A literatura de José de Anchieta e a gênese da educação brasileira; Rosemeire França de Assis Rodrigues Pereira. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Programa de Literatura Brasileira - 01/01/2006 de ( registros)
A literatura de José de Anchieta e a gênese da educação brasileira; Rosemeire França de Assis Rodrigues Pereira. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Programa de Literatura Brasileira
2006. Há 18 anos
Desumanizados como vimos a princípio, citados constantemente nas Atasem condição de peças, os nativos do sertão ainda tinham como seus maioresinimigos os descendentes de seus pares com os portugueses. Lacouture(ibidem) reforça que os mamelucos paulistas foram responsáveis peladestruição de muitas reduções guaranis. Em suas incursões, a caminho doParaná, as missões espanholas também representavam para eles verdadeiroscriadouros de índios domesticados, prontos para serem capturados eescravizados.119
Encontramos na documentação solicitação dos colonos paulistas para atacarem e descerem índios carijós (guaranis):
“...pela quall rezão requeremos ao sor capitão da parte de deus e de sua magª q sua mercê com a gente desta dita capitª faca guerra campal aos índios nomeados carijós os quaes a tem a mtos anos merecida por terem mortos de quareta anos a esta parte mays de conto e cinqtª homes brancos assi portuguezes como espanhóis atee matare padres da compania de jesus q foram doutrinar e ensinar a nosa santa fee catholica...” [Sessão de 6 de abril de 1585]
No contexto da guerra justa admitida pelo Governador Geral Mem de Sá,os colonos de São Paulo encontram justificativas bastante convincentes paraatacarem as tribos guaranis no extremo sul. Independente de não seremaqueles índios os assassinos dos padres, todos os guaranis podiam sofrer apena e serem alvos da fúria dos colonos e mamelucos, assim como ocorreuaos caetés. Ora, a principal justificativa foi essa, entretanto a mais racional erao crescente esvaziamento das fazendas da mão-de-obra indígena. Vulneráveisaos maus-tratos e às doenças, os nativos, tanto administrados quanto aldeadosviviam em constante desgaste de seus contingentes. O fato é que sem essesmotores animados não havia produção em nenhuma capitania da Colônia. [Página 56]
A disputa constante entre padres e colonos nos revela, por meio da documentação, o estado de tensão constante em que viveram as capitanias em suas primeiras décadas:
“se o caso for que o dito gentio se quera dar de paces lhe requeremos a sua mercê que lha não de senão com condição q sejão regattados pelos moradores desta capitª e não em aldeãs sobre si porque estando o dito gentio sobre si nenhu proveito alcanção hos moradores desta terra...” [Sessão de 01 de setembro de 1585, Atas da Câmara da Cidade de São Paulo: p.277]
As entradas eram realizadas em conjunto, ou pelas partes interessadas,como registra Anchieta que foi o Padre Gaspar Lourenço ao Arabó, e trouxeum golpe de gente; depois disso foi o Padre Diogo Nunes à serra do Rari, edesceu também gente126. Quando também nas ocorrências das guerras justas,o produto delas (i.e. o índio) era disputado entre as três categorias : colonos,padres da companhia e autoridades locais. Sendo assim, não podia haverentradas no sertão sem o capitão, um padre e mamelucos a serviço doscolonos. Anchieta registra um desses feitos :Foi com eles um dos nossos, para lhes dizer Missa e pregar, e ir adeantelevando a cruz, e um irmão intérprete para os índios batizados, que com eles iam. 127Fato confirmado na documentação desse período :Para descer índios do sertão não vejo gente mais a propósito que os padres daCompanhia porque são muito conhecidos no sertão onde têm muito crédito eauthoridade com o gentio por lhe tratarem sempre verdade (...).128 Dado importante nos registros documentais é que, quando as fazendas eas aldeias esvaziavam-se, a primeira iniciativa dos colonos e padres eraadentrar o sertão e tomar mais índios para a catequese e para o trabalho. Édifícil assinalar a diferença das atitudes de uns e de outros, quando ambos [Página 58]
O principal cuidado que deles se tem, consiste no ensino dos rudimentos da fé, semomitir o conhecimento das letras, às quais tanto se afeiçoam, que se nessa ocasião senão deixassem seduzir, talvez outra se não pudesse encontrar.156 O trabalho era intenso e exigia de Anchieta a percepção do momentopropício, mesmo não omitindo o ensino das letras, constata-se que ele nãoenvolvia todos os catecúmenos, e os que do letramento se apropriavam eramvistos com estima especial:...totalmente remetidos aos seus antigos e diabólicos costumes, exceto o comer carnehumana, do que por bondade do Senhor parece que estão alguma coisadesarreigados, entre estes a quem ensinamos verdades: que fazendo ainda grandesfestas na matança dos seus inimigos, eles e seus filhos, ainda os que sabiam ler eescrever...157 Por isso, representava uma perda muito grande o retorno desses poucosmeninos alfabetizados aos costumes de seus pais. A catequese, na verdadevivia um clima de constante insegurança, mesmo nos aldeamentos, as baixaseram freqüentes e sucediam de inúmeras causas: epidemias, fugas em massa,deserções e o altíssimo índice de mortalidade infantil (“na Baía se criam mal osmeninos e morrem muitos” 158). Observação feita porque as crianças eram osprincipais objetos de persuasão dos padres. Sem elas a catequese não teriafuturo, por isso a insistência de se oferecer especial atenção aos curumins.
Além dos escritos anchietanos, os documentos também testemunham o desgaste constante dos contingentes indígenas, visto que:
Esta terra parece esta em mtº risquo de se despovoar mais do q nunca esteve e se despovoa cada dia por causa dos moradores e povoadores della não terem escraveria do gentio desta terra (...) per rezão de mtª enfermidades q na terra avia como he de câmaras de sangue e outras doenças. [Sessão de primeiro de setembro de 1585] [Página 68]
à Coroa em todo tipo de trabalho fora dos aldeamentos e das vilas. Comoatesta a documentação do Planalto de Piratininga:Não consitão levar os ttais índios pelo que ttodos asy requererão a eles dittos hofiçiaispr ser e prejuízo da ttera y estaremos em froteiras e teremos nottiçia dos cottrairosestare juntos e não tteremos que corra as frotteiras e tabe houtras nesecidades quesoçede...246
Para provimento de mão-de-obra para os colonos, Mem de Sá declarou guerra justa aos caetés pelo sacrilégio cometido contra o Bispo Fernandes Sardinha. Para desespero dos jesuítas, muitos índios cristianizados e residentes nos aldeamentos foram seqüestrados e levados pelos colonos como escravos porque descendiam dos caetés. Em Piratininga Jerônimo Leitão autoriza guerra justa contra os carijós a pedido dos moradores:
Digo q he necesº q suas merces se ajunten en hu dos lugares aonde he custume pera praticar e tratarmos sobre as cousas desta guerra q elles requere e por q parte sera melhor hir e aver mais aparelho e o necesario pª iso de que se ao de fazer autos por todos asinados conforme ao regimetº Del rey noso sr q delles ten treslado em suas câmaras no capitº q diz da maneira q os capitães ao de ordenar as guerras e eu conforme a elle estou prestes pêra tudo o que se asentar e virmos que he mais serviço de noso sor e Ben da terra... [Sessão de 25 de agosto de 1585]
Uma das justificativas para o consentimento dessa guerra foi o assassinatodos dois irmãos da Companhia, Pero Corrêa e João de Sousa, mortos peloscarijós numa emboscada, enquanto iam ao Paraguai.248 A dispersão dos nativos só seria parcialmente controlada a partir dainstituição dos aldeamentos, fato que só ocorreu ao final do século XVI.Embora não haja registro da data exata, dois dos principais aldeamentospaulistas, Pinheiros e São Miguel aparecem nos registros oficiais em 1580 coma concessão de uma sesmaria.249 Não obstante os pedidos de Anchieta, podese constatar que, em 1561, o braço do Governador ainda não havia se feito [Página 108]
jesuíta. Entretanto, não se pode ignorar, que apesar de não demonstrarnenhuma preocupação estética na composição de seus autos, Anchietaconseguiu, na simplicidade de seu discurso, ordenar o aparente “caos histórico”que se organizou no imaginário do índio de forma precisa. Já em 1585, quando a experiência da sujeição não oferecia grandesresultados na educação dos nativos, pois os mesmos fugiam e se rebelavam,causando grandes transtornos a padres e autoridades seculares, urgiaencontrar outros meios de cristianização. O terror puro e seco já não dava maisresultados. Ele continuaria sim, mas de forma sutil e perspicaz, a corroer asestruturas dos costumes brasis e, além disso, cultivar o combate à heresiaprotestante. Em nenhum momento Anchieta tencionou instruir o nativo quanto à estéticado teatro, seus atos ou sua importância dentro do contexto clássico humanista.Não havia preocupação teórica, mesmo porque não era esse o objetivo dacatequese. “O que, sobretudo preocupava os jesuítas era a civilizaçãocristã”.335 Como visto anteriormente, a maioria dos nativos não sabia ler,decoravam suas falas e as repetia “com muita graça em falar línguasperegrinas, máxime a castelhana”,336 exceção feita pelo mesmo Cardim deAmbrósio Pires, índio que foi levado a Portugal com o padre Rodrigo de Freitase certamente recebeu instrução superior àquela comumente oferecida aosmeninos nativos. Pela desenvoltura com que representava o curumim, davamostras de que na Europa estudara teatro e se aperfeiçoara na técnica darepresentação (Cardim, apud Prado, op.cit.). O teatro jesuítico também se estabelecia conforme a clientela:Nessas representações primitivas, convém distinguir, desde já, duas espécies,segundo eram para as aldeias ou para os Colégios: para as aldeias, autos; para osColégios, além de autos, havia comédias e tragédias, a denunciar a prática estética, deestilo mais guindado ou, como veremos exprimir-se Aquaviva, “mais escolástico egrave”.337 [Página 152]