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Capitania de São Paulo. Governo de Rodrigo César de Menezes, 1938. Washington Luís Pereira de Sousa (1869-1957)
1938. Há 86 anos
Chegando a São Paulo, Rodrigo César de Meneses foi residir nas casas de d. Simão de Toledo Piza, nas quais já costumava assistir os seus antecessores quando passavam por esta cidade. Essas casas, então alugadas e mais tarde compradas pela metrópole, deveriam estar situadas hoje na rua do Carmo e na rua da Fundição, visinhando o colégio dos Jesuítas.

Era ai o palácio do governador. Em 7 de setembro de 1721 Rodrigo César comunicou a sua posse ás câmaras das vilas da capitania, e determinou, já que espontaneamente nenhuma o tinha feito, que cada uma delas enviasse um membro para lhe dar as informações necessárias ao real serviço de S. M.

Para fazer crer que toda a autoridade estava enfeixada em suas mãos, e que estava acabado o tempo dos donatários, o seu primeiro ato foi, em obediência á carta régia de 1o. de fevereiro de 1721, dar baixa a todas as nomeações para os postos de ordenanças feitas por Antonio Caetano Pinto Coelho, capitão-mór de Itanhaém e loco-tenente do Conde da Ilha. [Páginas 42 e 43]

A forca, levantada outrora em São Paulo, carcomida pelo tempo, abalada pelos ventos, abandonada pelo desuso, tinha desaparecido; o governador mandou erguer uma outra no mesmo lugar da antiga, dizendo, porém, que a vista só do instrumento do suplicio não bastava, que era necessário executar alguns na própria cidade de São Paulo, para escarmento dos outros; e logo queria utilizar-se da ordem da regente d. Catarina, que permitia aos governadores mandarem enforcar negros, mulatos e carijós, sem apelação para a Bahia. [Páginas 54 e 55]

A família Campos, em São Paulo, descendia de flamengos e portugueses. Foi seu tronco Felippe de Campos, natural de Lisboa, filho de Francisco Vanderburg e de Antonia de Campos, aquele de Antuerpia e esta de Lisboa. [Página 64]

Em São Paulo, para onde veio em 1643, casou-se com Margarida Bicudo, filha de Manoel Pires, da família dos Pires, uma das m ais poderosas da capitania. Esses Pires iam, pela linhagem feminina, até Piquiroby, maioral da tribo de Ururahy, da nação guayaná.

Enquanto metia tempo em meio, Felippe de Campos propagou prole numerosa, que se ilustrou nos anais de capitania. De seus filhos, alguns preferiram o recolhimento dos claustros; outros lançaram-se á vida aventurosa dos sertões.

Em outro meio, em Portugal, por seus feitos heroicos e por suas letras, seriam generais e bispos; no Brasil ficaram chefes de expedições e simples religiosos. [Página 65]

José de Campos Bicudo e Bernardo de Campos Bicudo foram os primeiros povoadores das minas do Pitanguy. Porém o que mais fama granjeou, nas armas, foi Manoel de Campos Bicudo, que fez 24 expedições ao sertão, desde o planalto dos Parecis até a parte meridional do Paraguay. [Página 66]

Em 1720 também lá chegaram os irmãos João Leme da Silva e Lourenço Leme da Silva, que tão tristemente haviam de acabar, e João Antunes Maciel, capitão-mór de Sorocaba. Nesse mesmo ano ou em fins do anterior, também regressou Fernando Dias Falcão, depois de 20 de abril de 1719, porque nessa data se achava em Sorocaba, mas já de partida, levando enorme bagagem e mais de 40 negros, entre os quais havia ferreiros, carpinteiros e alfaiates. [Página 86]

Desde 1719 achavam-se, nas minas de Cuyabá, os irmãos Lourenço Leme da Silva e João Leme da Silva, e um seu primo, Pedro Leme da Silva. Eram descendentes de família originária de Flanders, donde um ramo passou-se para Portugal, corrompendo em Leme o apelido primitivo - Lems.

No Brasil, a família vicejou, numerosa e importante, do robusto tronco Antão Leme que, vindo do Funchal, na ilha da Madeira, já era em 1544 juiz ordinário em São Vicente.

Os Lemes tinham o seu nome associado aos antecedentes heroicos da capitania. Conta-se dum deles, Pedro Leme, alcunhado o torto, pai de João e Lourenço Leme que, em uma das entradas ao sertão, nas paragens da Vacaria, onde se encontrara com uma expedição espanhola, simples soldado de uma expedição paulista, rasgara despejadamente um papel, um termo, que a habilidade castelhana tinha já conseguido da simplicidade dos oficias de sua expedição, reconhecendo nesse território o domínio da coroa espanhola. [Páginas 111 e 112]

João e Lourenço Leme tinham-se criado e educado nessa vida aventurosa e semi-bárbara dos sertões, em contato direto com os nativos ferozes, no meio de brancos cruéis; o melhor de sua vida fora consumida em expedições ao sertão, nas quais se matava a fome comendo mel, e se saciava a sede chupando raízes de árvores.

Opulentos por suas riquezas, duramente acumuladas, eram poderosos pelo seu numeroso séquito, necessário para as suas temerárias empresas.

Valorosos e atrevidos, eram os primeiros a se atirarem ás passagens mais arriscadas; generosos até a prodigalidade; caprichosos e autoritários, desdenhavam as vontade acima das suas mãos, não conhecendo as que estavam abaixo; despóticos decidiam as questões ao estrondo das armas; vingativos até o requente da crueldade, deveriam ser odiados, mas eram temidos e respeitados.
Homens,como esses, inspiram decicações que vão ao fanatismo, fazem ódios qu esó terminam com o sangue.

Os Leme não constituíam um caso isolado, eram antes o caso típico da capitania de São Paulo. Ainda hoje eles se reproduze nos mandões de aldeia, cuja vida é um complexo de atos generosos e de fatos repugnantes. [Páginas 112 e 113]

Eles tinham estado estado nas lavras de Minas Gerais, donde se tinham passado para os novos descobrimentos de Cuyabá.

Em caminho para lá, no sítio do Rio Pardo, obrigaram o padre André dos Santos Queiroz a celebrar o casamento de uma filha bastarda de Lourenço Leme com Domingos Fernandes, afirmando, para salvar as aparências, que para isso tinham licença do padre Manuel Bicudo de Campos, ultimamente nomeado vigário de Cuyabá.

Em Camapuan, João Leme, que levava em sua companhia, para desenfado das longas noites do sertão, uma carijós de sua administração, descobre que era traído. A nativa entregava-se ao branco; mas partilhava seus amores com um carijó seu patrício, concorrendo para as suas entrevistas um rapaz de sua raça.

Conhecido o fato, João Leme,num simulacro odioso de justiça, decreta a morte dos três, proporciona-lhes os socorros espirituais da confissão pelo padre Antonio Gil, e fal-os executar.

Ao rival, porém, João Leme, transtornado pro uma alucinação hedionda, ajuntou uma tortura barbara e humilhante; castrou-o antes da morte, e, após, esquartejou-o com suas próprias mãos, saciando no cádaver o ciúme bravio que tinha cevado no vivo.

Em Cuyaba, dando largas ao seu gênio sequioso de mando, tinha encaminhado, dirigido, obrigado até, a eleição de novas autoridades para as minas.
Por ventura, os novos eleitos tiveram veleidades de independência, porque, mais tarde, esses inquietos paulistas hão de empenhar-se, fazer questão capitão da demissão de Fernando Dias Falcão, o cabo maior regente, eleito por sua influência.

Em Cuyaba, o padre Francisco Justo, vigária da vara, fora substituído pelo padre Manoel Campo Bicudo, e recusava-se a passar a jurisdição, sob o pretexto de que não estava esgotado o tempo da provisão.

Formaram-se partidos a favor dos dois padres, e a luta travou-se. Os Lemes mostraram-se parciais de Manoel Bicudo de Campos; Francisco Justo anula o casamento da filha bastarda de Loureço Leme, feito em Rio Pardo.

Os Lemes, enfurecidos, decidem sumariamente o conflito pelas armas, mandando dar uma descarga na casa de Francisco Justo de que resultou a morte de um camarada do padre, que assustado largou a igreja e embarcou-se para São Paulo.

Manoel de Campos assumiu a vara e confirmou o casamento anulado pelo seu antecessor. Antes desses fatos, em Ytú, João Cabral não consentiu no casamento de uma de suas filhas com Angelo Cardoso; os Lemes roubaram a moça, fizeram casa-la com seu pretendente, dotando-a com os próprios bens do pai, tirados á força de armas.

Eles e seu primo Pedro Leme apoderaram-se violentamente de três filhas naturais, legítimas, do mesmo João Cabral, e as prostituíram, fazendo-as suas barregãs.

João de Abreu enlouqueceu de desgosto, perdendo logo a vida, a única coisa que ainda lhe restava.

Mataram Antonio Fernandes de Abreu, descendente do honrado paulista de igual nome que, no terço de Domingos Jorge, obrara milagres de valor, no ataque e destruição dos Palmares, no norte do país. [Capitania de São Paulo. Governo de Rodrigo César de Menezes, 1938. Washington Luís Pereira de Sousa (1869-1957). Páginas 114, 115, 116 e 117]

E embora por política, mantinha com eles uma correspondência amistosa, na qual se mostrava todo desvelos, todo cuidado pelo engrandecimento deles.

Em 31 de maio de 1722, ainda escreveu-lhes carta amável, que os encontrou em caminho, porquanto em janeiro de 1723 os Lemes chegaram a Sorocaba, acompanhados dos nativos de sua administração, com arcos e flechas, dos mamelucos seus camaradas, e de negros, seus escravos, com mosquetes e arcabuzes. [Capitania de São Paulo. Governo de Rodrigo César de Menezes, 1938. Washington Luís Pereira de Sousa (1869-1957). Página 118]

Ai Rodrigo César se arrogava todos os poderes magistráticos: ordens de prisão, decretos de morte, confisco de bens, concessão de liberdade, perdão de crimes, distribuição de prêmios pecuniários.

Falava em prisão, mas ordenava a morte: quem prendesse os Lemes prêmio algum receberia; mas, quem os matasse ficaria perdoado dos crimes que tivesse, ganharia prêmios, ficaria livre, se escravizado fosse.

Era a determinação e a solicitação do assassinato por todos os meios; o galardão , a ameaça, a ordem expressão a todos da capitania e aqueles mesmo que nela estivessem de passagem.

Pelas ruas de São Paulo, ao rufar dos tambores, berravam os mastins de palácio as penas inauditas do famoso bando. Em Ytú, Sorocaba, Parnahyba, repetia-se a mesma cena de pavor. [Página 154]

Rodrigo Cesar jogava a capitania inteira de São Paulo contra os Lemes, sob a pena de traição á coroa, confisco de bens e mais penas que em semelhantes casos são impostas. Era o regime de terror.

Começou então a caçada feroz, sem tréguas nem piedade, contra os dois paulistas, que tinham tido a ingenuidade de acreditar na palavra da autoridade portuguesa. Em Ararytaguaba, os Lemes conseguiram reunir, á pressa, vinte e tantas pessoas, com cavalos e algumas armas.

O seu intento era, naturalmente, reorganizar o seu séquito de homens d´armas, arranjar remadores para as suas vinte e poucas canoas e seguir o Tietê abaixo, em demanda do sertão.

Mas, atacados de improviso, - não tendo provisões de boca nem de guerra, com a maior parte de seus homens espalhados, - bem críticas eram as circunstâncias dos dois Lemes, quando dois dias após o cerco em Ytú, lhes chegou a nova de que o ouvidor Godinho Manso, á frente das tropas, vinha ataca-los.

Impotentes para a luta imediata, preferiram internar-se na mata, por picadas feitas á força de machados, por onde transportassem cavalos e munições.

Querendo, porém, significar o seu desprez pelo ouvidor Godinho e pela gente que o acompanhava, afixaram, nas picadas, cartazes de desafio petulante, onde se lia: - "Se o ouvidor aqui vier, este é o caminho".

Entretanto, á frente de numerosas tropas, chegou a Ararytaguaba Godinho Manso que dos Lemes só encontrou o cartaz provocador: - "Se o ouvidor aqui vier, este é o caminho".

Raivoso, mandou destruir as vinte e tantas canoas que estavam no porto; e, se aquele era o caminho, dispos- se a segui-lo.

Eram quatro horas da tarde, quando na picada, que já alcançava obra de meia légua, uma sentinela ai postada dos Lemes, deu o alarme, grito último de sua vida, porque ai a deixou, arrancada por uma descarga da tropa que avançava rápido.

O reduto dos fugitivos foi atacado vigorosamente, sendo aprisionadas vinte e poucas pessoas, com armas, cavalos e bagagens; mas os Lemes mais uma vez conseguiram escapar-se, sem que ninguém os tivesse visto. [Páginas 155 e 156]

Ao meste de campo, Balthazar Ribeiro de Moraes, ao sargento-mór, Antonio Fernandes de Abreu, ao capitão João Rodrigues do Valle, agradeceu pressurosamente aos serviços prestados no cerdo de Ytú, e encarregou-lhes novos, no Cuyabá, receando apesar de tudo que os dois infelizes conseguissem lá chegar.

Para essas minas escreveu anunciando que "os execrandos e abomináveis delitos de Lourenço e João Leme, que enchiam o sertão e as vilas de clamores de justiça, tinham-no obrigado ao castigo merecido para atalhar maiores danos e poupar aos paulistas (santo interesse!) iguais afrontas."

Balthazar de Moraes, Antonio Fernandes de Abreu e João Rodrigues, portadores de um bando, reprodução mais violenta do de 15 de setembro, partiram para o Cuiyabá em canoas que o governador mandou aprontar.

Segundo as determinações de um regimento, adrede preparado, haviam de tomar posse do sítio de Camapuan e de tudo que ali houvesse pertencente aos Lemes, confiscando para a fazenda real; ai deixariam gente para a colheita dos mantimentos; prenderiam Domingos Leme, irmão das vítimas, e todas as mais pessoas que encontrassem, remetendo-os para São Paulo por Antonio Fernandes de Abreu ou por pessoa de confiança; em Cuyabá, receberiam de Antão Leme, outro irmão, um negro e um carijó; arrecadariam todo o outro pertencente aos Lemes, e bem assim todos os créditos, cuja cobrança promoveriam, e mais haveres que achassem. [Páginas 157, 158 e 159]

Na mata de Ararytaguaba continuava a caçada, sob a direção infatigável do ouvidor Godinho Manso, que esporeado por Sebastião F. do Rego, e por aquele desafio - "Se o ouvidor aqui vier, este é o caminho" - desenvolvia zelo, que dava na vista e que, mais tarde, mereceria de Rodrigo César louvores e belas referências e el-rei. [Páginas 162 e 163]

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