a o Reverendo padre frei joão porque nãosou eu tão descortês quanto mais a pessoa a quem tenho tantaobrigação pedirme vossa mercê embite (sic) a que não vão para essaparte meus negros o não fizemos desde que Viemos de toyaoba que oderradeiro salto foi então que os que para lá andam são desstesoutros arayes (sic) de que não tenho a meu cargo que tudo a queesteve na minha mão sempre fiz até agora que se não fizesseescandâlo a Vossas mercês. nem ao Reverendo padre frei joão e comosempre tornei a de abrir mão de gente que pertencia a Vossas mercêsao que vou confiado a que com Razão vossas mercês se não queixarãode mim pois até agora hei procurado de desviar estes senhores a quese não travassem (sic) com Vossas mercês pelo que entendo que agoraao depois de eu Recolher meus companheiros irão lá a dar nessaaldeia nova coisa que não pude acabar com eles pelo (Hay un roto)ebenidos (sic) que nestes quinze ou vinte dias primeiros ao de ir osquais sempre irão até (Aay outro roto) com quarenta brancos de queme pesa muito de minha parte mas o que me consolo que nenhumapessoa dos de Parnaíba estão cá, que todos somos recolhidos, o queme a mim parecia bem era tomarem vossas mercês essa tapera deutupeba, para que se ponham ali com eles e requerer-lhes o que ébem que eles não quererão de vossas mercês coisa nenhuma, senãoíndios se os poderem tomar a seu salvo e com isto se fique vossamercê com deus e os senhores a que o senhor deus guarde ett. de vossa mercê servidor e amigo – cristóvão donis – ao capitão franciscobenites deus guarde ett. [Testimonio de autos hechos en la Villa Rica del Espiritu Santo desde el 21 de Julio al 12 de agosto de 1631 contra el capitan Francisco Benitez […]. AMP 1, p. 319-20.] [Páginas 271, 272 e 273]

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