Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Caderno nº 7, série “Documentos Históricos: Carta de São Vicente, 1560” - 01/01/1997 de ( registros)
Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Caderno nº 7, série “Documentos Históricos: Carta de São Vicente, 1560”
1997. Há 27 anos
Em 1560, quando a pedido de seus superiores, o Padre José deAnchieta com excepcional capacidade de observação, escreve a cartade São Vicente, a Mata Atlântica compunha ainda um maciço florestal de mais de 1.100.000 km², em perfeito equilíbrio. Não era umagrande área desocupada, ao contrário, milhares de indígenas comela conviviam, daí tirando todos os bens necessários à sua alimentação, saúde, abrigo e cultura material e espiritual.Anchieta, cuja erudição é notável no trato dos mais variados temas,nos oferece um dos mais completos e belos documentos sobre aMata Atlântica de então, descrevendo "as coisas naturais da Capitania de São Vicente" detalhando a diversidade e exotismo de nossafauna e flora e seu uso pelos indígenas e pelos primeiros brasileiros,resultantes da mescla daqueles com os europeus aqui chegados.Em alguns trechos, os mitos se confundem com a realidade, comoquando descreve os beija-flores: "Há ainda outros passarinhos, chamados guainumbî, os mais pequenos de todos; alimentam-se só deorvalho; dêsses há vários generos, dos quais um, afirmam todos,que se gera da borboleta." Isto todavia não lhe rouba o valor documental, antes o enriquece, ao fornecer elementos culturais fundamentais ao conhecimento de nossa história. A carta de São Vicentetraz também informações preciosas sobre os costumes e a línguade nossos índios, sobre plantas medicinais e importantes elementos de nossa culinária.Também em outros documentos posteriores, como na "Informaçãoda Província do Brasil para nosso Padre - 1585", Anchieta volta a descrever nossa floresta e sua incrível biodiversidade, o que sempre fazcom grande conhecimento e admiração e também com sensibilidadepoética como atesta o trecho a seguir: "Todo o Brasil é um jardim emfrescura e bosque e não se vê em todo o ano árvores nem erva sêca.Os arvoredos se vão ás nuvens de admiravel altura e grossura evariedade de especies. Muitos dão bons frutos e o que lhes dá graçaé que ha neles muitos passarinhos de grande formosura e variedade e em seu canto não dão vantagem aos rouxinois, pintasilgos, colorinos,e canarios de Portugal e fazem uma harmonia quando um homemvai por êste caminho, que é para louvar ao Senhor, e os bosquessão tão frescos que os lindos e artificiais de Portugal ficam muitoabaixo. Ha muitas árvores de cedro, aquila, sandalos e outros pausde bom olor e várias côres e tantas diferenças de folhas e flores quepara a vista é grande recreação e pela muita varidade não se cansade ver."A Carta de São Vicente é um dos diversos documentos do "apóstolodo Brasil" que chegaram aos nossos dias graças à pesquisa de vários historiadores e publicações dos séculos dezessete, dezoito,dezenove e vinte. A versão aqui apresentada reproduz integralmente,incluindo a ortografia, aquela publicada em 1933 pela Editora CivilizaçãoBrasileira sob o título de "Cartas - Informações, Fragmentos Históricose Sermões do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594)", gentilmente cedida a esse Conselho pelo Dr. Paulo Nogueira - Neto.As notas que a seguem são da autoria do Dr. Afrânio do Amaral,então diretor do Instituto Butantan, do Dr. Olivério Mario de OliveiraPinto, assistente do Museu Paulista e do Sr. Pio Lourenço Correia. Anota de número 1 indica outros colaboradores. Em respeito ao documento manteve-se sem alterações informações taxonômicas, mesmo que tenham sido posteriormente alteradas pela ciência.
Escrita em São Vicente, "que é a última povoação dos portuguesesna Índia Brasílica voltada para o sul, no ano do Senhor 1560, no fimdo mês de maio", essa carta é a primeira descrição detalhada daMata Atlântica de que se tem conhecimento. Por essa razão o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera, propôs a declaração do 27de maio como dia nacional da Mata Atlântica, homenageando simultaneamente a floresta-mãe da Nação Brasileira e o Padre José deAnchieta, no momento em que os 400 anos de seu falecimento sãocelebrados. [Páginas 7 e 8]
subterraneos; quando estão ocupadas na procreação atacam a gente;andam pela grama em saltos de tal modo apressados, que os Indiosdizem que elas voam; uma só vez que mordam, não ha mais remédio:paralizam-se a vista, o ouvido, o andar e todas as ações do corpo,ficando sòmente a dôr e o sentimento do veneno espalhados pelocorpo todo, até que no fim de vinte e quatro horas se expira (18).Entretanto, quasi todos os Indios torram ao fogo e comem dessascobras e de outras, depois de lhes tirarem a cabeça; assim comotambem não poupam aos sapos, lagartos, ratos e outros animaisdêsse genero (18-A).Ha tambem outras admiravelmente pintadas de várias côres, de preto,de branco. de encarnado semelhante ao coral, as quais os Indiosapelidam ibîbobóca, isto é, “terra cavada”, porque elas no rojaremfendem a terra à maneira de toupeiras; estas são as mais venenosasde todas, porém mais raras (19).Ha tambem outras, que são denominadas pelos lndios bóiguatiára,isto é, “cobras pintadas”, por causa das suas diversas variedadesde pintura; estas são igualmente mortíferas (20).Ha tambem outras quasi semelhantes, chamadas jararáca e tambembóipeba, isto é, “cobras chatas”, porque quando feridas, contraemse e ficam mais largas; a mordedura dessas é também mortal (21).Ha ainda outras, que se chamam bóiroiçanga, isto é, “cobras frias”,porque a sua mordedura comunica ao corpo um grande frio; estas,conquanto maiores do que as outras, são menos venenosas (porisso que não causam a morte); têm toda a bôca armada de dentesagudos, o que não se dá com as outras, pois as outras têm apenasquatro dentes curvos, tão subtis e ocultos que, se não se observacom cuidado, poder-se-há supor que os não têm; neles é que está apeçonha (22).
Todas estas, porém, exceto as que são venenosas, das quais ha,não só grande cópia, mas também diversidade, são tão frequentes, não se póde viajar sem grande perigo: vimos cães, porcos e outrosanimais sobreviverem quando muito seis ou sete horas á mordeduradelas. Não raro temos caído em semelhantes perigo, tendo-asencontrado muitas vezes correndo pelos caminhos de um lado paraoutro em alguns povoados, a que nos tem chamado o nosso dever.Uma vez, voltando eu para Piratininga de certa povoação dePortugueses, para onde a obediencia me fizera ir com outro irmão aensinar a doutrina, encontrei uma cobra enroscada no caminho; fazendoprimeiramente o sinal da cruz, bati-lhe com o bastão e matei-a. Poucodepois começaram três ou quatro pequenos filhos a andar pelo chão;e admirando-nos de onde aquelas que antes não apareciam tinhamsaido tão de repente, eis que começaram a sair outros do ventrematerno: e sacudindo eu o cadaver apareceram outros filhos ainda,em numero de onze, todos animados e já perfeitos, exceto dois. Ouvitambem contar, por pessoas dignas de crédito, de uma outra emcujo ventre foram encontradas mais de quarenta (23). Todavia, nomeio de uma multidão tão grande e frequente delas, o Senhor nosconserva incolumes, e confiamos mais nele do que em contra-venenoou poder algum humano; só descansamos em Jesus, Senhor nosso,que é o unico que póde fazer com que nenhum mal soframos,andando assim por cima de serpentes.
Ha tambem outras como pequenos escorpiões, que habitam emcertos montes de terra feitos pelas formigas: a estas chamam osÍndios bóiquíba, isto é, “cobras de pés pequenos”, piolhos de cobras:são vermelhas, pouco maiores que aranhas: têm duas cabeças,como os caranguejos, e a cauda recurvada, na qual têm uma unhatambem curva, com que ferem. Não matam, mas incomodamextraordinariamente, de maneira que a dôr que produzem não passaantes de vinte e quatro horas (24).O que direi das aranhas, cuja multidão não tem conta? Umas são umpouco ruivas, outras côr de terra, outras pintadas, todas cabeludas; julgariasque são caranguejos, tal é o tamanho do seu corpo: são horriveis de verse, de maneira que só a sua vista parece trazer deante de si veneno (25). [Páginas 20 e 21]
Até nas pedras se encontra o que admirar e com que exaltar aonipotencia do supremo e otimo Deus, maximè em uma que serveparaafiar espadas; mas tem isto de maravilhoso, que qualquer parte delaque tocares em as mãos se torna flexivel como o couro e a moveráscomo cousa apertada por um nó, de maneira que não parece umapedra só, mas sim muitas reunidas por diversas juntas (75).Encontram-se em certo rio habitado pelos inimigos, a umas 50 milhasde Piratininga, muitas conchas, nas quais se criam certas pedrinhastransparentes, que querem sejam perolas: têm o tamanho do grãode bico e algumas maiores.Isto é quanto me ocorre dizer das árvores, plantas e pedras.Acrescentarei agora poucas palavras acêrca dos espectros noturnosou antes demônios com que costumam os Índios aterrar-se.
É cousa sabida e pela bôca de todos corre que ha certos demônios, a que os Brasis chamam corupira, que acometem aos Índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os Índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras cousas semelhantes como uma especie de oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal.
Ha tambem nos rios outros fantasmas, a que chamam Igpupiára (77),isto é, que moram n’agua, que matam do mesmo aos Indios. Nãolonge de nós ha um rio habitado por Cristãos, o que os Indiosatravessavam outrora em pequenas canôas, que fazem de um sótronco ou de cortiça, onde eram muitas vezes afogados por eles,antes que os Cristãos para lá fossem.
Ha também outros, maximè nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados baetatá, que quer dizer “cousa de fogo”, o que é o mesmo como se dissesse “o que é todo fogo”. Não se vê outra cousa senão facho cintilante correndo daqui para ali; acomete rapidamente os Índios e mata-os, como os curupiras: o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.
Ha tambem outros espectros do mesmo modo pavorosos, que nãosó assaltam os Indios, como lhes causam dano; o que não admira,quando por êstes e outros meios semelhantes, que longo fôraenumerar, quer o demônio tornar-se formidável a êstes Brasis, quenão conhecem a Deus, e exercer contra eles tão cruel tirania.
Dêstes Brasis direi, em último lugar, que quase nenhum se encontraentre eles afetado de deformidade alguma natural; acha-se raramenteum cego, um surdo, um mudo ou um coxo, nenhum nascido fóra detempo (79). Todavia, ha pouco tempo, em uma aldeia de Indios, auma ou duas milhas de Piratininga, nasceu uma criancinha, ou antesum monstro, cujo nariz se estendia até ao queixo, tinha a bôca abaixodêste, os peitos e as costas semelhantes ao lagarto aquatico, cobertasde horrendas escamas as partes genitais perto dos rins; a qual seupai, assim que nasceu, fez enterrar viva. A esta morte condenamtambem os que suspeitam terem sido concebidos em adulterio.Não é talvez menos para admirar o ter nascido em Piratininga umporco hermafrodita que, segundo creio, ainda está vivo.Narrei essas cousas brevemente, como pude, posto que não duvidesque haja muitas outras dignas de menção, que são desconhecidasa nós, ainda aqui pouco praticos. Rogamos entretanto aos que achemprazer em ler e ouvir estas cousas, queiram tomar o trabalho de orarpor nós e pela conversão dêste país.Escrito em São Vicente, que é a última povoação dos Portugueses na IndiaBrasilica voltada para o Sul, no ano do Senhor 1560, no fim do mês de Maio.O minimo da Companhia de Jesus. [Páginas 34 e 35]
Biografia do Padre José de AnchietaJosé de Anchieta nasceu na cidade de São Cristóvão da Laguna,capital da ilha de Tenerife, nas Ilhas Canárias, no dia 19 de março de1534, dia de São José.Em 1550, foi à Coimbra para cursar a Universidade. A escolha dePortugal e não da Espanha é ponto de sua biografia ainda nãoesclarecido.No noviciado em Coimbra a rígida disciplina enfraqueceu ainda maiso organismo naturalmente débil de Anchieta. Além disso, sofreu umacidente sério, uma escada caiu-lhe com violência nas costas, ficandocorcovado para o resto da vida. Mais de dez anos depois, relatandoos sucessos de Iperoig, aludiria ele à sua moléstia: “como minhascostelas ainda cansem e doem como soiam e têm mui poucasforças...”
Enquanto, sem esperança de cura, era tratado no Colégio de Coimbra, pedidos insistentes de novos missionários chegavam do Brasil. “Por conselhos médicos”, Anchieta foi enviado ao Brasil. Quando chegou ao Brasil, Anchieta tinha dezenove anos. Veio na frota de D. Duarte da Costa, nomeado segundo governador geral, na terceira leva de jesuítas enviados ao Brasil. Partiram de Lisboa no dia 8 de maio de 1553 e chegaram a Salvador, em 13 de julho do mesmo ano.
Nesta época o Padre Nóbrega achava-se em São Vicente, para ondehavia seguido com Tomé de Souza. Na capitania vicentina, o jesuítahavia planejado fundar uma povoação nos campos de Piratininga,tendo reunido ali três aldeias de índios.
Após breve temporada na Bahia, trabalhando com a catequese de índios, Anchieta chegou com outros jesuítas à São Vicente em 24 de dezembro de 1553, com a missão de fundar o Colégio de Piratininga. No Brasil onde “as medicinas são trabalhos, longas caminhadas, ofícios grosseiros, assistência penosa aos índios” recuperara a saúde.
A missão fundadora galgou a serra de Paranapiacaba, “por um dosmais trabalhosos caminhos que há em muita parte do mundo”, edeixando a mata acampou no local escolhido por Nóbrega, entre osriachos Tamanduateí e Anhangabaú. Aí levantaram os índios deTibiriçá e Caubí a “paupérrima e estreitíssima casinha” em que sedisse a primeira missa a 25 de janeiro de 1554, dia da conversão doapóstolo são Paulo, “por isso a ele dedicámos a nossa casa”, disseAnchieta.Sua superioridade de letrado, falava quatro línguas: português,espanhol, latim e “brasílica”, sua disciplina de ferro, aprendida naCompanhia de Jesus, seu devotamento deram-lhe logo, apesar dasimplicidade de irmão, um lugar de evidência na comunidade.Nóbrega não podia deixar de se utilizar, em todas as oportunidadesde tanta inteligência e tanto zelo, fazendo dele seu auxiliar prediletonos trabalhos da catequese.Apesar de sofrer alguns ataques indígenas, especialmente dos tupis,a aldeia de Piratininga florescia. Anchieta dedicava-se a escrever.Entre outros escritos foi o autor de inúmeras e divertidas peças deteatro que encenava para os índios e o primeiro a formular a gramáticada língua mais falada na costa do Brasil, o tupi - guarani, que foipublicada em Coimbra em 1595. Foi também a primeira gramáticadesde os gregos antigos, escrita por um ocidental, que não sebaseava nas regras do latim.As necessidades da catequese e do ensino dividiam a atividade deAnchieta entre as vilas do mar e de São Paulo. Perambulou pelolitoral paulista catequisando, ensinando e batizando índios. Diz a lendaque ele costumava abrigar - se para dormir em uma pedra conhecidacomo “cama de Anchieta” em Itanhaém. Na antiga Iperoig, hojeUbatuba, foi refém dos tamoios e nessa situação escreveu o seufamoso poema à Virgem Maria.Em fevereiro de 1564, chegava a frota enviada por Portugal, sob ocomando de Estácio de Sá, com a intenção de expulsar os francesesdo Rio de Janeiro que ali haviam se instalado e feito aliança com ostamoios. [Páginas 49 e 50]