Comunidades temáticas da cidadania no Brasil: uma exploração inicial a partir do scielo (1987-2016)
novembro de 2020. Há 4 anos
Quando, em 1902, é convidado a assumir o ministério dasRelações Exteriores, o seu lado de historiador, demonstrandopreocupação com a organização do arquivo e da biblioteca doItamaraty, é explicitado em correspondência enviada de Berlimao amigo de juventude e senador Frederico de Abranches (SP):É preciso [...] restabelecer a Secção do Archivo, dando-lheo desenvolvimento necessário, por que esse é o arsenal em que oMinistro e os empregados mais habeis e habilitados encontrarãoas armas de discussão e combate. É preciso crear uma bibliotecae uma secção geographica na Direção do Archivo, como emFrança, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos.Seu conhecimento e dedicação ao estudo da história levaram-no a ser eleito presidente do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro em 1907. Ao longo dos quase dez anos em que esteve àfrente do Ministério, Rio Branco teve, no estudo da história, o embasamento das suas ações. O arquivo do Itamaraty tornou-se o espaço privilegiado, onde Rio Branco passava a maior parte do tempo.A história a serviço da diplomacia: aquestão fronteiriça com a ArgentinaRio Branco se notabilizou por resolver as pendências lindeiras com os países vizinhos. Agindo em nome do Estado brasileiro, Rio Branco foi o agente principal na resolução das fronteiras com a Argentina (1895), Guiana Francesa (1900), Bolívia(1903), Equador (1904), Guiana Inglesa (1904), Guiana Holandesa(1906), Colômbia (1907), Peru (1909) e Uruguai (1909). Em todasessas questões diplomáticas, a história forneceu os subsídiospara a defesa dos direitos do Brasil.Se tomarmos atuação de Rio Branco, ainda antes de chefiaro ministério das relações exteriores, quando atuou como defensor dos direitos do Brasil nas questões que envolveram o arbitramento internacional, salta aos olhos a importância do conhecimento histórico para a elaboração da defesa brasileira.Aliás, as duas defesas apresentadas nas arbitragens doslitígios com a Argentina e com a França, bem como seussubsídios para a arbitragem do Pirara, são documentos[Página 34]
Argentina anexasse todo o Chaco Boreal, como, aliás, permitia o artigo XVI do Tratado da Tríplice Aliança. A diplomacia argentina fariauma ligação direta entre a posição do Brasil na questão do Chacocom o Paraguai e a sua posição referente à reivindicação sobre oterritório de Misiones ou Palmas. Podemos afirmar que houvenexo entre as dificuldades criadas pelo Brasil para a solução doslimites entre a Argentina e o Paraguai, decorrentes da Guerra daTríplice Aliança, e aquelas dificuldades criadas pela Argentinapara a solução de seus limites com o Brasil, na chamada questãode Palmas.Após a reivindicação oficial argentina, os dois países formaram, em 1885, uma comissão mista para explorar os rios Peperi-guaçu, Santo Antonio, Chapecó e Chopim e o território situado entre eles. Ao término dessa exploração, em 1888, a Argentinasubstituiu o rio Chopim pelo Jangada, na sua reivindicação. Um anodepois, foi firmado um tratado, estabelecendo um prazo de noventa dias para o acerto direto entre os dois países; caso não houvesseesse acerto, a questão seria julgada por um árbitro internacional.Pouco tempo depois, aconteceu a Proclamação da República no Brasil. O novo governo, em nome de uma suposta “fraternidade americana”, aceitou dividir o território litigioso com a Argentina. A linha divisória dessa “Justiça de Salomão” ligava a fozdo rio Chopim à foz do rio Chapecó. Em Buenos Aires, a partilhado território foi recebida com muito entusiasmo; os jornais portenhos não cansavam de enfatizar o gesto de fraternidade brasileira.No Brasil, por outro lado, a opinião pública viu, nessa divisão, umato de traição da memória nacional. A oposição ao tratado foi tão grande que a Câmara dos Deputados o rejeitou por 142 a 5 votos, em agosto de 1891.Não sendo possível um entendimento direto entre os doispaíses, a questão foi submetida ao arbitramento internacional dogoverno norte-americano. Quando foi decidido pelo arbitramento,o nome de Rio Branco chegou a ser lembrado como possível advogado da causa brasileira. “Embora reconhecido pelos amigos comoprofundo conhecedor de questões históricas e dos temas de fronteira, Paranhos estava fora do Brasil havia mais de quinze anos e nemao menos publicara livros de ampla repercussão”, o que inviabiliza [Página 36]
va sua indicação. Além disso, continuava monarquista, o que colocava sob suspeição sua lealdade pelas autoridades republicanas. O barão Aguiar de Andrade foi nomeado para apresentar a defesa dos direitos do Brasil. No entanto, faleceu em março de 1893, enquanto preparava a defesa brasileira. Estava aberto o caminho para Rio Branco.
Rio Branco, então cônsul em Liverpool, foi designado para apresentar a defesa brasileira. Pode parecer estranho que o go-verno republicano, numa época em que o jacobinismo radical cercava o então presidente Floriano Peixoto, tenha escolhido como advogado da causa brasileira um monarquista convicto. No entanto, é necessário considerar que “a erudição já notória de Paranhos, sua capacidade como historiador e intelectual, certa-mente jogou um papel transcendente nessa escolha, que vai ser a chave para posterior carreira do Barão.”Na chamada questão de Palmas, que projetou Rio Branco na diplomacia brasileira, ele enfrentou o mais polêmico de seus adversários, o argentino Estanislao Severo Zeballos, que, além de profundo conhecedor da história do seu país, se notabilizou por liderar parte da opinião pública argentina contra o Brasil, duran-te três décadas.Rio Branco utiliza a história como base da defesa brasilei-ra. Reconstrói para o árbitro toda a discussão ocorrida no perío-do colonial, origem da alegação argentina. Mostra como os trata-dos firmados entre as coroas ibéricas abordaram os limites entre os territórios das duas metrópoles, na região alvo da disputa com a Argentina no século XIX.
Logo que saiu sua nomeação como enviado especial a Washington, para organizar a defesa dos direitos do Brasil, em carta a Salvador de Mendonça, em 11 de maio de 1893, ele escreveu:
Eu preferiria ficar sossegado no meu canto e realizar por aqui o projeto que tinha desde 1891 de escrever uma memória sobre a questão e fazê-la traduzir para ser oferecida ao árbitro. A questão Pepiriguaçu-Santo Antônio e Pequiri-guazu-Santo Antônio-guazu é muito simples quando estudada com método, à vista dos mapas e dos diários das demarcações.[Página 37]
Gomes Freire de Andrada e José de Andonaegui, conseguiram derrotar o “exército Guarani”.Como a guerra atrapalhou a demarcação, o trecho com-preendido entre o rio Ibibuí e o Igurei, sob a responsabilidade da segunda partida ou tropa, só começou a ser demarcado em 1759.
A instrução Especial de 27 de julho de 1758, fornecida por sua Majestade Fidelíssima, D. João V, rei de Portugal, e por sua Majestade Católica, D. Fernando VI, rei da Espanha, em seu artigo 3º, era bem clara: os comissários deveriam subir pelo Rio Uruguai“até encontrar pela sua margem Ocidental a boca do Rio Pequiri ou Pepiri, pelo qual entrarão e continuarão aguar arriba dele até sua origem principal, ou até donde possam chegar as canoas.” Daí em diante, deveriam enviar uma “Partida que vá a pé a reconhecer pelo terreno mais alto a cabeceira principal do rio mais vizinho, que desemboque em o Iguaçú.”
O artigo 6º das ditas Instruções Especiais, por outro lado, ordenava que, se a cabeceira do rio que deságua no Iguaçú, que deveria estar próxima à nascente do Pepiri, não fosse encontra-da, ou a distância fosse muito grande, deveriam retornar ao Rio Uruguai e subir pelo Rio Paraná “até a boca do Iguaçú, pela qual entrarão até o seu Salto [...] subirão por ele até a boca de algum rio que esteja com curta diferença em a mesma Longitude, em que considerem as cabeceiras do Pepiri.”O artigo 28 das instruções dadas aos comissários de-marcadores determinava que a fronteira entre o território por-tuguês e espanhol, que não passasse pelos rios ou cumes dos montes e vertentes das águas declarados no tratado, deveria ser assinalada, no momento da demarcação, por marcas ou sinais, para que em nenhum tempo se pudesse duvidar da localização da linha demarcatória.
Começando as demarcações, no diário da comissão demarcatória espanhola, podem-se ler as anotações de 5 de março de 1759, informando que fora encontrado um rio que tem uma ilha na foz ao desaguar no Uruguai, e que “era o Pepiri, que buscavamos.”
Mais adiante, os comissários responsáveis pela demarcação, José Fernandes Pinho Alpoim, por parte da coroa portuguesa, e Francisco Arguedas, representante da coroa espanhola, ouvindo o parecer unânime dos astrônomos e geógrafos das duas nações que acompanhavam a demarcação, anotam no diário, em 8 de março de 1759: “por força das razões expostas na junta antecedente e da asseveração do indio vaqueano, Francisco Xavier Arirapi, sargento de seu posto de São Xavier [...] que era o Pepiri o rio que o dito vaqueano assignalava.”
Em razão da oposição sofrida, tanto na Europa quanto na América, o tratado de Madri foi anulado pelo tratado de El Pardo, em 12 de fevereiro de 1761.
Em 1777, as duas coroas ibéricas firmam um novo tratado de limites. Na parte que nos interessa, pelo Tratado de Santo Ildefonso, a fronteira entre os domínios portugueses e espanhóis na América era determinada pelo artigo VIII, estabelecendo que a linha divisória seguiria “aguas acima do dito Pepiri-guaçú até á sua origem principal; e desde esta pelo mais alto do terreno,
[...] continuará a encontrar as correntes do Rio Santo Antônio, que desemboca no Grande de Curitiba, por outro nome chamadoIguaçú, seguindo este aguas abaixo até á sua entrada do Paraná.”
Comparando o artigo V, do tratado de 1750, com o artigoVIII, do tratado de 1777, verifica-se que neste último já se nominava o rio que serviria de limites, seguindo a linha do Peperi. Notratado de Santo Ildefonso, as linhas de fronteira foram determinadas “tendo em vista o mappa que lhe servia de base e as explorações de 1759”, conforme é especificado no próprio tratado.
As instruções aos comissários demarcadores eram bemclaras, quando caracterizavam o rio Peperi como sendo um “riocaudaloso, con una isla montuosa en frente de su boca, un granarrecife frente à su barra.”
Iniciando a demarcação, logo foram encontrados e reconhecidos os rios Peperi-guaçu e Santo Antonio. No entanto,o geógrafo espanhol Joaquim Gondim continuou andando rioUruguai acima, até que encontrou a foz de um rio largo, em quenenhuma ilha existia na sua foz, nem encontrou em frente à suaembocadura recife algum, conforme descrições anteriores dorio que deveria servir de divisa. Esse rio, “recém descoberto”por Gondim, não poderia ser o rio mencionado nas instruçõesrecebidas, pois acima da embocadura – e não na sua foz – encontra-se uma grande ilha. Nada disso combina com os sinais que caracterizavam a foz do Peperi-guaçu. Não obstante, Gondim voltou declarando haver descoberto o Pepiry que as cortes tiveram em mente em 1750. Todavia, batizou-o de Pequiri, afirmando que era para distingui-lo de outro rio, respeitando-lhe assim onome.
Esse rio – que é o atual rio Chapecó – , encontrado em1789, tinha como latitude, anotada pelos próprios demarcadoresespanhóis, 27º,06’,50” de latitude Sul, diferente daquela constante nas instruções fornecidas pelo governo espanhol, que erade 27º,09’,23”. No entanto, tendo-se descoberto um novo rio quecorria para o Uruguai, segundo os comissários espanhóis, haviaa necessidade de encontrar o rio que fosse contravertente desserio descoberto, e que corresse para o Iguaçú. Isso se depreendedas instruções dadas pelo comissário espanhol Diogo de Alvearao geógrafo André de Oyarvide, em 17 de novembro de 1789,quando afirma ser “importante al servicio de su magestad, reconocer y levantar al plano del rio que entendemos ser el verdaderoPepiri-guazú”. Por isso era importante encontrar “en aquelas immediaciones otro rio cuyas vertentes confrontem y puedan ligarse con las de nuestro Pipiri.”Continuando a exploração, em separado dos comissáriosportugueses, André de Oyarvide encontrou um rio, afluente doIguaçú, que tinha as nascentes próximas as do Chapecó – ou Pepiri-guazú, para os espanhóis. A esse rio, descoberto em 1791,Oyarvide chamou de San Antonio-guazú. Mais tarde ficou provado que esse rio é o atual Jangada.No texto da defesa brasileira entregue ao árbitro, Rio Brancoafirma peremptoriamente: “O Governo espanhol nunca tomouem consideração a mudança, que os seus Comissarios propuseram, da linha de fronteiras estabelecida no Tratado de 1777.”A importância reputada à documentação histórica fica evidente na correspondência de 1º de setembro de 1893, quandoRio Branco escreve a Dionísio Cerqueira, membro da comissãoespecial responsável pela elaboração da defesa dos direitos doBrasil:Estive hoje a estudar o Mapa de 1749, das Cortes, e pensoque dele podemos tirar argumentos em nosso favor, mostrando a distância entre o litoral de Santa Catarina e a foz [Páginas 40 e 41]