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Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX), Jean Gomes de Souza
1 de janeiro de 2019, terça-feira. Há 5 anos
INTRODUÇÃOA Noticia Primeira Practica Que da ao Reverendo Padre Diogo Soarez oCappitam Ioaõ Antonio Cabral Camello sobre a Viage, que fez as Minaz doCuyaba no anno de 1727 (doravante Noticia Primeira Practica) consiste numanarrativa acerca da viagem fluvial empreendida por João Antonio Cabral Camellode Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) no ano de 1727, possivelmente escrita em 1734.Essa viagem está inserida na fase da história da expansão paulista conhecidacomo “monções”, caracterizada pelas expedições fluviais periódicas quecomumente partiam do porto de Araritaguaba (atual Porto Feliz, SP) com destino aCuiabá, no Mato Grosso, tendo por finalidade o abastecimento comercial e opovoamento das minas auríferas lá descobertas em 1719.3Os dois testemunhos4 manuscritos conhecidos da Noticia Primeira Practicafazem parte do conjunto das Notícias Práticas de varias minas, e do descobrimento denovos caminhos, e outros sucessos do Brazil, constituído por dezenove textos recolhidose reunidos pelo padre matemático Diogo Soares na América portuguesa entre 1730e 1748, hoje salvaguardado na Biblioteca Pública de Évora (BPE), Portugal, no códiceCXVI 1-15 da coleção que leva o seu nome. As narrativas coligidas pelo padre Soaresforam congregadas em quatro grupos documentais distintos, organizados de acordocom as regiões da colônia por elas abordadas. São eles: (1) Notícias Práticas dasMinas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo (contendo nove notícias);5 (2)Notícias Práticas das Minas Gerais do Ouro e Diamantes (contendo cinco notícias); (3)Notícias Práticas do Novo caminho que se descobriu das campanhas do Rio Grandee Nova Colônia do Sacramento para a vila de Curitiba (contendo três notícias); e (4)Notícias Práticas da Costa, e Povoação do mar do Sul (contendo duas notícias).Todos os nove relatos que compõem a coletânea das Notícias Práticas dasMinas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo encontram-se em duplicata nocódice eborense. João Antonio Cabral Camello é o autor de dois deles, a NoticiaPrimeira Practica e a Noticia Segunda Practica, nas quais discorre sobre o quesucedeu nas viagens de ida a Cuiabá e de retorno a São Paulo, respectivamente.6Das notícias práticas concernentes a Cuiabá, a Noticia Primeira Practica é aquelaque possui o maior número de edições impressas – oito, no total.7 Para a análise queserá desenvolvida neste artigo, nos valeremos de duas delas: a de 1842, no tomo IVda Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB),8 fruto do oferecimentode uma cópia do manuscrito ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) porFrancisco Adolfo de Varnhagen, futuro Visconde de Porto Seguro; e a primeira ediçãode Relatos monçoeiros, de 1953, obra organizada por Afonso d’Escragnolle Taunay9para a Biblioteca Histórica Paulista da Livraria Martins Editora. [Página 3]

em outra não, ou seja, de que um artefato pode mudar de status ao longo de suaexistência, Igor Kopytoff propõe a ideia de traçar uma biografia cultural das coisas.32Tal como sugere Samuel Alberti, fundamentando-se no trabalho de Kopytoff, deve-seestudar a trajetória de um objeto musealizado levando em consideração a rede derelações que o circunda, sendo esta formada não apenas por produtores,colecionadores, curadores e cientistas, mas também pelo público visitante.33OS TESTEMUNHOS MANUSCRITOS DA NOTICIA PRIMEIRA PRACTICAEm 1730, os jesuítas matemáticos Diogo Soares e Domingos Capacciaportaram na América portuguesa encarregados de produzir cartas geográficas daporção centro-sul do território para o que viria a ser o Novo atlas da Américaportuguesa. A missão dos chamados “padres matemáticos” está inserida no contextodas querelas territoriais entre Portugal e Espanha no século XVIII. Desde o final dadécada de 1710 e início da década de 1720 havia ficado explícito para ambosos lados que a linha imaginária que dividia o continente americano entre as Coroasibéricas, fixada pelo Tratado de Tordesilhas (1494), já não era mais respeitada.34Segundo a provisão passada por D. João V aos padres Soares e Capacci em 1729,além da feitura dos mapas contendo detalhes por escrito das regiões representadas,eles deveriam registrar “em livro à parte por extenço tudo q houver mais digno denotar em cada hua das capitanias”, como a capacidade de navegação dos rios,qual tipo de embarcação era utilizado para navegá-los, em quais trechos os viajantesdeveriam ir por terra ou embarcados, os habitantes das margens, se havia arvoredosque pudessem ser derrubados e levados facilmente para um povoado, se haviapastos e gado, se as localidades eram habitadas por indígenas “ferozes oudomésticos”, de que modo eles viviam, que armas usavam, a distância entre ospovoados e as divisas administrativas existentes entre eles, entre outros dados. Paraisso, completa el-rei, careciam tomar “noticia da gente pratica da terra”.35

Uma das definições dadas por Raphael Bluteau para “homem prático” refere-se àquele que é experimentado, versado, perito em algo.36 Ao caracterizar os “práticos das Coroas Ibéricas”, Serge Gruzinski ressalta o contato direto que esses homens puderam ter com a matéria sobre a qual informavam através da pena.37 Não é à toa que, nos primeiros parágrafos da Noticia Primeira Practica, João Antonio Cabral Camello diz que, embora usualmente o embarque para Cuiabá seja feito no porto de “Aritaguába” (Araritaguaba), dele não dará notícia alguma, pois lá não esteve; todavia, informará sobre o que viu e experimentou no porto de Sorocaba, porque foi onde ele embarcou.38

Segundo François Hartog, a narrativa de viagem expressa-se enquanto umatradução do outro.39 À retórica da alteridade cabe o papel de agente dessa tradução,fazendo com que o destinatário acredite na fidelidade da operação. Para tanto, olhoe ouvido compõem “os dois polos entre os quais se inscreve e se desenvolve aretórica da alteridade”.40 O olho apresenta-se como marca de enunciação, de modoque o “eu vi” atua como intervenção do narrador em sua própria narrativa a fim deprovar alguma coisa. Dos filósofos da Jônia a Aristóteles, passando por médicos ehistoriadores, Hartog observa o que ele chamou de uma constante epistemológica:a “vista como instrumento de conhecimento”.41 João Antonio Cabral Camello viu tudoaquilo que descreve ao padre Diogo Soares na sua notícia prática. Sendo assim, asmatérias narradas adquirem o status de verdade.Cabral Camello recorre a terceiros quando discorre sobre algo que não viu,valendo-se da expressão “disem”. Não sabemos quais são as suas fontes na maioriados casos, salvo nas menções aos “certanistaz antigoz”. Nessas ocasiões eles setornam, então, os primeiros que viram. Para François Hartog, enquanto marca deenunciação, o eu ouvi reveza com o eu vi, “quando este último não é possível ounão é mais possível”.42 Todavia, afirma o autor, no que diz respeito ao “fazer-crer”,o ouvido vale menos que o olho, logo uma narrativa que se fundamenta no sentidoda audição é menos crível ou persuasiva que aquela construída a partir da visão.43Entre os sertanistas, monçoeiros, comerciantes e agentes régios dasCoroas portuguesa e espanhola com os quais Diogo Soares recolheu as notíciaspráticas está o capitão João Antonio Cabral Camello. Pouco sabemos a respeitodessa personagem. Num verbete do Dicionário de bandeirantes e sertanistas doBrasil, Francisco de Assis Carvalho Franco o descreve como um militar que,saindo de Sorocaba, fez uma viagem para o Mato Grosso, citando comoreferência a edição de 1842 da Noticia Primeira Practica.44A partir da leitura das duas notícias práticas redigidas por Cabral Camelloé possível depreender algumas informações a seu respeito. Ele escreve que estevenas minas do Cuiabá por cerca de dois anos e meio, envolvido com a exploraçãoaurífera, entre novembro de 1727 e maio de 1730. Era um homem com algumasposses, já que, dos quatorze escravizados embarcados consigo no porto deSorocaba, seis eram seus e oito do seu tio (cujo nome não é mencionado). Foi oautor intelectual45 de dois longos e detalhados textos remetidos ao padre DiogoSoares, os quais apresentam uma linguagem clara e fluída.46 Nas duas narrativas,diante da citação de uma palavra não usual ou de origem indígena, constatamoso empenho de explicá-las ao leitor, ainda que não seja possível atribuir o domínio do vocabulário empregado diretamente a Cabral Camello, visto que os originais,caso existam, não foram localizados. Além disso, é evidente o planejamento deambos os textos. Isso porque em dois trechos da Noticia Primeira Practica, quandoCabral Camello faz menção a assuntos que serão tratados detidamente maisadiante – como o porto do Rio Piracicaba e o ataque dos Paiaguás à monção de1730 –, preocupa-se em sinalizar que sobre eles “dirá a seu tempo”, o que é feitonos trechos que correspondem à Noticia Segunda Practica.47Na Noticia Primeira Practica, escrita a partir do pedido do padre DiogoSoares e a ele destinada, como as linhas iniciais do texto indicam, Cabral Camellodescreve minuciosamente os rios percorridos de Sorocaba a Cuiabá, seus respectivospercursos, os saltos, sangradouros, baías e portos neles existentes, a distância entreeles, as vilas e roças ao longo do trajeto, os gêneros alimentícios cultivados e osanimais criados, a oferta de caça e de pesca e o tipo de vegetação encontrada nasmargens fluviais.48 Informa também sobre os diversos perigos que a natureza impõeaos navegantes e quais as técnicas empregadas para contorná-los, de acordo coma perícia e experiência de pilotos, proeiros e remadores. Todavia, para além danavegação dificultosa dos rios que levavam a Cuiabá, havia também o riscoconstante dos ataques promovidos pela população originária que habitava a região.Sendo assim, o autor se preocupa em informar as nações indígenas existentes aolongo do percurso, bem como em caracterizar seu comportamento para com osbrancos, seus hábitos, atividades de subsistência e armas utilizadas. Em suma, anotatodas as notícias que D. João V desejava obter, como registrado na provisão citada.Embora não esteja datado, estimamos que esse relato tenha sido escrito na vilade São João em 16 de abril de 1734.49 Isso porque, em sua origem, os dois textosde autoria de João Antonio Cabral Camello pertencentes ao conjunto das NotíciasPráticas eram possivelmente um único texto, divididos quando da cópia no códiceeborense. A parte na qual o autor narra a ida para Cuiabá foi nomeada como NoticiaPrimeira Practica, enquanto o retorno para São Paulo foi intitulado de Noticia SegundaPractica. São dois os aspectos formais dos textos que corroboram a hipótese de suaunicidade. O primeiro diz respeito à continuidade da numeração dos parágrafos entreuma notícia e outra em ambos os testemunhos manuscritos, pois enquanto a NoticiaPrimeira Practica termina no 36º parágrafo, a Noticia Segunda Practica tem seu iníciono 37º. O segundo consiste no fato de a assinatura, a datação tópica e a cronológicaterem sido reproduzidas apenas ao final da Noticia Segunda Practica, o que nospermitiu atribuir uma data de produção para a Noticia Primeira Practica.Do ponto de vista da substância textual, não há nenhuma ruptura entre otérmino de um relato e o início de outro, muito pelo contrário: se o encerramentoda primeira notícia é feito com Cabral Camello contando sobre sua chegada ao [Páginas 7, 8 e 9]

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