Indígenas questionam tradicional apelido "Bugre" do Guarani. Marcos Guedes, Folha de São Paulo
26 de setembro de 2020, sábado. Há 4 anos
Graciela é Guarani, com muito orgulho, mas não é bugre. Ela é um dos muitos indígenas brasileiros com aversão à palavra que os torcedores do Guarani gritam, também com orgulho, enquanto cantam seu hino: “Avante, avante, meu Bugre”.
Graciela Guarani, 34, conhece a origem do vocábulo. Mesmo que não conhecesse, teria percebido que não se trata exatamente de um elogio ao crescer em Mato Grosso do Sul, habituando-se a ouvir construções como “bugres sujos”, “cabelo de bugrinha suja” e similares.
“A palavra bugre é racista e sempre vai ser, por ser um termo que grande parte da sociedade perpetua para condicionar o ser originário como inferior”, diz a produtora cultural. “É vil, racista, muito cruel. É usado para nos desumanizar, a partir do momento em que nos consideram sem alma, selvagens e pagãos."
O povo indígena guarani se espalha por cinco países da América do Sul —Brasil, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. No total, são mais de 280 mil pessoas, cerca de 85 mil delas no Brasil, segundo o Mapa Guarani Continental, de 2016. A população se concentra principalmente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país.
Para essas pessoas, lutar contra o uso do termo "bugre" e contra sua normalização sempre foi difícil, mas uma esperança surgiu nos movimentos antirracistas desencadeados neste ano, principalmente a partir da morte do negro George Floyd. Nos Estados Unidos, onde ele foi asfixiado pelo joelho de um policial branco, veio à superfície uma série de questionamentos.
Um deles era referente ao nome do tradicional time de futebol americano da capital, Washington Redskins, ofensivo aos povos indígenas da América do Norte. “Red skin”, ou “pele vermelha”, já foi o termo usado para designar o escalpo, o couro cabeludo, arrancado do crânio dos indígenas mortos no período em que seu extermínio era política governamental.
Havia recompensa para quem entregasse “red skin”, como comprovam documentos dos séculos 18 e 19.
Pressionado também por patrocinadores, o Washington Redskins, após longa e determinada recusa em lidar com o tema, finalmente topou mudar de nome. Na temporada recém-iniciada, a equipe vem atuando provisoriamente como Washington Football Team, enquanto discute a identidade que assumirá.
No Brasil, não há contestação ao Guarani Futebol Clube, fundado em 1911 como Guarany Foot-Ball Club. O nome da equipe campineira foi escolhido por causa de Carlos Gomes, célebre compositor nascido em Campinas –autor da ópera “O Guarani”, baseada no livro homônimo de José de Alencar.
O que os indígenas questionam é o apelido Bugre.
“Bugre seria o mesmo que chamar alguém de selvagem. É uma palavra usada no sentido pejorativo, para ofender um indígena. Qualquer um que chama um indígena de bugre está o ofendendo da forma mais desumana”, diz Kellen Natalice Vilharva, 25, outra que se irrita com o apelido do campeão brasileiro de 1978.
“Infelizmente, a forma de que o Brasil foi invadido, com as terras indígenas roubadas, tem consequências até hoje. Bugres, preguiçosos, invasores e várias outras palavras se usam comumente, e as pessoas nem sabem o que elas significam, não têm ideia do que há por trás”, acrescenta a bióloga, jovem liderança da etnia guarani kaiowá.
Os torcedores do Guarani, em sua vasta maioria, também não têm ideia. A construção do apelido Bugre foi feita por associação ao nome do time, usado quase como um sinônimo. Não foi como Porco ou Urubu, xingamentos transformados em identidade pelos torcedores de Palmeiras e Flamengo, respectivamente, como mecanismos de defesa.
Não há dúvida, porém, de que a carga semântica da palavra seja historicamente negativa.
“De fato, ‘bugre’ é um termo pejorativo (‘rude’, ‘primário’, ‘incivilizado’, ‘selvagem’), associado aos povos nativos pelo colonizador português. O primeiro registro do termo no português do Brasil é de 1771. Tem origem na palavra francesa ‘bougre’, por sua vez derivada do latim medieval bulgarus (no sentido de ‘búlgaro’, ‘herético’, ‘sodomita’)”, explica Thaís Nicoleti, consultora de língua portuguesa da Folha.
Luís Augusto De Mola Guisard, 59, também fez esse trajeto histórico ao escrever “O bugre: um João-Ninguém”. Na dissertação de mestrado, o sociólogo foi até os bogomilos –tidos como heréticos por negar os rituais da Igreja Católica no século 9– e traçou o caminho da palavra “bugre” até que ela fosse aplicada aos povos nativos brasileiros.
“Comecei a estudar a etimologia da palavra e percebi que vem de um conceito do infiel moral da Idade Média”, diz o pesquisador. “O bugre é aquele que é infiel moral e é também, quando o colonizador chega aqui, para ele, um infiel do mundo do trabalho.”
Guisard fez um longo trabalho de campo na cidade de Cáceres, em Mato Grosso, onde há uma considerável população indígena. Lá, mesmo com toda a transformação que a palavra sofrera desde os bogomilos, percebeu que ela continuava sendo usada com o cunho agressivo de sempre.
“Aqui, o bugre é gente pequena, que é ninguém, um joão-ninguém”, disse um comerciante entrevistado no trabalho. “Bugre é o nome do cara de beiços grossos, feições grosseiras, às vezes pouca inteligência”, afirmou outro entrevistado, identificado como parte de uma família tradicional local.
Há vários outros exemplos, e tudo o que escutou Guisard foi de encontro ao que havia escrito Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”. No livro de 1933, o antropólogo já tinha observado o evidente caráter pejorativo com que a palavra fora empregada no Brasil.
“A denominação de bugres dadas pelos portugueses aos indígenas do Brasil em geral e a uma tribo de São Paulo em particular talvez exprimisse o horror teológico de cristãos mal saídos da Idade Média ao pecado nefando”, escreveu Freyre. “Para o cristão medieval foi o termo bugre que ficou impregnado da mesma ideia pegajosa de pecado imundo.”
Isso não ficou para trás, como mostrou a pesquisa de Guisard. Se o torcedor do Guarani grita “avante, meu Bugre” sem ciência de toda a carga semântica que carrega o hino, há partes do país em que o tom continua deliberadamente jocoso.
Existe, por isso, um incômodo entre os povos indígenas com o apelido do time campineiro. Ainda que a alcunha não tenha sido criada para atacar, ela machuca.
“O clube carrega o peso de ter no seu nome uma representatividade tão magnífica, que também tenho o orgulho de carregar. Acredito muito que o clube tenha a possibilidade de repensar algumas construções pejorativas e construir de fato um orgulho que não seja à custa de lágrimas de muitos. Ainda acredito na inteligência humana brasileira de conhecer sua história e revolucionar muitos dizeres e construções pejorativas”, aposta Graciela Guarani.
“Querendo ou não, por ter esse nome, o clube carrega uma responsabilidade, leva o nome de um dos maiores povos indígenas do Brasil”, diz Kellen Vilharva. “É mais do que necessário o clube se posicionar. De 1976 a 2020 eles têm usado esse termo pejorativo no hino. Estamos em outra época. Com certeza, deveria mudar.”
O Guarani foi procurado pela reportagem para se posicionar sobre o tema e preferiu não enviar uma resposta.
Longe do estádio Brinco de Ouro, “a nossa taba”, como diz o hino composto por Oswaldo Guilherme há 44 anos, indígenas continuam lutando contra o uso de um vocábulo que os ofende.
Recentemente, Graciela se viu obrigada a intervir em um grupo de WhatsApp quando a palavra foi utilizada. “Ela me corta e me machuca como uma faca”, disse a guarani, tentando ser didática: “É como chamar nossos irmãos negros de macacos”.
Já Kellen se revoltou ao ouvir “boa noite, bugrada” de um colega quando tirava sua carteira de habilitação. Ela hesitou, temendo gerar um mal-estar na turma, porém resolveu explicar o significado da palavra e as possíveis consequências legais em casos de racismo. Não se arrependeu.
“Não ficar calado e ensinar as gerações mais novas é a maneira de quebrar essas ideias.”