Roque José Florêncio, usado como “escravo reprodutor” viveu 130 anos e teve 200 filhos (Revista Galileu)
15 de agosto de 2016, segunda-feira. Há 8 anos
Roque José Florêncio, escravo de um proprietário de terras dos arredores de São Carlos, no interior de São Paulo, teria nascido na primeira metade do século 19 e morrido, de acordo com sua certidão de óbito, em 1958. Declarado "escravo reprodutor" por seu porte físico, visto como ideal para gerar crianças adequadas aos trabalhos forçados, seria pai de 200 crianças e antecessor direto de 30% da população do vilarejo rural de Santa Eudóxia. A história é relatada por uma de suas netas, Maria Madalena Florêncio Florentino.
Florêncio, cujas mãos longas e finas lhe renderam a alcunha de Pata-Seca, foi comprado pelo latifundiário Francisco da Cunha Bueno em uma feira na então vila de Sorocaba.
Pata-Seca não trabalhava na lavoura, nem vivia na senzala. Tinha boas relações com seu proprietário e era responsável por percorrer todos os dias, a cavalo, os 35 quilômetros que separam o vilarejo rural da cidade de São Carlos para buscar a correspondência, além de cuidar dos demais animais de transporte da fazenda.
Na época, porém, corria o mito de que homens altos de canelas finas seriam mais propensos a gerar filhos também homens, uma superstição lucrativa nos longos e cruéis anos da escravidão no Brasil. Com 2,18 metros de altura, Florêncio foi designado “escravo reprodutor”, e era obrigado a visitar a senzala regularmente para estuprar as mulheres. Estima-se que 30% da população do distrito de Santa Eudóxia, hoje, seja descendente de Pata-Seca, que teria cerca de 200 filhos não registrados.
Foi no serviço de mensageiro que conheceu Palmira, moça da cidade que pediu em casamento, colocou na garupa do animal e levou para o sítio. Os recém-casados ganharam do dono da fazenda 20 alqueires de terra, em que construíram uma casa e tiveram nove filhos. Sem dinheiro para cercar o terreno, perderam parte dele para os vizinhos. No espaço restante, Florêncio criou galinhas e vendeu os ovos, plantou mandioca e abobrinha e produziu utensílios domésticos que vendeu nas redondezas até sua morte, em 1958.
Para vir ao mundo na condição de escravo, Pata-Seca teria que ter nascido antes de 1871, quando foi assinada a Lei do Ventre Livre. Ao que tudo indica, ele teria nascido na primeira metade do século 19, e vivido 130 anos.
O psicólogo Marinaldo Fernando de Souza, doutor em educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), afirmou ao G1 que "a história oficial tende a forçar o esquecimento da memória negra”. “Em Santa Eudóxia existe uma história a ser vasculhada, a ser contada, e que fica relegada a um status de menor valor", disse ele, que abordou a história em sua tese de doutorado.
Para o pesquisador, a presença de Florêncio pode explicar como o número de escravos da região continuou subindo mesmo após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que impediu o tráfico de escravos da África pelo Atlântico em 1850.
"Se fosse um branco, não seria lenda. Ele é real, foi escravizado", comentou o pesquisador. "Essa história precisa ser resgatada e não precisa de documentos. Os documentos são forjados em prol da elite branca. A memória negra precisa vir à tona".