Paraguai. Os portugueses, por seu turno, graças ao uso das canoas indígenas, adequadas aosrios menores e labirínticos, puderam freqüentar com a regularidade possível – dados osconflitos com os grupos étnicos locais – os rios São Lourenço e Cuiabá, situados além doPantanal.15 Assim, o tamanho das canoas é regulado pela experiência acumulada pelaspopulações, bem como pelos fluxos interculturais estabelecidos, e não pela qualidade dasmadeiras que ofereciam as florestas tropicais da América do Sul.Para que, já na primeira metade do século XVIII, existisse nos arredores deAraraitaguaba e Itu um grupo de trabalhadores especializados nos serviços da mareagem dosrios monçoeiros, foram precisos processos de longa duração nos fluxos culturais entre osmamelucos e as populações indígenas. Ainda que a navegação do rio Tietê não fosseunanimidade entre os sertanistas preadores de índios, pois muitos itinerários seguiam porterra, sobretudo quando dos ataques às reduções do Guairá, Tape e Uruguai, não se devedesprezar a importância da via fluvial na mobilidade dos paulistas.16 A viagem de D. Luís deCéspedes Xeria pelo Tietê no ano de 1628 é evidência clara de que a utilização das viasfluviais, se não era decisiva para os habitantes do planalto de Piratininga, pelo menos é certoque era conhecida em suas técnicas fundamentais, como o fabrico da canoa e osprocedimentos de mareagem nas cachoeiras.
De fato, a aprendizagem dessas técnicas não ocorre da noite para o dia. Se osmareantes do século XVIII conservaram algumas técnicas indígenas de navegação, deve-sesupor fluxos culturais acumulados na experiência. Informa alguém, no ano de 1695, que os paulistas serviam-se das canoas para chegar à Vacaria durante o século XVII, tomando-as ora pelo rio Tietê, ora pelo Paranapanema:[...] navegando desde povoado pelo rio Anhembi abaixo athe dar no Rio Grande e depois subindo por outro athe a vacaria. Este caminho tem suas cachoeiras onde uarão [se varam as] canoas. Outro caminho tem 14 ou 15 dias de viagem por terra, e depois rodão por hum rio chamado Paranapanema athe dar no Rio Grande. Este caminho não tem cachoeiras.17
No capítulo 1.2, analisei os itinerários que os antigos sertanistas paulistas tomavam,pelo século XVII, para cruzar a Vacaria, enfatizando o que seguia pelos rios Paranapanema,Ivinheima, Mbotetei, entre outros, e as ações dos Mbayá no sentido de controlarem aquelaregião, provocando a perda da memória prática dessa rota entre os mamelucos. Cada vezmenos percorrida, essa rota chegou a aparecer em plano do Morgado de Mateus, que diziapossuir um mapa que a indicava.18 Contudo, fossem quais fossem os itinerários, osconhecimentos práticos do navegar acumulavam-se na experiência dos mamelucos.O procedimento de fabricação das canoas, embora contasse com ferramentasadventícias, permaneceu em geral fiel ao que adotavam os indígenas há tempos antes dainvasão do conquistador europeu. Descreve-o Antonio Alves Câmara:[...] derrubam um madeiro, tiram-lhe a casca, fazem uma face plana, edepois cavam grosseiramente, procurando dar a forma côncava internade canoa./ Cavam com fogo, machado e enxó por cima e por baixo.Uma das extremidades é conservada com a seção transversal do corte,a outra é um pouco alterada a fim de tomar a forma de proa./Atravessam caibros grossos, ou finos aos dois, facetados na partesuperior para servirem de bancos.19Válido tanto para as canoas paulistas como para as amazônicas, as quais eram maiorese se chamavam ubás, fazia-se uso no século XVIII do mesmo procedimento de fabricação dosindígenas.20 Os madeiros utilizados eram a peroba, o tamboril e o ximbó;21 Francisco deOliveira Barboza acrescenta que da casca do Jataí, “por ser muito grossa, fazem os gentios esertanistas canoas para navegarem”;22 Langsdorff refere o uso da imbaúba.23 Tais madeiroseram requisitados no vale do rio Capivari.24 [Páginas 132 e 133]
No afã de obterem uma mezinha ou amuleto que servisse de recurso preventivo paratoda a sorte de males do sertão, os mamelucos elaboravam as mais variadas receitasterapêuticas a partir da incansavelmente perseguida anhuma. Contra as pestilências advindasdo ar, ar de estupor, ar de perlesia e outros bafores doentios, bem como para evitar mordidasde serpentes, mal olhado e envenenamentos, um amuleto do esporão ou do unicórnio daanhuma era um item sumamente desejado.39 As raspas dos esporões dessa ave, assim como apedra-bazar, misturados com água e dados a beber, eram havidas como neutralizadoras depeçonhas ofídicas.40Produzida pelo amálgama de tradições das populações que viviam às margens do rioTietê há muito tempo antes da invasão dos conquistadores europeus – populações queinclusive nomeavam o rio de Anhembi, rio das anhumas – e de tradições dos adventíciossequiosos, durante toda a Idade Média, pelo encontro daqueles animais míticos que povoavamas florestas do imaginário europeu, a disposição dos mamelucos para a obtenção das virtudesoferecidas pela ave anhuma é, provavelmente, um dos resultados mais bem acabados dahibridação cultural.41 Em viagem científica pelo interior do Brasil, realizada no ano de 1826 pela rota dasmonções, Langsdorff observou que os mareantes possuíam cada um o seu amuleto comorecurso terapêutico e preventivo para os mais diversos males. Em vez de cruzes, os rosáriosdos trabalhadores exibiam amuletos, evidenciando a presença de uma cultura híbrida queincorporou e recriou itens das culturas indígenas locais.Cada um dos nossos empregados traz um rosário pendurado nopescoço e dão muito valor a ele, pois é o que lhes ensina a religião. Sóque, ao invés de uma cruzinha, eles penduram relíquias e amuletos,que para eles tem o mesmo valor, pois acreditam firmemente que elesos protegem de picadas de cobras venenosas, cachorros raivosos,aleijamentos, outras doenças e eventuais tentações perigosas do diabo.Entre esses objetos encontram-se dentes de lobo, de porcos selvagens,de onças. O chifre da anhuma é tido como grande protetor. Dizem queo bico do macuco faz o doente sangrar.42A mordida de serpente era um perigo iminente para os mareantes e viajantes emqualquer dos pousos diários que a monção tem que fazer durante os mais de cinco meses deviagem a Cuiabá. Um dos pilotos da canoa de Lacerda e Almeida, em viagem de Vila Bela a [Página 169]