Novos elementos para a história de São Paulo Paulistas cristãos-novos contra os jesuítas - Anita Novinsky Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - 01/01/2005 de ( registros)
Novos elementos para a história de São Paulo Paulistas cristãos-novos contra os jesuítas - Anita Novinsky Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
2005. Há 19 anos
Sofreu grande revés em Caazapamirim no final de 1638 e retornou a São Paulo. Chegou à vila em março de 1639, doente e abandonado por seus índios, apenas com a gente de seu filho Jorge Fernandes. Em 19 de abril de 1641, já restabelecido, assinou procuração dos moradores de Parnaíba ao capitão Antônio Raposo Tavares para os representar junto ao Rei.[Novos elementos para a história de - Portal de Revistas da USP]
Investigações realizadas nas últimas décadas sobre os conversos e a Inquisição na América acrescentaram dois novos elementos para a compreensão da guerra que os portugueses de São Paulo, chamados bandeirantes, travaram contra as reduções jesuíticas no Uruguai e na Bacia do Prata. Primeiro, a origem judaica dos bandeirantes paulistas; segundo, o envolvimento do Tribunal da Inquisição de Lima, no Peru, no conflito dos padres da Companhia com os paulistas. À medida que os jesuítas evangelizavam os índios e erguiam aldeias, as reduções se alastravam, ocupando extensas áreas que os bandeirantes atacavam, segundo os historiadores, fundamentalmente em busca de índios para suprir suas parcas economias. Depois de 1628 os ataques dos bandeirantes aos aldeamentos jesuíticos se intensificaram. Os famosos bandeirantes Antonio Raposo Tavares, Pedro Vaz de Barros, ambos conversos, e outros destruíram inúmeras reduções de Guaíra, Vila Rica, Vila Real, Xerex, e aprisionaram os índios expulsando os jesuítas do Paraná. Apossaram-se da terra, que foi incorporada ao Brasil, estendendo-se a conquista até a região do Itati, chefiada por André Fernandes, também converso. Foi conquistada a região do Tape e do Uruguai onde os paulistas se apoderaram de todas as reduções.
O velho antagonismo político entreEspanha e Portugal foi transferido para aAmérica, onde se agravou, acrescido decausas locais. Os portugueses eram vistoscomo inimigos e um perigo para a segurança do Estado. A Inquisição de Lima desfechou-lhes forte golpe, torturando e enviando para a fogueira centenas de portuguesessuspeitos de judaísmo. Durante os anos deluta pela independência de Portugal, osportugueses eram vistos como traidores empotencial que tramavam a sua separação daEspanha. O padre Antonio Ruiz Montoia,procurador das províncias do Paraguai,repetia sempre que todos os portugueseseram judeus, e foi de Buenos Aires paraMadri a fim de denunciar os hereges e osbandeirantes.Nas divergências políticas existentesentre Espanha e Portugal, a Companhia deJesus teve, na América espanhola, uma função política decisiva, muito mais significativa do que na América portuguesa. Durante os sessenta anos de regime filipino asdesconfianças entre Espanha e Portugalforam recíprocas. Quando o padre Montoiafoi nomeado superior das missões, em 1620,escreveu uma carta denunciando os bandeirantes, afirmando que queriam abrir ocaminho para a vila de Potosi, e limitar asreduções, para poder passar livremente parao Peru.Os portugueses, durante os anos daUnião Ibérica, eram considerados “estrangeiros” em terras de Espanha, impedidosde entrar em território espanhol sem licença especial. O antinacionalismo dos portugueses se expressava então como anticastelhano, antijesuítico e antiteocrático.Quero apresentar nesta comunicaçãoalguns resultados e algumas reflexões baseadas nas novas investigações sobre aInquisição, os conversos e a Companhia deJesus. Primeiro, jesuítas como principaisagentes da Inquisição na América; segundo, anti-semitismo no interior da Companhia de Jesus principalmente a partir daúltima década do século XVII; terceiro,ideologia que motivou a guerra dos portugueses contra as missões; quarto, tendências da historiografia clássica.No volume I da História da Inquisiçãona Espanha e América, publicado por Joaquim Perez Vilhanueva, o historiadorBartolomeu Escandel Bonet chama a atenção para o fato de que a Inquisição na América é ainda um campo virgem (1). Poucorealmente se tem pesquisado sobre a açãodo Santo Ofício na América espanhola, masa partir da análise de documentos inquisitoriais, ainda inéditos, pensamos poderpreencher algumas lacunas, e abrir um novoenfoque para futuras investigações.JESUÍTAS AGENTES DA INQUISIÇÃONA AMÉRICAComo sabemos, desde a onda de conversões dos judeus ao catolicismo em 1931e o seu batismo forçado em 1497, em Portugal, a questão judaica não mais abandonou o cenário político da Península Ibérica. A Inquisição estendeu sua fiscalizaçãosobre o Novo Mundo, e os conversos, tantona América lusitana como na espanhola,tornaram-se matéria-prima. A fiscalizaçãoera feita tanto por agentes especialmenteenviados do reino, os “comissários” ou“familiares do Santo Ofício”, ou pelo clerolocal, liderado pelo bispo. No século XVII,durante a guerra pela Restauração do tronode Bragança, toda a correspondência dosinquisidores para o Brasil, sobre a questãodas heresias, era dirigida diretamente ao [Páginas 1 e 3 do pdf
os jesuítas e os bandeirantes paulistas,registrados nas Cartas Ânuas que os irmãosenviavam das missões para a Espanha.Nessas cartas, o anti-semitismo textualmente se manifesta. Os paulistas eram designados com os mais injuriosos nomes e claramente apontados como “judeus encobertos” e “falsos cristãos ” (5). Religião e interesses materiais se mesclam então indistintamente. Até há alguns anos não conhecíamos a origem dos ancestrais dos portugueses que guerreavam contra as reduçõesjesuíticas. Pesquisas recentes, efetuadas noarquivo da Inquisição portuguesa, oferecem-nos algumas hipóteses interessantes econfirmam que os jesuítas tinham plenanoção de quem eram os bandeirantes, suasorigens e suas crenças. A confirmação daorigem judaica dos portugueses residentesem São Paulo contribui para a compreensão do acirrado ódio que nutriam contra osjesuítas e muda radicalmente o cenáriocolonial. Alguns aspectos do quadro daguerra contra as missões criam um significado diferente do que lhe foi conferido atéo presente.O anti-semitismo dos irmãos da Companhia de Jesus na América vem amplamente registrado na documentação jesuítica – tanto nos termos ofensivos comque se referiam aos judeus, como no seuenvolvimento com a Inquisição de Lima,voltada para a perseguição aos conversos.Ao denunciarem, aos seus superiores, os“crimes” dos bandeirantes do Brasil, osjesuítas não deixavam de lembrar que“eram cristãos e agiam como judeus” eque estavam todos “infeccionados de judaísmo”.
Os jesuítas das missões estavam ligados com a Inquisição de Lima, eram seus homens de confiança e encarregados pelos inquisidores limenos de fiscalizar, perseguir e excomungar os hereges “conversos”. Um exemplo bastante elucidativo da relação dos jesuítas com a Inquisição é o caso do superior das reduções, Diogo de Alfaro, nomeado comissário do Santo Oficío da Inquisição de Lima e incumbido de encontrar os hereges, puni-los e excomungá-los. Os bandeirantes o mataram [Carta XXXVIII – “Informe e justificação jurídica do uso de armas de fogo pelos índios, apresentados pelos jesuítas do Paraguai, ano 1639”; Carta de Diogo de Boroa e outros: “Mataran los sacrílegos Portugueses al Padre Diogo de Alfaro, Superior de las Missiones y Comissário del Santo Oficio”; e também em “Carta do Cabido Eclesiástico de Assunção ao Vice do Peru, em 18 de abril de 1639”, in Jaime Cortesão, Manuscritos da Coleção De Angelis III. Jesuítas e Bandeirantes no Tape (1615-1641), Biblioteca Nacional, 1969.].
A partir do conhecimento da origemjudaica dos bandeirantes, entra no conflitoum novo componente – a Inquisição. Astradicionais interpretações sobre as origenseconômicas da guerra das missões deixamde ser exclusivas para dar lugar a dois fatores que me parecem igualmente decisivos:a ideologia anticatólica dos bandeirantes eo anti-semitismo dos jesuítas.AS RAZÕES QUE MOTIVARIAM ALUTA DOS BANDEIRANTES CONTRAOS IRMÃOS DA COMPANHIAA guerra sangrenta que se travou entreos bandeirantes paulistas e os jesuítas dasreduções deve ser ainda analisada sob doisângulos: o econômico e o ideológico. Deum lado a obra colonizadora realizada pelos jesuítas tinha um caráter temporal, poisa Companhia de Jesus era uma empresamercantil. De outro lado, do índio e o seucomércio, garantia aos moradores da nascente Piratininga uma subsistência básica,mesmo que não explique totalmente o furor,o ódio e a violência com que os paulistas seatiravam sobre as reduções, destruindo esaqueando as igrejas. A razão que deve serbuscada para isso é a resposta dada pelosconversos à desumanidade, ao racismo, àdiscriminação com que a Igreja, através doTribunal da Inquisição, tratava os descendentes de judeus. Foi a resposta a um longomovimento anti-semita que se estendia desde a criação do Tribunal na Espanha e Portugal, em 1478 e 1536 respectivamente.
Para o entendimento do conflito bandeirantes x jesuítas deve-se considerar, além dos interesses materiais e antagonismos religiosos, uma outra questão: o confronto de duas mentalidades, essencialmente antagônicas, a dos jesuítas – conservadora,elitista e dogmática – e a dos bandeirantes – aventureira, livre e descrente –, uma representando os interesses territoriais e econômicos dos reis da Espanha, outra reivindicando uma autonomia territorial e uma liberdade religiosa. No confronto com osjesuítas no Guaíra, Itatim, Tape, Paraná e outras reduções, os portugueses se levantaram contra o opressor, pois os jesuítas estavam ligados à Inquisição de Lima. Quando os bandeirantes mataram o comissário da Inquisição de Lima, Diogo de Alfaro, ocabido de Assunción, indignado, escreve ao vice-rei do Peru sobre o crime dos portugueses, que impiedosamente assassinaram o comissário da Inquisição, e pede ao governador do Paraguai que castigue os criminosos (7). A atitude dos bandeirantes levantou uma onda de protestos, a ponto de o procurador geral da Companhia de Jesus das Províncias escrever ao rei da Espanha, Felipe IV, também rogando por justiça e remédio contra “los crimes de los portugueses em Brasil” [Carta XXXVI – “Petição do Padre Antonio Ruiz de Montoia a Felipe IV, pedindo remédio contra as invasões e danos causados pelos portugueses do Brasil nas Reduções do Paraná e Uruguai”, Madrid, 1639, in Jaime Cortesão, Jesuítas e Bandeirantes no Tape, op. cit], todos “infeccionados de judaísmo”.
Os brasileiros sabiam que os jesuítas defendiam os “estatutos de limpeza de sangue”, que lhes negavam direitos iguais. As palavras do brasileiro Francisco de Melo, sobre a mania de nobreza dos espanhóis, revelam a ironia e deboche com que os conversos encaravam a fobia espanhola pela linhagem: “em matéria de nobreza”, diz Melo, “poderia pôr-me corpo a corpo com Deus e o padre Eterno” [Carta XXXV – “Carta do Padre Antonio Ruiz de Montoia ao padre João de Ornos dandolhe noticias do Rio de Janeiro e do que ali soube em relação as bandeiras paulistas”, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1638, in Jaime Cortesão, Jesuítas e Bandeirantes no Tape, op. cit., p. 292.].
A irreligiosidade e a iconoclastia dosbandeirantes escandalizavam os padres, queos denunciavam , alegando que colocavamestampas com imagens de Nossa Senhora,São João e padre Ignácio na sola de seussapatos. Entender a mentalidade dos paulistas nos primórdios da história de SãoPaulo implica o conhecimento de “quemeram?”, de “onde provinham?”, “qual seubackground?”. Apesar das raras fontes quetemos sobre suas vidas no interior de suascasas e sobre suas idéias, alguns fatos podem explicar suas diferentes atitudes durante o conflito, como por exemplo sua incredulidade, sua aversão à Igreja, às imagens, aos padres e à confissão. Do ponto devista político, os bandeirantes eram acusados de favorecer a Restauração da Casa deBragança e a independência de Portugal, masos jesuítas ressaltavam que não eram fiéisao rei de Portugal, pois consideravam a terrade São Paulo “como sua”, com um rei próprio que seria Dom Antonio, prior de Crato,concorrente ao trono de Portugal e representando a facção oposta de D. João IV.Aventureiros e intrépidos bandeirantesconversos trouxeram consigo um amor àliberdade, e constituíram os primeiros troncos das antigas famílias paulistas. É provável que alguns aportaram nas capitanias doSul fugindo das perseguições na pátria. NoBrasil formaram verdadeiros clãs familiares, apoiados na solidariedade e no segredo. Mantiveram, como muitos conversos,a endogamia e organizaram suas entradaspelo sertão com a participação de pais efilhos, irmãos, tios e sobrinhos. O espíritode cooperação que havia entre os membrosda comunidade conversa criou, no início,um ambiente de democracia, sem distinçãode classe. A elitização dos dominantes dasociedade paulista se processou gradativamente, até que com o correr dos séculos,constituindo as camadas dominantes dasociedade paulista, passaram, eles mesmos,a discriminar.A vinculação dos conversos com o seupassado judaico transparece claramente emdiversos momentos, como por exemploquando o padre Antonio Rodriguez, superior de todas as missões de Guaíra, saindoao encontro de uma capitania de portugueses, pediu-lhes que se fossem embora emnome de Deus e Sua Majestade, ao que ospaulistas responderam que “não reconheciam Sua Majestade por seu Rei, que eles otinham no Brasil”, e notou o padre que “traziam armas particulares que não eram deSua Majestade”. Perguntando ainda o padre “con que autoridade haciam guerra aaquellos Índios, y los cantivavam”, responderam que “con la autoridad de Moyses lesdava em la Escriptura de debellar las gentes” (10). E soube de um índio criado pelosditos portugueses “que guarban el sábadopor dia de fiestas. Las quaresmas comencarne em el serton, aunque tengan manjares quaresmales” (11).Sem dúvida nenhuma, o mais representativo dos conversos paulistas foi o bandeirante Antonio Raposo Tavares. Revolucionário, rebelde, violento, batalhador contraa teocracia jesuítica. As pesquisas realiza [Páginas 5 e 6 do pdf]
das sobre sua genealogia, pelo prof. JoséGonçalves Salvador, trazem surpreendentes dados sobre sua origem e permitem reconstruir alguns quadros de sua vida (12).A declaração de judaísmo de Antonio Raposo Tavares vem expressa numa frase quepronunciou quando, sendo questionado porum jesuíta sobre a autoridade moral dospaulistas em guerreá-los, respondeu quecom a autoridade “que Deus lhes dava noslivros de Moisés” (13).Jaime Cortesão ressalta o espírito revolucionário de Antonio Raposo Tavares, quedefendia a supremacia da jurisdição civilsobre a eclesiástica, a soberania nacionalcomo superior a qualquer hierarquia religiosa (14). Iconoclasta, era acusado, com outros bandeirantes, de ser “homem sem Rei,sem Lei e sem Deus”. Quando Jaime Cortesão escreveu a magnífica biografia sobreAntonio Raposo Tavares não tinha conhecimento da origem judaica de seu personagem. Hoje, com o conhecimento que temossobre sua origem, podemos entender melhor o que Cortesão chamou de“desmistificação do Universo e da Natureza”. Antonio Raposo Tavares enfrentoucom seus companheiros a mais prestigiosaordem de seu tempo – a Companhia deJesus. Os bandeirantes eram chamadospelos jesuítas de “brutos”, que destruíram as reduções para “apoderar-se de los índiosdespues los vendem y los deixam morrirsin extrema unción”. Eram acusados dosmais graves delitos, atrocidades e sacrilégios, profanando as coisas sagradas, proferindo blasfêmias, ultrajando e ferindo osreligiosos e fazendo-lhes “muy malestratamientos”. Os jesuítas, nas CartasÂnuas, especificam os crimes dos bandeirantes e chamam São Paulo de “terra dehereges”.
Jaime Cortesão chama a atenção sobre a historiografia clássica, provavelmente influenciada pela literatura jesuítica, que intencionalmente “conspirou” para o silêncio que pairou sobre Raposo Tavares. Durante séculos os historiadores silenciaram sobre seus feitos e sua personalidade, silêncio que foi plenamente endossado pela facção governante. Na destruição das reduções espanholas, Raposo foi a alma daempresa. Com André Fernandes, também converso, com 200 brancos e mamelucos e 1.000 índios, destruiu a rede jesuítica espanhola em Itatim. Chegou ao Brasil aos 18 anos, junto com o pai e um irmão. A madrasta Maria da Costa, conversa, em cuja casa se criou, era fervorosa judia, na cidade de Beja. Foi presa, torturada e ficou seis anos nos cárceres da Inquisição. A leitura do processo de Maria da Costa abre umanova veia para o conhecimento dos antepassados de Raposo Tavares e para a compreensão de sua irreverência religiosa. Conta o processo de Maria da Costa que ela tentou fugir para o Brasil, onde se encontravam o marido e os enteados, mas foi denunciada e presa. Reduzida à miséria, com duas crianças menores, nunca reviu a família do Brasil (15).
Raposo Tavares foi juiz ordinário edepois ouvidor da Capitania. Expulsou osjesuítas de Barueri e lutou contra o estreitomeio político das classes governantes daMetrópole, educadas e orientadas pelo espírito da Companhia de Jesus. Em São Pauloformou um novo conceito de vida, imbuídode liberdade. Os jesuítas tudo fizeram paraentregá-lo à Inquisição. Segundo Cortesão,Raposo Tavares foi o descobridor de umcontinente, pois destruindo as missões do [Página 7 do pdf]