A Trama das Tensões - O processo de mercantilização de São Paulo Colonial (1681-1721)
2002. Há 22 anos
Ainda por meio das atas, notamos o vulto que tomou o comérciopecuarista, principalmente com o litoral. Em agosto de 1683 a Câmaramandou notificar Manoel F. de Brito para que não circulasse com seu gadopelo Caminho do Mar porque este “estava danado do gado e bramava opovo por ser estrada geral [...]”.23 Em abril de 1686, o contratador LuísPorrate Penedo pediu ajuda ao Concelho para ordenar que ninguém levasse gado pelo Caminho do Mar a Cubatão, por causa do dano que os bovinos causavam nos aterrados, pontes e na própria estrada. Os oficiais daCâmara concordaram, ressaltando que notificariam especialmente o mesmo Manoel F. de Brito para que não levasse mais gado pelo Caminho doMar.24 Pela já citada sessão de 19.1.1695, verificamos o grande desenvolvimento deste comércio de gado pois, como já foi ressaltado, o procuradordo Concelho requereu que se afixassem quartéis para que nenhum criadorvendesse seu gado fora da terra “pella m.ta falta q~ ha delle”, sob pena depagar uma condenação de 6$000.25 A articulação com o mercado mineirooferecia novas possibilidades para os criadores: em fins de 1698 o capitãoJoão de Crasto de Oliveira pediu à Câmara permissão para que ele levassegado para as minas do Rio das Velhas, oferecendo em troca dourar, comouro, o retábulo e a tribuna da Igreja Matriz. O Concelho lhe deu licençade levar, por duas vezes, durante o ano de 1699, o gado para as minas.26A venda crescente do gado paulista para outros núcleos e para olitoral causava, assim, problemas para o abastecimento interno de carne,requerendo a intervenção constante da Câmara. Anualmente o Concelho punha em praça o corte da carne, arrematando-o para aquele que seobrigasse a fornecê-la ao menor preço, e, a partir de 1688, por duasvezes semanais.27 De 1681 a 1692, o preço variou entre meia pataca(160 réis) e dois tostões (duzentos réis) a arroba,28 e vários foram osarrematadores: João Martins Batista,29 José de Faria,30 Domingos Leite de [Página 164]
Por intermédio destes exemplos, percebe-se a importância que aconservação das vias de comunicação passou a desempenhar nas últimasdécadas do século XVII. Eram pontes, caminhos e aterrados que facilitavam tanto o acesso quanto as saídas da vila, permitindo uma melhorarticulação com os bairros e demais núcleos de povoamento, elementovital para o desenvolvimento do comércio paulistano.60Fazem parte deste contexto, ainda, os cuidados na conservação doCaminho do Mar, passagem já utilizada pelos indígenas antes mesmo dacolonização portuguesa e elo vital para a própria sobrevivência de SãoPaulo de Piratininga.61O Caminho do Mar, na verdade, desempenha um papel fundamental, tanto para a própria colonização portuguesa, quanto para a ascensão hegemônica da vila na região. De um lado, por este caminho, SãoPaulo assegurou a sobrevivência do litoral, exportando para os núcleoscosteiros gêneros alimentícios e gado. Garantiu, assim, em última instância, a própria sobrevivência da colonização, uma vez que, no período,as articulações Metrópole-Colônia se realizavam, basicamente, com olitoral. Por outro lado, a manutenção das comunicações com Santos eCubatão viabilizavam a conquista e colonização interioranas, pois é peloCaminho do Mar que chegavam aos núcleos do planalto tanto os gêne [Página 171]
É patente, pois, o papel do Caminho do Mar para o desenvolvimento mercantil e político da vila. A preocupação com a conservaçãodesta estrada é outro tema recorrente nas atas da Câmara e, dada a dificuldade deste trabalho ser feito pelos próprios moradores das vilas elugarejos por onde este caminho passava, chegou-se a uma solução alternativa nos inícios da década de oitenta: vincular a sua manutenção aoscontratos monopolistas de venda dos vinhos, aguardentes, azeites e vinagres do reino.Este acordo ressalta o estreito imbricamento existente entre oCaminho do Mar e o comércio da região, pois, para os contratadores poderem vender, monopolisticamente, os produtos acima elencados, elesse comprometiam
a fazer o caminho do mar desta villa athe o Cobatão de cavalgaduras em carga sem em nehûa paragem serem descarregados [...] se obrigavão a fazer como ditto he dentro em hûn anno e com obrigação de o comesarem a fazer neste de oitenta e hû asim mais q~ tendo alguma danificação acudirião ao concerto dentro em quinze dias primeiros com pena de seis mil Réis [...] mais de pagarem mil cruzados se dentro do ditto tempo não fizerem o ditto caminho [...] quer se consertem com as villas serconvezinhas quer não. [Actas da Camara da villa de S. Paulo, 2.3.1681]
Ora, a simples existência desta articulação – contratos de vendavinculados à feitura do Caminho do Mar – revela que o mercado consumidor da vila e de seus arredores não era tão desprezível assim, justificando tanto os riscos da travessia da serra, quanto a constante manutenção da estrada por conta e risco dos contratadores.Passado quase um ano da assinatura do contrato, o procurador doConcelho requereu que os oficiais mandassem averiguar se o Caminhodo Mar estava feito e acabado de conformidade com a promessa doscontratadores; requereu, também, que se houvesse alguma falta ou“desconserto no dito caminho, fosem os ditos contratadores noteficadoscom as penas consinadas”. [Actas da Camara da villa de S. Paulo, 20.1.1682]
A manutenção do Caminho era, portanto, dificultosa e o Concelho constantemente advertia os contratadores sobre a necessidade de suaconservação. Em novembro de 1688, por exemplo, o vereador mais velho reclamou que a estrada estava muito danificada, exigindo que senotificasse o contratador Luis Porrate Penedo para que a refizesse, conforme a obrigação de seu contrato, já que o povo se queixava “por estaro Caminho emcapas de serventia”. [Actas da Camara da villa de S. Paulo, 1.11.1688. Veja-se também outras cobranças aos contratadores, no mesmo sentido, nas reuniões de 31.7.1683 e6.4.1692]
Assim, os múltiplos caminhos e os cuidados com sua preservação, bem como a preocupação com as entradas e saídas da vila, atestam odesenvolvimento mercantil paulistano bem como a sua própria expansão. Neste processo, tanto econômico quanto político, foi de fundamental importância a articulação dos diferentes bairros aos caminhos queconduziam à vila.Em 19.7.1681 o procurador do Concelho requereu que os vereadores mandassem notificar Luis do Amaral, Manoel Moreira e os demaismoradores do bairro de Santo Amaro para que mandassem consertar aspontes e aterrados que seus gados danificavam; igualmente ordenou queesta notificação fosse estendida a todos os bairros de todos os “recomcabos”da vila cujas pontes e aterrados encontravam-se arruinados pela caminhada do gado, sob pena de seis mil réis ou “fazerce a sua custa”.67No início do ano seguinte, Braz de Arzão, procurador do Concelho, requereu que se afixassem quartéis para que os capitães dos bairros [Páginas 173 e 174]
gêneros molhados foi franqueada a todos e a Câmara esperava arrecadarmais que os 300$000 de subsídios anuais, indicativo da mercantilizaçãoda cidade.72Outra fonte de recursos da Câmara, também sintomática da expansão da teia mercantil e do desenvolvimento da capital, é a arremataçãodos direitos de passagem do Rio Pinheiros, rota das canoas que faziam ocomércio com Santos e Cubatão e, também, caminho para Sorocaba.73Em outubro de 1704, o procurador do Concelho requereu que se arrematasse a dita passagem para quem mais oferecesse por ela.74 O mesmoLuis de Barros Souto Maior, que não conseguira o contrato das bebidasem 1705, arrematou a referida passagem por 10$000 anuais, por umano, enquanto a Coroa não determinasse o contrário, já que as passagensdos rios eram direito real; Luis de Barros comprometeu-se a cobrar $040por pessoa e carga que atravessassem o rio;75 no ano seguinte, arrematounovamente a dita passagem.76Já em 1708, João Ferreira de Carvalho foi o novo arrematador,pagando, por um ano, 50$600.77 No mesmo ano, Pedro Taques deAlmeida, então procurador da Coroa, alegou ser proibido o arrendamento das passagens fluviais porque elas pertenciam à Coroa; requereuque o dinheiro pago por João F. de Carvalho fosse depositado até que seprestassem contas à Sua Majestade; também solicitou que se prestassemas contas de todo o montante arrecadado dos direitos das passagens atéaquela data.78 Os camaristas aceitaram o requerimento de Pedro Taquese depositaram, nas mãos do arrematante, o dinheiro que tinha pago atéentão: 35$000.79Ciente dos crescentes rendimentos das passagens fluviais que levavam à vila, a Coroa fez valer seus direitos e ordenou ao governador [Página 280]