Janeiro (Cf. MORAES, 1858:232; BRANDÃO, 2000:127/8; ABREU, 2010:296/310).Este contexto acabou por desaguar em uma situação insólita. Em 1638, o governador doRio de Janeiro Salvador Correia de Sá e Benevides, certamente sabedor da situaçãoirregular da capitania que governava, preferiu nela conceder sesmarias fundamentadonão em sua autoridade de governador, mas na de procurador da herdeira da capitania deSão Vicente, a Condessa de Vimieiro (Cf. DEUS, 1861:542).Ainda no século XVII, em 1676, a questão da legalidade do Rio de Janeiro vemà tona por conta de Francisco Luís Carneiro de Sousa, Conde da Ilha do Príncipe. Comofilho herdeiro de D. Mariana de Faro e Sousa, esta herdeira da Capitania de São Vicentepor doação de seu irmão D. Diego de Faro e Sousa, veio requerer a Pedro II que lhefosse passado o registro e translado da carta de doação desta capitania, no que foiatendido “por provisão de Sua Majestade registrada no livro 9° à folha 104” 6. Ao emitiro alvará confirmando o direito do requerente como donatário, conforme expresso notranslado da carta de doação em apêndice ao alvará, apesar de Pedro II fazer ressalvas aalguns direitos originais concedidos a Martim Afonso, como o de enviar para o Reino24 escravos nativos e de condenar a morte escravos e peões sem direto de apelação auma alçada maior, não faz nenhuma referência a algum tipo de desmembramentoterritorial ou alteração nos limites originais da capitania. Finalmente, Pedro IIdetermina que, afora as limitações por ele especificadas, a dita carta fosse cumprida nasua integridade, o que incluiria a capitania do Rio de Janeiro dentre seus domínios.Contudo, o donatário, ao que parece, não conseguiu fazer efetiva a determinação régia.Em 1711, o Marques de Cascaes, herdeiro da Capitania de São Paulo, que, naverdade, correspondia a antiga Capitania de Santo Amaro, e não a de São Vicente,vendeu seus direitos de donatário para a Coroa. Assim, o que a Coroa legalmentereincorporou aos seus domínios em São Paulo foi somente à estreita faixa de dez léguasconcedida a Pero Lopes de Sousa onde, ao que parecia, estaria situada a vila de SãoPaulo.[Página 8]
Pouco após, em 1716, Antonio Carneiro e Sousa, filho de Francisco LuísCarneiro de Sousa, herdeiro do título de Conde da Ilha do Príncipe e da Capitania deSão Vicente, requereu ao Conselho Ultramarino seus direitos como donatário de cemléguas no distrito do Rio de Janeiro7. Em apêndice ao parecer consta seguintedespacho: “O Conde da Ilha do Príncipe pede que se mande pagar a redízima que lhetoca das cem léguas de terra formadas em Capitania no distrito do Rio de Janeiro, deque é donatário”. Em 1720, o mesmo encaminha um novo requerimento ao ConselhoUltramarino onde igualmente se diz donatário de 100 léguas de terras na Capitania doRio de Janeiro, de que era cabeça a Villa de Nossa Senhora da Conceição de Etinheam8.Neste, reivindica que lhe fossem respeitadas as suas jurisdições e regalias consignadasnas respectivas doações (Cf. ALMEIDA, 1921:376). Neste mesmo ano de 1720, em 29de março, o Conde da Ilha do Príncipe obteve de D. João V a confirmação de seusdireitos sobre a doação da Capitania de São Vicente “como consta na secretaria doconselho ultramarino no Livro 4° das cartas e ordens do Rio de Janeiro, tit. 1720 até1723, n.49, fl. 11” (MORAIS, 1858:222).Ainda em neste mesmo ano de 1720, o loco tenente do Conde da Ilha doPríncipe fez uma composição com o Conde de Assumar, governador da Capitania deSão Paulo, para receber os direitos correspondentes aos rendimentos de Taubaté,Pindamonhangaba e Guaratinguetá, vilas situadas na porção setentrional da Capitania deSão Vicente. Porém, no ano seguinte, D. Rodrigo de César Menezes, ao suceder oConde de Assumar, mandou suspender o pagamento, sob a alegação da Coroa já tercomprado do Marques de Cascais a capitania de São Paulo em seu todo (LEME, 1869[1772]: 476). Apesar de Leme, que tratou deste assunto somente cinco décadas após,informar que após então não houve “movimento algum de donatário interessado na suacapitania das cem léguas de costa concedida de juro e herdade a Martim Affonso deSousa” (Idem, 1869:476), conseguimos identificar, dentre a documentação do ConselhoUltramarino, uma posterior petição reivindicatória encaminhada pelo mesmo Conde daIlha do Príncipe. [Página 9]
Esta, que nos parece ser a última reivindicação do donatário, tem em anexo acertidão datada de 20 de junho de 17249. Em sua petição, o requerente informa ternotícias não ter chegado à capitania do Rio de Janeiro as ordens régias que mandassemguardar “os privilégios que lhe são concedidos pella sua Doação nas terras de que heDonatario”. Nesta mesma petição, consta o despacho régio determinando o envio dasordens por mais duas vias, “visto não se ter noticia de terem chegado a Capitania do Riode Janeiro”. Contudo, o donatário veio a morrer logo após deste despacho régio, no mêsde novembro. Seu filho herdeiro, Francisco Carneiro de Sousa, quarto Conde da Ilha doPríncipe, tinha então somente 15 anos. Veio ele a morrer sete anos após, em 1731, aoque tudo indica sem requerer ao Conselho Ultramarino a provisão régia dereconhecimento de seus direitos donatários das cem léguas no distrito do Rio de Janeiro.Apesar de seu irmão mais novo, Carlos Carneiros de Sousa, ter herdado o título edireitos do Conde da Ilha do Príncipe, ao que indica esta sucessão não se estendeu aodireito donatário da capitania.Em 1735, Carlos Carneiro de Sousa negociou com a Coroa a troca de seu título edireitos de Conde da Ilha do Príncipe pelo de Conde de Lumiares. O genealogista reinolD. Antonio Caetano de Sousa, com trânsito na corte como “Deputado da Junta da Bullada Cruzada”, em obra contemporânea ao acontecimento, assim nos informa destanegociação.Lumiares, he huma Villa na Provincia da Beira duas legoas para onascente, de que ElRey Fidelissimo D. Joseph I. creou Conde porDecreto de 29 de Outubro de 1753 a Carlos Carneiro de Sousa,mudando-lhe o titulo de Conde da Ilha do Principe, de que eraDonatarios, dando-lhe em satisfação da dita Capitania, e das suasregalias, e jurisdicções o Senhoria da Villa de Lumiares com a data detodos os officios, que nella tinha, como dos Orfãos, e a regalia destesofficios se chamarem por ellle, e servirem por suas cartas, e nomearOuvidor na forma da Ley, e servirem por sua carta, e com outrasprerogativas, tudo de juro, e herdade, dispensada três vezes a LeyMental, e por equivalente da utilidade, que tocava a Donataria, lhe fezmercê de hum juro Real de setecentos mil cada anno, pagos peloseffeitos da Conselho Ultramarino (...) (SOUSA, 1755:413-4). [Página 10]
Portanto, a única donataria negociada foi a da Ilha do Príncipe. Contudo, estefato deu margem ao surgimento de uma versão onde se considera que a cessão para aCoroa da donataria da Capitania de São Vicente constava também desta negociação.Apesar de Benedito Calixto ter demonstrado não haver suporte documental para estaversão, ainda hoje alguns estudiosos a tem como verdadeira.O distinto historiador brasileiro dr. Capistrano de Abreu, a quemconsultamos sobre o assunto, nos diz em uma carta: “Procurei notíciassobre a data da incorporação da capitania de São Vicente à Coroa, masfui infeliz na pesquisa”. (...) É estranhável, mesmo censurável e dignode reparo – bem é que se repita – que, nenhum destes escritores, quecitam a carta régia fazendo anexação à Coroa, da parte da Capitania deMartim Afonso, em 1753 ou 1754, nos digam o arquivo em que seacham transcritos tão valioso documento! (CALIXTO, 1927:183)Devemos assim observar que, em que pese o excelente levantamentobibliográfico e de documentações primárias no trato de sua recente obra GeografiaHistórica do Rio de Janeiro, Maurício de A. Abreu se equivoca ao concluir que “todaessa celeuma teve fim no início do século XVIII, quando a Coroa retomou por compra ajurisdição plena sobre as antigas capitanias paulistas” (ABREU, 2010:296).De nossa parte, a partir do falecimento de Francisco Carneiro de Sousa nãoconseguimos encontrar alguma outra referência documental sobre reivindicação dedireitos donatários da Capitania do Rio de Janeiro, o que nos leva a considerar que suaincorporação ao patrimônio da Coroa não se deu em conformidade às normas do AntigoRegime, já que não foi nem por compra do donatário em exercício, conforme ocorridocom as capitanias limítrofes de Santo Amaro e São Tomé, ou Paraíba do Sul, e nem porindenização de herdeiros, conforme ocorrido com a Capitania da Bahia de Todos osSantos.Considerações ComplementaresEm trabalhos anteriores, procuramos demonstrar que era de fundogeoestratégico, por condicionamento do regime de correntes marítimas, a razão maiorque levou a Coroa intervir diretamente na baía da Guanabara (Cf. BRANDÃO,1993:716-7; 2000:128; 2005:5-6). Como a ocupação permanente desta estratégica baía [Página 11]