“Reflexões sobre uma zona de fronteira no século XVII: A província do Guairá e Sertão dos Carijós”, Dora Shellard Corrêa
3 de julho de 2020, sexta-feira. Há 4 anos
Essa imensidão localizada a norte, noroeste, oeste e sudeste doatual Estado do Paraná é um interessante espaço para se discutir omovimento das fronteiras da Europa na América à época domercantilismo. Relevante, não pelo que a documentação nos apresenta deforma direta, mas pelos detalhes, aqueles comentários do testemunho quesão, muitas vezes, uma parte menor do que ele nos contou. Ou aqueledado que, à luz da arqueologia ou antropologia, toma outro sentido,diferente daquele que o narrador quis imprimir (GUINZBURG, 1989).São pequenas minúcias e sinais que indicam ter sido a realidade dafronteira muito mais complexa do que temos descrito. Particularmente, setivermos em conta que há uma dinâmica indígena em andamento, sobre aqual só temos alguns pequenos e insignificantes vestígios e à qual oseuropeus terão que se acomodar ou, pelo menos, buscar apreendê-la(MONTEIRO, 1998; CUNHA, 2009). Havemos de lembrar também quenem tudo, aliás pouco, na América Portuguesa foi documentado epreservado. As atividades ilegais e o cotidiano da população pobre estãodocumentados somente em atos de repreensão formal, quando essaspessoas foram pegas por agentes policiais. Quanto às terras, as fontesoficiais se restringem aos locais onde os agentes do Estado estavampresentes ou onde a elite queria evidenciar a sua própria presença.
A Província do Guairá ou o Sertão dos Carijós, do ponto de vista europeu nos séculos XVI e XVII, era uma fronteira. Fronteira tanto no sentido geopolítico, entre a América espanhola e portuguesa, como no cultural, um espaço de expansão, contato e tensão da cultura de base europeia com culturas indígenas diversas e, portanto, paisagens, hábitos, línguas, formas de espacialização e territorialização variados (HOLANDA, 1994).
Embora os testemunhos, em sua grande maioria jesuítas e agentes da Governação do Rio da Prata e Paraguai,3 do Vice-Reino do Peru, tenham exposto as suas diversidades fitogeográficas – florestas, cerrados, campos, várzeas; étnicas – grupos Jê e Guarani; e políticas – diminutos locais ocupados, explorados e dominados por colonos e jesuítas assimcomo territórios indígenas, as denominações empregadas - Província do Guairá e Sertão dos Carijós – levam a se pressupor homogeneidades inexistentes.
Porém, uma leitura atenta dos documentos indica que as autoridades espanholas, os colonos e os jesuítas não tinham o domínio objetivo e abstrato daquelas terras e gentes e que se acomodavam a esse fato. Da mesma forma, essas terras não eram ocupadas, exploradas e transitadas unicamente por Guarani: os documentos identificam também grupos Jê, nomeados de Gualachos, Camperos e Chiquis.
O Guairá era, em sua maior parte, um espaço indígena sobre o qual europeus e euro-americanos avançavam, onde perambulavam, faziam acordos, cativavam, matavam e guerreavam. Contudo, não tinham um domínio político-militar e paisagístico efetivo daquele espaço. Quando penetraram naquelas terras e se estabeleceram nelas no século XVI,interferiram, direta ou indiretamente, nas dinâmicas existentes, mas também foram obrigados a se conformar a elas. Foram principalmente culturas Jê e Guarani que dominaram, se defrontaram, conviveram e transformaram aquele espaço, muitos séculos antes da chegada dos espanhóis e portugueses (NOELLI; CORRÊA, 2016).
Foram movimentos desconectados com o incerto perímetro da Província do Guairá ou das colônias espanholas e portuguesa.
A leitura das fontes informa que esse interior da América, como outras tantas zonas de fronteira do continente, foi sendo perambulado, conhecido, disputado, ocupado atomizadamente, mas também perdido. A instabilidade dos povoados fundados, depois abandonados, refundados, transladados não foi em nada incomum na Governação e Província do Rio da Prata e Paraguai no início dos dois primeiros séculos da colonização.
No que ficou conhecido como Província do Guairá, foram fundadas: Ontiveros, em 1554; Cidade Real do Guairá, em 1557; Vila Rica do Espírito Santo, em 1570 e Santiago de Xerez, em 1593. Das quatro, Ontiveros foi abandonada, e Vila Rica mudou de localização pelo menos uma vez em 1589, tendo sido seu sítio original abandonado. Talvez tenha depois dado lugar ao Tambo, local de extração de ferro (CORTESÃO, 1951, p. 287).
Santiago de Xerez, fundada com gente de Cidade Real do Guairá e de Vila Rica do Espírito Santo, na beira do baixo Ivinhema, foi realocada no mesmo ano para a margem do rio Aquidauana ou Miranda(NOVAIS, 2004).
Entretanto, em 1605, havia nessa vila somente 15 homens de armas (HOLANDA, 2014, p. 157). As reduções jesuíticas deSão Francisco Xavier e Encarnação deslocaram-se logo depois de seuestabelecimento e, em 1628, falava-se na transferência da redução de SãoJosé (CORTESÃO, op. cit., p. 217). Tais movimentos foram justificadospela insalubridade do sítio ou pela falta de aldeias próximas que pudessemsustentar o padre responsável. [Páginas 2, 3 e 4 do pdf]
dinâmicas políticas e territoriais dessas populações indígenas.Discorreremos particularmente sobre: a delimitação da Província doGuairá, sobre os caminhos e o trânsito dos jesuítas, espanhóis,portugueses e euro-americanos pelas veredas que cruzavam aquelas terrase a percepção de territórios étnicos e cacicados.
A delimitação Embora tenhamos fixado o nosso foco de atenção em parte da Província do Guairá, especificamente, no norte, noroeste, oeste e sudeste do atual Estado do Paraná, um perímetro limitado pelos rios Iguaçu, Paraná, Paranapanema e Tibagi, onde em 1628, havia duas vilas espanholas, a Ermida Nossa Senhora de Copacabana,4 um local de extração de ferro (Tambo) e treze reduções jesuíticas, e inúmeras aldeias Guarani e Jê, é interessante discutir, a princípio, a delimitação daquela província como um todo pelas autoridades espanholas e pelos jesuítas.
As inconstâncias dos testemunhos reproduzidos pela historiografia quanto ao desenho do Guairá, reflete a instabilidade dos contatos e acordos com os grupos indígenas locais; a vagarosa ampliação da quantidade de núcleos isolados ocupados (vilas e as reduções) ao longo do tempo; a própria fragilidade das condições de sobrevivência e permanência dos colonos, assim como um desleixo dos testemunhos. Segue abaixo um dos poucosmapas históricos que tem como objeto a Província do Guayra. [Página 6 do pdf]
Essa indeterminação dos limites do Guairá, característica de terras fronteiriças nos séculos XVI, XVII e XVIII,5 reflete-se, ainda hoje, na produção acadêmica sobre essa província. Alguns pesquisadores delimitam a Província do Guairá a partir das reduções jesuíticas estabelecidas (MELIÁ, 1988); outros inscrevem Santiago de Xerez como uma vila do Guairá (VILARDAGA, 2014); outros ainda a estendem até o rio Itararé (JAEGER, 1957); há quem avance pela porção paulista do Paranapanema (NOELLI; TRINDADE, 2003) ao Tietê (GAY, 1942) e, finalmente, há um grande número de estudos que a fixam como as terras cercadas pelos rios Paraná, Tibagi, Iguaçu e a porção paranaense do Paranapanema (SCHALLENBERGER, 2005; OSSANA, 2008; CHAGAS, 2010).
Essa última delimitação é a mais comumente adotada, porque dentro dela estão as reduções e as duas vilas espanholas e, portanto, expressiva parte da documentação escrita por agentes espanhóis e jesuítas, e utilizada pelos pesquisadores, trata de acontecimentos ocorridos nessa área.
Esse traçado, contudo, nos remete aproximadamente às fronteiras atuais do Estado do Paraná. Há uma ideia subjacente a essa imagem, a saber, que a Província do Guairá, assim como, o Estado do Paraná, foram definidos por questões naturais e não políticas ou administrativas.
Ou seja, antes mesmo da própria definição das fronteiras coloniais e mesmo nacionais, já existia a unidade territorial, com fronteiras naturais, que somente em 1853 será reconhecida e tomará o nome primeiro de Província (Império) e depois de Estado (República) do Paraná.
Mesmo a linha que separava as colônias espanholas da portuguesa, fixada pelo Tratado de Tordesilhas de 1494, foi firmada em papel, antes mesmo de se ter noção do continente como um todo. Na prática, no século XVII, não só os Estados europeus desconheciam o interior da América - portanto, onde exatamente a linha atravessava - como não parecia haver condições e preocupação em observá-la rigorosamente.
A atenção, no caso do Guairá, era com o caminho que ligava, por terra, São Paulo a Assunção, passando por Vila Rica do Espírito Santo e Cidade Real do Guairá e que possibilitava o contrabando de mercadorias até Potosi. Mas também com a possível e pouco documentada migração de portugueses para as vilas espanholas e de espanhóis para as vilas portuguesas. Por alguns processos de pessoas presas pelas autoridades espanholas de Vila Rica, nota-se que havia traficantes, mas também gente que migrou para o lado espanhol ou para o lado português (VILARDAGA, 2014; 2019).
A descrição feita pelas fontes do perímetro, ou melhor, daslocalidades que estavam inseridas na Província do Guairá, mostra ovagaroso avanço de uma ocupação espanhola e jesuítica em um punhadode núcleos isolados. A tendência da historiografia tem sido desconsideraresse isolamento dos núcleos e generalizar a ocupação dos europeus e dospadres para os seus limites de 1629, quando os jesuítas já haviam erigido13 reduções nas proximidades dos rios Paranapanema, Tibagi,Corumbataí, Ivaí e Piquiri.6 [Página 9 do pdf]
Entretanto, esse perímetro estava longe da realidade de 1556, quando foi fundada a Cidade Real do Guairá, na confluência do rio Paraná com o Piquiri. Somente meio século depois foram fundadas as duas primeiras reduções. Mesmo que a ampliação do número de reduções, além de Santo Ignácio e Nossa Senhora do Loreto, já fosse uma intenção dos jesuítas em 1610, devemos lembrar que a organização das outras 11 reduções, nos rios Tibagi, Ivaí, Corumbataí e Piquiri, avançando por florestas pluviais, de araucária e campos, só aconteceu depois de 1625.
E, mesmo assim, como abordaremos mais à frente, a localização dessas reduções foi possivelmente determinada pelos índios, consequência, talvez, mais das relações entre os grupos reduzidos com os não reduzidos do que desses com os jesuítas. Vários são os nomes, que encontramos nas fontes, pelos quais se denominam essas terras. Como aponta o pe. Guilhermo Furlong Cardiff:
“A toda esta zona, del extremo norte, y próxima al Paraná llamaban de Tebajiba, de Pirapó y de Guairá” (1962, p. 104). As cartas jesuíticas, bem como relatos espanhóis, remetem ainda a outros recortes no interior dessa Província do Guairá que se referem a um rio como Atibagiba, Yparanapanema (CORTESÃO, op. cit., p. 137), a um líder como terras dos Taiaová (ibid., p. 316), ou a um grupo étnico como terras dos Gualachos e Cabelludos (ibid., p. 255). Essas balizas étnicas são registradas em mapas dos séculos XVII e XVIII (BLAEU, 1662; VICENZO, 1692; CHATELAIN, 1732).
A frágil delimitação é parte importante da história da Província doGuairá. Não que seja uma peculiaridade da área: ela não é muito diferentedo que acontecia na América como um todo e não só em zonas defronteira. Expõe, entretanto, a oscilação do povoamento europeu, assimcomo revela um certo desleixo nos séculos XVI e XVII quanto àsreferências por escrito e cartográficas a espaços territoriais mais afastadosda sede do governo provincial e tenuamente ocupados e controlados.A documentação jesuítica induz a um perímetro do Guairá,enquanto as fontes produzidas por agentes do Estado espanhol levam àpressuposição de limites divergentes e, também, incertos. Os jesuítasrestringem os seus relatos, obviamente, à área abrangida pelas reduçõessupervisionadas, a partir de 1612, por Antônio Ruiz de Montoya, e tratama serra e porto de Mandacaju, com seus ervais trabalhados por índios dasreduções de Santo Ignácio e Nossa Senhora do Loreto, como uma áreaperiférica (CORTESÃO, op. cit., p. 173). Os documentos administrativosdos espanhóis expandem a província, em alguns momentos, para Santiagode Xerez. Em sua viagem a Assunção para assumir o seu posto deGovernador da Província do Paraguai em 1628, Céspedes Xeria, quedesembarcou em São Vicente e seguiu, a partir da vila de São Paulo, porrio e por terra, fez um relatório, descrevendo a Província do Guairá e,dentro desta, a vila de Santiago de Xerez e a serra de Mandacaju (ANAISDO MUSEU PAULISTA, 1922, p. 182).Essa preocupação com uma delimitação menos promíscua estáamparada por concepções descabidas àquela conjuntura. Preocupações [Páginas 10 e 11 do pdf]