' Os Avá Guarani no este do Paraná. (Re)Existência em Tekoha Guasu Guavira. Coordenação científica: Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Organização: Danielle de Ouro Mamed, Manuel Munhoz Caleiro e Raul Cezar Bergold - 01/01/2014 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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Os Avá Guarani no este do Paraná. (Re)Existência em Tekoha Guasu Guavira. Coordenação científica: Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Organização: Danielle de Ouro Mamed, Manuel Munhoz Caleiro e Raul Cezar Bergold
2014. Há 10 anos
mas muito importantes também, como Antônio de Santo Domingo, Cobarrubias, queenfrentam criticamente o falso poder que sobre as terras da América tanto o ImperadorCarlos V como os Papas consideravam próprios.Francisco de Vitória já questionava a presença dos espanhóis e o fato de se apropriarem do domínio dos bens e das coisas dos índios. Nem o Imperador, nem o Papatêm direito nenhum para tirar a possessão dos bens que eles têm, mesmo que sejamviciosos, antropófagos, adúlteros, sodomitas, ou não sei o quê. Vieira diz que tanto valeo cocar de plumas quanto a coroa, o arco quanto o cetro.Hoje não somos capazes de pensar isso, muito menos atuar dentro dessa normade justiça. De Francisco de Vitória é essa passagem: “É contra o direito natural que umhomem aborreça sem razão outro homem, pois não é o homem um lobo para o homem... se não homem.”Os espanhóis e portugueses quando chegaram não tinham qualquer direito detomar as terras de outro, de nenhum outro, seja judeu, muçulmano ou índio. Tirar dequalquer um, é o mesmo que tirar de um cristão. É roubo e esbulho. No século XVIexistia um pensamento crítico mais avançado do que agora. O direito internacionalainda repete isso, as Constituições de nossos países proclamam esses direitos: as leis sãoaceitáveis, a prática é perversa.Os primeiros jesuítas no Paraguai estavam pensando dentro dessas categorias, umpensamento humanista e cristão, e apesar de uma certa pressão em vistas à conversãodo gentio, pelo menos enquanto à defesa do território e às autoridades mantiveram umsistema indígena. Nas Missões ou Reduções entrou nominalmente o sistema espanhole houve uma estrutura colonial municipal: corregedor, secretário, iscal, cabildo..., mastambém mantiveram sempre, até a expulsão dos jesuítas, os caciques. Esse ´bilinguismo´político foi uma concessão à prática colonial, mas sem destruir o sistema indígena. Emcerto modo é a estratégia que adotaram atualmente muitos povos indígenas.As missões em grande parte ajudaram a manter a população, os jesuítas deixarampopulações com uma boa urbanização, que não temos até hoje nos povoados rurais.Ainda neste livro, esta passagem do padre Antônio Vieira: “Quem tem por ofício aconversão do gentio, tem que ter duas coisas nas mãos: um livro para os doutrinar, euma espada para os defender. E se esta espada se tirar das mãos de Paulo e colocá-las nasmãos de Herodes, que sucederá? Nadará toda a Belém no sangue inocente, e é isso quequeremos evitar” e ainda esta: “Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essascapas se torcessem, haviam de lançar sangue!” Aqui no Paraguai, os advogados nuncaleram Francisco de Vitória, ou coisa parecida. Eles distorcem a lei. Não querem saber defazer justiça, querem distorcê-la. Nisso são especialistas! [Página 40]

Além das praticas rituais é necessário cuidar do corpo, tornando-o leve e sadio, para alcançar a plenitude (aguyje) e alcançar yvy marã´ey, o que é possível com uma alimentação produzidacom seus cultivos e as espécies deixadas por Nhanderu na terra. Como explica o xamõi Ismael,Nhandejara deixou pra gente o mato, pros guarani. Tudo o que tem no mato.Todo remédio ele deixou no mato pra gente. Aí tem mel de abelha, jataizinho,tem vários mel e tem vários alimentos no mato. E vários remédios no mato prosguarani. Pra gente tomar banho com os remédios, pra gente tomar no chimarrão,no terere, pra dor do coração pra dor de cabeça, tem tudo no mato. Porque? Nhanderu deixou, batizou, deixou no mato pra gente.Antigamente caia a chuva porque existia mato e por isso a gente tinha saúde,porque a água é a nossa vida. Não só dos índios só, de todos. Agora, porque agoraataca muito a doença? Por causa química27. Agora, só de vez em quando a gentevê chuva, água já está acabando. Antigamente não, onde você corta no mato vocêvai achar mina boa, geladinha, vai tomar água, água é vitamina. Qualquer árvore,cipó você corta assim, e cai aquela água, você vai tomando aquela água, água docipó. Não faltava, e agora? O sol esquenta demais! Porque não tem mais mato,acabou. E acabaram com a nossa vida, nossa vida está terminada.E por isso que a gente precisa cooperar, quem sabe, e ter de novo esse mato, umpouquinho. O branco fala assim; os índios vai querer uma terra aí só pra campearo mato. Vai ser bom pra nós e pra todos. Porque todas as coisas vão voltar de novo,tudo não sei... mas vai voltar metade. Porque esse mato defende nossa natureza.REGISTROS HISTÓRICOS DA PRESENÇA GUARANI NO SÉCULO XVIOs registros dos viajantes e cronistas nos primeiros séculos da conquista da América doSul, demonstram a amplidão do território ocupado pelos Guarani nas porções meridional eoriental da América do Sul. O português Aleixo Garcia28 teria sido o primeiro europeu a atravessar o continente, a partir da Ilha de Santa Catarina, onde naufragou no ano de 1515, atéAssunção, pelo caminho Peabiru. Álvaro Nuñez Cabeza de Vaca chega à Ilha de Santa Catarinaem março do ano de 1541, permanecendo entre os indígenas durante seis meses até partir rumoà Assunção. Durante o percurso orientado pelos guias indígenas, eram os inúmeros “povoadosde índios guaranis”, que recebiam e abasteciam com abundância sua expedição. Segundo relata“Esses índios pertencem à tribo dos guaranis; são lavradores que semeiam o milho e a mandiocaduas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que nós na Espanha, possuem [Página 63]

mercadoria, no escravismo colonial majoritariamente empreendido nos domínios portugueses - os bandeirantes foram os inimigos declarados das missões desde o seu princípio.Ocorreu que, nas reduções jesuíticas, o próprio indígena foi empregado como elemento colonizante, como parte da tarefa civilizadora almejada pelos Estados europeus.Ocupar o espaço aparentemente despovoado, construído aglomerados urbanizados edando produtividade à terra, era uma forma de legitimação da posse pela Espanha doterritórios interioranos.No conceito moderno de propriedade, em largo emprego nos domínios do colonialismo mercantil, dar produtividade e melhoramento à terra ocupada era requisitofundamental à legitimação do espaço concedido. Como já mencionado, o Guairá estavaem uma região de fragilidade e incerteza, consistindo a presença jesuíta para conversão eredução do gentio uma atuação bastante incentivada e interessante.Neste aspecto é que as missões serão consideradas tanto como espaço de exploração da mão de obra indígena, e como espaço de dominação cultural e religiosa, pelasubstituição dos costumes guaranis e suas práticas originárias. O autor Blas Garay, crítico das missões jesuíticas, assim airmou:Começava o trabalho dos índios ao amanhecer e durava até que escurecesse, semmais descanso do que duas horas, concedidas ao meio-dia para almoçar. Quandolhes tocava ocupar-se em suas sementeiras, dirigiam-se a elas em procissão, precedidos pela imagem de algum santo levada em andor, com acompanhamento detambor e lauta, ou de orquestra mais numerosa. A imagem era logo posta ao abrigo de uma ramada, e depois de curta oração, entregavam-se todos a seus afazeres.(GARAY, 1921, p. 58)A disciplina rígida e o controle sobre o trabalho, a produção e a própria rotina doguarani reduzido despertou uma série de questionamentos, tanto por parte dos colonosprejudicados pela diminuição do contingente de mão de obra compulsória disponível,quanto pelas autoridades coloniais constituídas, que alegavam a construção de um cenário político paralelo à autoridade metropolitana.Porém, ao Rei da Espanha fora mais conveniente manter a proteção do indígenareduzido em relação ao sistema externo de trabalhos, e delegar autonomia à Companhiade Jesus na direção econômica e social interna missioneira – ainal, era mais interessantegarantir o tributo do indígena, do que assumir os riscos inerentes à perda do controle eda centralização do poder colonial.Na prática tratava-se de uma situação complexa para os indígenas, pois até entãoconheciam o trabalho encomiendado e com ele já haviam estabelecido mecanismos de controle, ao passo que a nova proposta de trabalho tributado à Corte deEspanha era desconhecido. Além disso, havia outro fator que pesava nesse jogode poder, a questão das redes de famílias que se estabeleceram na região desde [Página 97]

mais favoráveis que o resto dos índios, gozaram do benefício de comercializar aprodução das Missões, e inclusive organizaram as milícias guaranis, as quais serviram à defesa interior e exterior de ambas as províncias por mais de um século, semcusto para a Real Hacienda, sob a direção dos chefes militares das ditas províncias.(MAEDER, 2013, p. 23)Estes benefícios concedidos às Missões Jesuíticas, somados a seu sucesso econômico e comercial, suscitaram uma série de conlitos entre os jesuítas missioneiros e asautoridades civis e eclesiásticas tanto dos domínios portugueses quanto hispânicos.Neste tom de ressentimento, o discurso passa a um sentido de exploração porparte dos jesuítas e da restrição dos valores liberais aos índios, que icavam impossibilitados da possessão de bens particulares e do pleno controle da produção. Segundo BlasGaray: “Os produtos da colheita tocavam à comunidade e entravam nos armazéns daCompanhia para ir satisfazendo em eles as necessidades da redução. Ao índio não restavaliberdade” (GARAY, 1921, p. 59).As negociações territoriais em curso na segunda metade do século XVIII contribuíram efetivamente com o encerramento do período missioneiro. Desde o Tratado deMadrid, de 1750, passando-se pelas tratativas de El Pardo em 1761, até o Tratado deSanto Ildefonso, de 1768, o território dos Sete Povos das Missões, na margem orientaldo Rio Uruguai estava em uma verdadeira barganha com a Colônia do Sacramento, noestratégico estuário do Rio da Prata.Em 1767, o decreto do Rei Carlos III oicializa a expulsão dos religiosos da Companhia de Jesus, o que o provincial Francisco de Paula Bucarelli y Ursúa se apressou acolocar em prática. Do lado português o Marquês de Pombal agia com ainda mais aincoe diligência para eliminar a presença da Ordem Jesuíta dos domínios portugueses, tantona Europa quanto nas colônias.Somando-se a esses fatores as severas críticas dos ilósofos e pensadores do Iluminismo em ascensão, e a tendência da separação formal dos poderes, bem como a coroação do liberalismo como tendência absoluta, baseada na propriedade privada, explica-seo entorno desfavorável que enfrentaram as missões em seu período derradeiro.Ainda que em lenta dissolução, as medidas da Coroa Espanhola não foram suicientes para a manutenção das estruturas urbanas e rurais das missões jesuíticas, muitomenos de seu sistema político e social. Isso porque a administração colonial preferiuoutorgar a administração das missões a outras ordens religiosas ou mesmo improvisouuma burocracia administrativa local, permanecendo a comunidade guarani em uma espécie de tutela.A esse respeito é importante observar que o efeito da estratégia missionária jesuíta– que levou os padres a entrarem no interior das sociedades nativas a im de poder transformá-las – havia deslocado o “discurso religioso” de sua dimensão acerca do homem edo mundo, para uma dimensão propriamente civilizadora, antes do que evangelizadora100(AGNOLIN, 2007, p. 398-399) voltada mais ao sucesso da colonização do que ao argumento de conversão do gentio.Neste processo, as dinâmicas internas construídas pelos padres jesuítas em complementariedade ao cacicado guarani não foram levadas em consideração na nova administração colonial. Restou ao indígena ou a submissão às autoridades estabelecidas pelosgovernos provinciais ou a tentativa de retorno ao ambiente originário e os costumestribais.Em ambos os aspectos, a cultura originária guarani se perdeu, tanto por aquelesque permaneceram nos remanescentes das reduções, dependentes do dirigismo por partedos padres jesuítas, quanto daqueles que buscaram o retorno à mata densa, perdendo emparte sua hierarquia tribal e seus métodos originários de coesão social.Porém, se a região fronteiriça da América do Sul conservou, em parte, os remanescentes das populações guaranis até a atualidade, em medida isto se deve aos cento ecinquenta anos de vida reducional, que evitou a eliminação completa do nativo evitandoa escravidão completa pretendida pelos bandeirantes, dos excessos das formas de exploração do trabalho da encomienda e da mita. Ainda que modiicadas em parte, as populações guaranis conseguiram um mínimo de coexistência e inserção no sistema colonialhispânico neste contexto.CONCLUSÕESTratar do tema das Missões Jesuíticas dos Guaranis demanda um esforço de compreensão além de interpretações ideológicas e tendências organicistas do pensamentosocial e jurídico, tendo em vista que, dependendo do autor, do período e das correntesseguidas a abordagem varia consideravelmente.Parte dos autores que se propuseram a tratar das Missões, airma a existência de umambiente favorável ao indígena, que, muito embora admita a obliteração cultural e a imposição religiosa, alega a proteção ao indígena em face aos bandeirantes paulistas, às crueldadesda encomienda e da mita e aos diversos abusos perpetrados pelas autoridades coloniais.De outro lado, seguindo as tendências das vertentes iluministas, as missões jesuíticasdos guaranis são encaradas como um cenário desfavorável, onde o indígena foi convenientemente isolado e condicionado ao trabalho, em benefício dos religiosos e da própria Companhia de Jesus, que assim conseguiu desenvolver uma poderosa organização, paralela ao poderoicialmente constituído, reduzindo o indígena à uma condição de tutela e incapacidade,vedando-lhe os direitos fundamentais da liberdade e da propriedade privada.Sem dúvida a estratégia colonial missionária teve imperfeições, enfrentando altose baixos. Esbarrou também em incompreensões e hostilidades por parte da sociedadecolonial e das autoridades da mesma, incomodando até as hierarquias eclesiásticas colo [Páginas 99 e 100]

Também é digno de destaque que além da concessão de terras para o erguimentode engenhos, as ordens religiosas também detinham grandes quinhões de terras, limitando nessas áreas as dadas em sesmarias para construção de engenhos de cana. Outraslimitações havia para a dada de sesmarias que limitava o poder do donatário, como aexistência de cidades, as estradas, caminhos para chegar à água, margem dos rios ondepudesse aportar canoas, aglomerados urbanos menores, isto pois “havia porções de terrasindistribuíveis, embora a lei silenciasse a esse respeito” (PORTO,[s.d.], p. 122).Também chama a atenção que existiam limitações à dada de sesmos no Brasil relativas a determinadas situações onde se encontrassem povoamentos indígenas. É notório queesta limitação não estava prevista na lei de sesmarias, pois não havia índios em Portugal.Mas relevante reconhecer, como se verá, que na colônia a limitação à dada de sesmariasrelacionada com a existência de povos indígenas não tinha outra razão que não fosse oextermínio dos indígenas e a airmação do modelo de exploração mercantilista na colônia.Está aqui, nesta limitação à concessão de sesmarias, uma das origens da políticade aldeamento, cercamento e dominação cultural dos povos indígenas no Brasil. Essesaldeamentos tinham como inalidade deixar os indígenas em “povoações exclusivas, comterrenos suicientes para cultivar a terra, para viver à maneira do colonizador” (PORTO,[s.d.], p. 124). Tal medida tinha o objetivo “de evitar que, em contato com os índiospagãos, lhes copiassem os maus costumes” (PORTO,[s.d.], p. 124).

Essa limitação de dadas de sesmarias onde houvesse aldeamento indígena aparecejá no Regimento de 1548, elaborado por Dom João III e entregue a Tomé de Souza. Nessa oportunidade Dom João refere-se a uma situação especíica de conflito havido entre indígenas e colonizadores na Bahia, no ano de 1545. No regimento Dom João determina que Tomé de Souza faça aliança com grupos indígenas que tivessem ligações com a colônia, e que se prontificassem a atacar indígenas que haviam assassinado, no conflito de 1545, a Francisco Pereira Coutinho, então capitão-mor da Bahia. Como recompensa à aliança, bem como pelo reconhecimento dos indígenas ante primazia da colônia portuguesa sobre as terras no Brasil, Dom João recomenda que sejam dadas terras aos indígenas. A transcrição da Carta Régia de 1548 é ilustrativa das condições para a dada de terras aos indígenas nessa situação especíica:

Porque sou informado que a linhagem dos tupiniquins destas capitanias são inimigos dos da Bahia e desejam de serem presentes ao tempo que lhe houverdes defazer guerra para ajudarem nela e povoarem alguma parte da terra da dita Bahiae que para isso estão prestes escrevo também aos ditos capitães que vos enviemalguma gente da dita linhagem e assim mesmo lhes escrevereis e lhes mandareisdizer que vos façam saber de como a terra está e da gente armas e munições quetem e se estão em paz ou em guerra e se tem necessidade de alguma ajuda vossa eaos cristãos e gentios que das ditas capitanias vierem fareis bem em agasalhar e osfavorecereis de maneira que folguem de vos ajudar enquanto tiverdes deles necessidade e porém os gentios se agasalharão em parte onde não possam fazer o que nãodevem porque não é razão que vos fieis deles tanto que se disso possa seguir algummau recado e tanto que os puderdes escusar os expedireis e se alguns dos ditosgentios quiserem ficar na terra da dita Bahia dar-lhe-eis terras para sua vivenda deque sejam contentes onde vos bem parecer.

Como se vê, nessa situação especíica deveriam ser concedidas terras aos indígenas, e a limitação de dada de sesmarias decorria do fato de que essas terras já teriamsido dadas aos indígenas, não se tratando de limitação geral à dada de sesmarias ondehouvesse qualquer aldeamento indígena.Como se vê, antes de uma verdadeira limitação à dada de sesmarias, como airmaCosta Porto, a política de aldeamento indígena tinha a função de manter as sesmarias,evitando que os indígenas vivessem conforme seus costumes em suas próprias terras.Não havia opção ante à política de aldeamento que não fosse a guerra cruel do colonizador contra os povos indígenas. O aldeamento, por sua vez, era a morte cultural dopovo indígena como tal, uma vez que qualquer povo indígena “sem o seu território, estáameaçado de perder suas referências culturais e, perdida a referência, deixa de ser povo”(MARÉS, 1998, p. 120).

Foi apenas no século XVII que através do Alvará Régio de 1º de abril de 1680se reconheceu aos povos indígenas um direito abstrato e geral relacionado com a posseimemorial de suas terras, como também a impor limitações à dada de sesmarias. Fundamental a transcrição do trecho especíico do citado alvará:

E para que os ditos Gentios que assim decerem e os mais que ha de prezentemilhor se conservem nas Aldeas, Hei por bem que sejão senhores de suas fasendas como o são no Certão sem lhe poderem ser tomadas nem sobre elles se lhesfazer molestia, e o Governador com parecer dos ditos Religiosos assignará aos quedescerem do Certão logares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem e nãopoderão ser mudados dos ditos logares contra sua vontade, nem serão obrigados apagar foro ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmariaa pessoas particulares por que na concessão destas se reservaria sempre o prejuisode terceiro, e muito mais se entende e quero se entenda ser reservado o prejuiso edireito dos Indios primarios e naturaes Senhores dellas.

Também é necessário resgatar que no ano de 1680 a “Ley Sobre a liberdade dogentio do Maranhão”, bem como o já citado Alvará de 1º de abril do mesmo ano trataram das questões afetas à liberdade dos povos indígenas na relação com a escravidão,além de propriamente da questão territorial.A lei de 1680 procurou estabelecer uma espécie de abolição da escravidão indígena no Maranhão, consignando que:

daqui em diante se não possa cativar Indio algum do dito Estado em nenhum casonem ainda nos exceptuados nas ditas Leys que para este im nesta parte revogo ehei por derrogadas como se dellas e das suas palavras e desposições igura expressae declarada menção icando no mais em seu vigor.Ademais, na mesma lei icou consignado que os indígenasficarão somente prizioneiros como icão as pessoas que se tomão nas guerras daEuropa, e somente o governador os repartirá como lhe parecer mais convenienteao bem e segurança do Estado pondo-os nas Aldeas dos Indios livres e catholicosaonde se possão reduzir a fé e servir o mesmo Estado e conservarem-se na sualiberdade e com o bom tratamento que por ordens repetidas está mandado e denovo mando e emcomendo se lhes dê em tudo sendo severamente castigado quemlhes izer qualquer vexação.Ainda no contexto das exceções, ou reservas de terras às dadas de sesmarias, airma Carlos Marés (1998, p. 126) que:Dentro dessas terras reservadas, estavam contidas não só as que efetivamente a autoridade reservara para formar aldeamentos, como as congenitamente possuídas,isto porque o termo “reservado” se referia antes aos direitos dos índios às terras quepossuíam e depois passou a designar também, nessas mutações próprias do direitoe das sociedades, aquelas que o Poder Público achava melhor para aldear os povosindígenas, na idéia de integração cidadã. Isto explica porque até hoje se apelidamde Reservas Indígenas.Contudo, apesar do reconhecimento de aldeamentos especíicos e do direito originário inscrito no Alvará Régio de 1º de abril de 1680, houve situações em que os direitos reconhecidos foram solenemente ignorados. O desrespeito dos direito já reconhecidoaos povos indígenas decorria do confronto com os interesses da colônia.

Ilustrativa dessa situação, bem como da crueldade com que os indígenas queameaçavam o sistema de sesmarias na colônia eram tratados, é o conteúdo da CartaRégia de 5 de novembro de 1808, escrita a mando do Príncipe Regente D. João VI e endereçada a Antonio José da França e Horta, então Capitão General da Capitania de SãoPaulo, cujo conteúdo que se transcreve é referente a questões dos indígenas Botucudosdas regiões de Curitiba e Guarapuava:

tendo-se veriicado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzi-losa aldeiar-se, e gosarem dos bens permanentes de uma sociedade paciica e doce,debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos, e até mostrando aexperiencia quanto inutil é o systema de guerra defensiva: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os efeitos de humanidade quecom eles tinha mandado praticar ordenar-vos: Em primeiro logar que logo desdeo momento em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar comoprincipiada a guerra contra estes barbaros Indios.

Diante do quadro posto, é possível airmar que a aplicação do instituto das sesmarias no Brasil levou em conta os povos indígenas que viviam nas Américas. Não comopovos independentes com direitos e liberdades, mas como um estorvo, como mão deobra barata que ou entrava no sistema como escravo, ou dele se excluía e tinha a morte,o aculturamento ou a fuga para os interiores como destinos certos.Assim, o reino português tinha para as terras e para os povos das Américas intenções muito distintas daquelas que teve para seu próprio povo, na Europa, na mesmaépoca. A América era para Portugal um lugar para explorar pessoas e riquezas naturais nocontexto do mercantilismo europeu de além-mar, pois conforme Marés “Na realidadenão era sua pretensão colonizar o país com um eventual excedente da população, mas deexpandir o capital comercial europeu” (MARÉS, 2003, p. 61).Logo, a lei de sesmarias não poderia ter a mesma aplicação que teve em Portugal, pois ocontexto de aplicação da norma não era aquele relacionado com a guerra de Reconquista, nãohavia aqui dominação moura, nem reis, nem presúrias e quanto menos todo o contexto socialmedieval da Europa. Assim, ainda que a norma fosse a mesma que se aplicava em Portugal, aalteração do contexto de aplicação impossibilitava que esta tivesse os mesmos efeitos, pois:elementos normativos e empíricos do nexo de aplicação e fundamentação do direito que decide o caso no processo de aplicação prática do direito provam sermultiplamente interdependentes e com isso produtores de um efeito normativode nível hierárquico igual. (MULLER, 2000, p. 58)Por im, com objetivos muito distintos daqueles que o reino português tinha paracom as sesmarias na Europa, no Brasil o principal interesse de aplicação de um institutojurídico de regulação da posse da terra nas Américas “teria o sentido de limitar a ocupação das terras concentrando a produção, segundo o interesse e a possibilidade do capitalmercantil, e obrigar os trabalhadores a manter-se em seus postos de trabalho, comoescravos” (MARÉS, 2003, p. 61).O regime de sesmarias permaneceu vigente no Brasil até 17 de julho de 1822,quando o “Príncipe Regente pôs im ao regime de sesmarias, icando, a partir daqueladata, proibida sua concessão no Brasil, reconhecidas como legítimas as que tivessem sidodadas de acordo com as leis e que tivessem sido medidas, lavradas, demarcadas e conirmadas” (MARÉS, 1998, p. 59).Em 1822, com a declaração de independência do Brasil, e na sequência com aConstituição Imperial de 1824, inaugurou-se um novo momento da história brasileira [Páginas 111, 112, 113 e 114]

Desde o século XVI houve atuação das bandeiras, em busca de minérios, da exploração e conquista de novas terras e de indígenas (CAETANO; PALHARES, 2003, p.16-17), com o que os bandeirantes foram tidos como “os principais responsáveis pela expansão territorial do Brasil”. No início, porém, as bandeiras eram milícias de segurançae caça de indígenas. Somente a partir de 1641, quando foram derrotados pelos jesuítasapoiados pelo governo espanhol, que lhes autorizou o uso de armas em uma disputa porterritório, é que passou a predominar a busca pelo ouro, quando um vasto território jáhavia sido anexado à colônia portuguesa (BUENO, 1997, p. 43).Os bandeirantes, termo atribuído aos sertanistas a partir do inal do século XVII,eram “piratas do sertão (…), grupos paramilitares rasgando a mata e caçando homens– para além da lei e das fronteiras” (BUENO, 1997, p. 41), “homens rústicos, fruto docruzamento de raças e culturas, […] símbolo da nova sociedade, gerado pela miscigenação” (CAETANO; PALHARES, 2003, p. 16). Eram brasilíndios, mamelucos, que estabeleceriam uma ideologia própria, oposta à neolusitana, que enfrentavam “a odiosidadejesuítica e a má vontade dos reinóis” (RIBEIRO, 2006, p. 99) e que “tinham muito dosúltimos guerreiros da Reconquista, agarrados a antigas noções de honra, que incluíam osaque e a escravização do vencido” (WEFFORT, 2006, p. 124).Funcionavam como mercenários, contratados para a captura de índios, a conquista de terras e a busca de riquezas. A própria Coroa portuguesa contratou-os para a lutacontra os holandeses, no Nordeste, para enfrentar revoltas indígenas, como na Guerrados Bárbaros, e para liquidar o quilombo de Palmares (BUENO, 1997, p. 41, 44 e 47).A vila de São Paulo teve nas bandeiras a base de sua economia por mais de umséculo (BUENO, 1997, p. 42). Ainal, a vila nasceu para a “defesa militar e para a conquista do interior”. Estava na “boca do sertão”, sendo criada como base para a partidadas bandeiras, que apesar da sua crueldade com os indígenas e das disputas com os jesuítas, atuavam também sob o argumento de evangelização dos gentios. Daí que as vilasmilitarizadas tinham colégios jesuítas e a fé nessa cruzada religiosa tornava o capelãoindispensável nas bandeiras (WEFFORT, 2006, p. 95-96).Seria a pobreza de São Paulo que impulsionava os portugueses da vila a se aventurar em busca de índios para todos os ins: para uso próprio e para a venda; para reposição; para abrir roças; para produzir, caçar e preparar alimentos; para carregar “todaa carga, ao longo dos mais longos e ásperos caminhos” (RIBEIRO, 2006, p. 95). Aomorador da vila, então, cabia caçar índios como meio de vida. A miscigenação em SãoPaulo, de portugueses com indígenas, ocorreu sobremaneira, tornando-se vila mameluca, onde se falava “mais a língua-geral [tupi-guarani] do que o português” (SAMPAIOapud WEFFORT, 125).No que é o atual Paraná, após os ataques às missões jesuítas no século XVII, asbandeiras vindas de São Paulo estabeleciam o domínio de sua província sobre os CamposGerais, onde as terras eram concedidas a proprietários absentistas, que enviavam seus es-164cravos para as frentes colonizadoras e a exploração das terras. As [Página 163]

Neste artigo recuperam-se algumas das principais questões de cada um dos Laudos Antropológicos, sobre a trajetória vivida pela população Avá-Guarani da atual TerraIndígena Avá-Guarani do Oco´y/ São Miguel do Iguaçu/Paraná. A situação descrita focaem síntese, o modo pelo qual esses Guarani vieram perdendo suas terras ao longo dosanos, terras de quatro aldeias, nas quais várias famílias, atuais habitantes do Oco´y, eramoriginários. Convidamos o leitor a observar neste artigo o contexto e as condutas que foram oficializadas pelos poderes estatais. São vias de ação que envolvem a manipulaçãode dois principais dados: território e população.

OS DIREITOS INDÍGENAS SOBRE AS TERRAS QUE OCUPAM

Das Cartas Régias portuguesas de 1609 até a Constituição Federal do Brasil de 1988, os direitos indígenas sobre a posse dos territórios que ocupam vinham sendo garantidos pelo reconhecimento de serem eles os povos originários, primários e naturais ocupantes do território.

[...] Assim, as Cartas Régias de 30 de julho de 1609 e a de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Felipe III, afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhe são alocadas nos aldeamentos: [...] os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer [...]. (Carta Régia, 10.09.1611 apud CUNHA, 1987, 58). (grifo do autor)

Ainda é mais explícito é o Alvará de 1º de abril de 1680, que declara que as sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa não podiam afetar os direitos originais dos índios sobre suas terras. “Primários e naturais senhores” de suas terras eram enquanto tais isentos de qualquer foro ou tributo sobre elas. [...] E para que os ditos gentios, que assim descerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no sertão, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturaes senhores delas [...] (Alvará de 01.04.1680, apud CUNHA, 1987, 59) (grifos nossos/ autor). [Página 228]

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