' De São Vicente a Jacarepaguá: uma genealogia de mulheres tupiniquim e a itinerância da cerâmica paulista, 2022. Sílvia Peixoto, Francisco Noelli e Marianne Sallum - 01/01/2022 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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De São Vicente a Jacarepaguá: uma genealogia de mulheres tupiniquim e a itinerância da cerâmica paulista, 2022. Sílvia Peixoto, Francisco Noelli e Marianne Sallum
2022. Há 2 anos
O ENGENHO DO “KAMURI”Em 1610, o jesuíta Jácome Monteiro (1949, p. 397) relatou que havia entrea Guaratiba e o Rio de Janeiro (...) um porto causado de um rio que desce do sertão, pornome Pojuca [sic], navegável de embarcações pequenas... De fronte do Pojuca se faz umaalagoa de légua e meia de comprido, e pouco mais de meia de largo, farta de pescado; énomeado [referido aqui] por respeito de dois engenhos de açúcar e que ele dá o principalsocorro e meneio.Essa descrição da paisagem da Barra da Tijuca refere os engenhos d´Água e Camorim,situados próximos da lagoa do “kamuri”, nome Tupiniquim do peixe robalo, propriedades dosirmãos Martim e Gonçalo Correia de Sá, operando na imensa sesmaria da “Tiguga”, concedida em1594. A posse foi certificada pelo rei português em 1597 e ocupava toda a Baixada de Jacarepaguá,entre a Barra da Tijuca e o Morro do Grumari no litoral e, no interior, alcançava o centro do arcodivisor de águas dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca, lindeira com as sesmarias dos “padresde Jesus e [d]o concelho desta cidade” (SESMARIA, 1967, p. 38; RUDGE, 1983, p. 11-12). Porém,desde antes já era propriedade dos Sá, os “maiores latifundiários do Rio de Janeiro” (BELCHIOR,1965, p. 413) e, provavelmente, de todas as colônias lusas na costa do Brasil (BOXER, 1952, p. 140),cabendo lembrar que em 1590 a comunidade de portugueses em que viviam os Sá tinha cercade 280 pessoas (SOARES, 1965, p. 11; CARRARA, 2014, p. 7), não computando a sua descendênciacom as mulheres indígenas, nem os indígenas livres, a exemplo dos Tupiniquim que vieram para oCamorim. Em março de 1622, Gonçalo pediu e recebeu a concessão das terras entre o rio Pavuna, as faldas da serra da Pedra Branca, o rio Pirapitinguí (atual Camorim) e a Serra da Curicica, “quesão dois morros divididos, um em cima do outro” (Morro Dois Irmãos) (RUDGE, 1983, p. 19).A gênese e a história inicial do Camorim resultaram do casamento de Gonçalo comEsperança da Costa. Nascida na Capitania de São Vicente (após 1580), ela descendia de 5 geraçõesde mulheres Tupiniquim e “mamelucas” (LEME, 1905, p. 112-113). Na linhagem dos antepassadosmasculinos, apenas o pai de Esperança não era português, mas “mameluco” filho de português emãe indígena (Tupiniquim?) ou “mameluca” de nome desconhecido (Figura 5).

A data não é conhecida, mas a união deles foi ao redor de 1594, quando Gonçalo estariacom Martim nos ataques para escravizar pessoas nos territórios Tamoio no médio vale do rioParaíba (KNIVET, 1906). Para casar, não bastava acertar interesses entre as famílias no modopatriarcal português; Gonçalo precisou se engajar nessas operações para repetir a práticada maioria dos portugueses daquela parte do Brasil, como Jorge Ferreira e João Ramalho,construindo a sua reputação para ser incluído em uma comunidade através de parentescoe afinidades, multiplicando a capacidade de conquistar terras, extrair riquezas dos recursosnaturais e da energia de pessoas livres e escravizadas para fazer o seu novo engenho funcionar.Seguindo o costume Tupiniquim, Gonçalo atuou para ser incluído na família de Esperança e entre os seus afins, e, para manter-se entre eles, exerceu uma política de consideração que reiterasse as suas práticas e ações, incluindo matar em vingança do interesse comunitário. Era a única opção para trazê-los a Jacarepaguá e formar a primeira comunidade de pessoas livres que construiu o Camorim, ocupando os postos-chave na gestão do engenho. Também foi uma estratégia de [Páginas 340 e 341]

manutenção das alianças com os bandos paulistas, formadas a partir da invasão da Guanabarae que articulavam múltiplos negócios, incluindo capturar e escravizar pessoas, investindo em expedições a partir do Rio de Janeiro e de São Vicente, das quais Martim aparece desde 1594 e, a seguir, Gonçalo, quando tinham entre 19 e 17 anos, respectivamente (FRANCO, 1954, p. 345).

Essas relações seriam determinantes quando Gonçalo foi capitão-mór de São Paulo por três anos (1617-1620), sucedido pelo seu irmão Martim, que também representou a burocracia colonial na busca de metais preciosos.

A pesquisa genealógica está em andamento desde 2020 (SALLUM; NOELLI, 2021a), mashá informações suficientes para mostrar que partes da complexa rede de parentesco se deslocoude São Vicente. Por exemplo, em 1628, viviam no Camorim pessoas da linhagem materna deEsperança, como Antônio da Costa (RUDGE, 1983, p. 36); ou Ana da Costa, que aparece em 1638no vizinho Engenho d´Água (RUDGE, 1983, p. 27), mostrando a extensão das relações entreos engenhos dos Sá.

O testamento de Victória Correia de Sá (1667), mostra pessoas livres eescravizadas que viviam no Camorim, abrindo possibilidades para futuramente mapear quemviveu e deixou descendentes na propriedade entre 1594 e 1667. De outro lado, encontramos pontas da rede de relações entre Gonçalo e parentes de Esperança, elos que evidenciam articulações de interesses, negócios e colaborações entre os bandos do Rio de Janeiro e da Capitania de São Vicente. O livro das sesmarias mostra que Gonçalo, enquanto foi capitão-mór em São Vicente, teve como escrivães dois primos da linhagem paterna de Esperança: Vasco da Mota 44 vezes e Simão Machado 5 vezes, totalizando 49 assinaturas em 53 concessões e traslados (92,45% do total)(SESMARIAS, 1939). A análise preliminar dos 53 documentos de posse, mostra que 10 (18.86%)foram dados para pessoas com sobrenome “da Costa” e 2 (3.77%) para “Machado”, totalizando 12(22.64%) das concessões na gestão de Gonçalo.

Ainda não temos dados seriados sobre a demografia de pessoas livres e escravizadas indígenas e africanas, mas encontramos duas informações pontuais no período 1594-1667. A primeira é de 1628, no documento de transferência da posse do Camorim para Victória, que relata 40 “pessoas entre de Guiné e da terra” escravizadas no engenho (RUDGE, 1983, p. 36).

A mesma fonte referiu que “haviam de entrar dois negros do gentio da Guiné, um ferreiro e outro oleiro e assim mais entrarão na dita conta três moços, um carpinteiro e dois serradores do gentio da terra”, pessoas que o documento não define se eram escravizadas ou livres (RUDGE, op. cit. loc. cit.), mas o oleiro certamente era especialista na produção de cerâmica do açúcar, treinado com técnicas portuguesas.

O documento foi elaborado no casamento de Victória com Luis de Céspedes y Xéria, governador do Paraguai (1628-1633), união estratégica para futuros investimentos no patrimônio dos Sá e mais um reforço na relação com os paulistas. Céspedes foi exercer a sua governança no Paraguai, mas terminou acusado com um processo que o afastou do cargo em 1633, por enviar escravos para o seu engenho e permitir o trânsito dos “de São Paulo” em territórios que os colonos espanhóis consideravam do seu rei.

O resultado das relações parentais com São Paulo continuava firme em 1631, referidas no processo contra Luis Céspedes, relatando que ele despachou por Buenos Aires com “unos parientes de su mujer, que havian entrado por San Pablo, cantidad de plata labrada” (URQUIZA, 1951, p. 414). Um desses parentes era Calisto da Mota, irmão de Vasco da Mota referido acima, ambos primos de Victória em primeiro grau, filhos da irmã de Esperança, Luísa Machado, com Atanásio da Mota (FRANCO, 1954, p. 261-262), citado como “Calisto de la Mota… el qual es pariente de la muger del dicho gobernador y vino al Paraguay con la dicha governadora” (op. cit., p. 413). Eles foram citados no processo em que Luis de Céspedes é acusado de “trato y conçierto con los Portugueses de q le pusiesen 600 yndios en su ingenio” (op. cit., p. 414).

Apesar disso, ainda não encontramos provas da chegada dessas centenas de pessoas no engenho, mas ao encontrar relações parentais de Victória com os Mota, pelo lado paterno, abrimos um caminho para futuramente rastrear a mobilidade de escravizados pelos “bandeirantes” desde o Guairá até São Paulo e o Rio de Janeiro. [De São Vicente a Jacarepaguá: uma genealogia de mulheres tupiniquim e a itinerância da cerâmica paulista, 2022. Sílvia Peixoto, Francisco Noelli e Marianne Sallum. Páginas 342 e 343]

CONSIDERAÇÕES FINAISO Camorim tem sua trajetória enquanto engenho iniciada no final do século XVI, com umahistória que segue no presente com uma comunidade vibrante (CÁCERES, 2014), representativadaquilo que se convencionou chamar de arqueologia da persistência, com histórias de pessoasarticulando “intencionalmente certas práticas e identidades relativas à luz de novas economias,políticas e realidades sociais [ ] unindo efetivamente passado e presente numa dinâmica einquebrável trajetória” (PANICH et al., 2018, p. 11-12). Atualmente abriga pessoas herdeiras demúltiplas memórias, tanto da escravidão como do trabalho livre, com histórias familiares sobre avida e as práticas do passado que se cruzam com as suas próprias no presente, constituindo ummosaico de resistências, sobrevivências e persistências (RUBERTONE, 2020) contra o acentuadoprocesso de gentrificação que há décadas atinge a região (PEIXOTO, 2015).Os saberes tradicionais do Camorim, e da região como um todo, resultaram inegavelmenteda articulação de práticas e conhecimentos de pessoas indígenas, africanas e europeias,marcados por inúmeros correlatos documentados a partir do século XVI em diversos lugares daregião Sudeste. Assim, partindo do pressuposto de que houve compartilhamento de atividadese materialidades que conectavam tempos e lugares diferentes, a nossa abordagem procuroucompreender o fazer cerâmico e as relações entre pessoas trabalhadoras que formaram asdiversas fases dessa comunidade ao longo dos séculos. Tais conhecimentos foram transmitidosentre as gerações, sendo a sua preservação decorrente da resiliência das pessoas, especialmentemulheres, que mantiveram inúmeras práticas para a sustentabilidade da comunidade doengenho, equilibrando a carga laboral entre a produtividade comercial, a segurança alimentar ea manutenção da materialidade.Mas, quais papeis tinham essas mulheres no engenho? Qual era, afinal, o lugar das pessoaslivres no Camorim e sua relação com as pessoas escravizadas? Quem eram os usuários dessacerâmica e das outras materialidades produzidas localmente? Qual era a relação de VictóriaCorreia de Sá com as escravizadas para quem ela deixou heranças no seu testamento de 1667?São questões para elucidar na continuidade da pesquisa, pois um ambiente social permeado pelaescravidão comportava contradições e extremos na sociabilidade. Demos, contudo, o primeiropasso para apontar e entender quem teria sido apagado, seja no Camorim, no Cara de Cão ouem qualquer outro contexto cujas investigações procuram ultrapassar os laconismos que nosapresentam as fontes escritas disponíveis. Afinal, as fontes não falam, cabendo a quem pesquisafazer as conexões teóricas e empíricas menos falhas para entrever as muitas práticas em meio aocolonialismo. [Página 348]

De São Vicente a Jacarepaguá: uma genealogia de mulheres tupiniquim e a itinerância da cerâmica paulista
Data: 01/01/2022 2022
Créditos / Fonte: Sílvia Peixoto, Francisco Noelli e Marianne Sallum
Página 341

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