contexto que se situa o mito da Ilha Brasil, estudado em suas distintas vertentes por Jaime Cortesão e por Sérgio Buarque de Holanda, e que faz parte relevante da geografia imaginária dos sertões. Para Jaime Cortesão, esse conceito, pelo qual o Brasil formaria uma ilha, separada da América Hispânica pelos rios da Prata e Amazonas, unidos por um grande lago, de onde ambos nasciam, seria uma “razão geográfica” de Estado, oposto ao Tratado de Tordesilhas, e que presidiria a formação territorial do Brasil.
Ainda para Cortesão, o mito da Ilha Brasil seria a tradução da “consciência perfeita da unidade geográfica, econômica e humana” que caracterizaria o Brasil. Segundo ele, é “na cartografia antiga que deparamos os melhores documentos sobre a evolução e a importância daquele mito na história do Brasil”.
Essa concepção de uma Ilha Brasil rodeada pelo oceano e por dois grandes rios, unidos por um lago, apareceu em cartas como a de Bartolomeu Velho, de 1561, na qual o rio da Prata e o rio Pará, provavelmente o Tocantins de hoje, “ligam-se pela Lagoa Eupana, ao sul da qual se vê o Mar Grande ou Paraguai, que identificamos com o pantanal dos Xarais”. Dessa mesma lagoa partia o rio de São Francisco, “o qual se reúne por um lago menor ao Parnaíba e mais abaixo ao Paraná, que por sua vez se reúne à Lagoa Eupana”.
Nos primeiros mapas de Fernão Vaz Dourado, de 1568 e 1580, em vez do Paráou Tocantins, era o Maranhão que se ligava por meio do lago central ao Paraná eao Uruguai, donde nascia igualmente o São Francisco. No mapa de 1580 do mesmocartógrafo, a Ilha Brasil era representada pela mesma forma, acrescentando-seapenas que o São Francisco e o Maranhão se ligavam também por um lago.A Ilha Brasil era assim um mito expansionista, em que se antecipava a solução aoproblema e ao conflito de soberania, entre Portugal e Castela. Trata-se dessa formade um mito essencialmente geográfico e político, ao contrário dos mitos castelhanos,heroicos e imaginosos: “o elemento maravilhoso apresenta-se como secundário eimportado”. Segundo Cortesão.[…] nas suas relações com a formação territorial do Estado brasileiro, a ilha humana,que assentava, por sua vez, numa ilha econômica, a da floresta tropical de planíciee a de certos produtos agrícolas, como a mandioca e o milho, sobrelevou muito emimportância à Ilha Brasil, esquemática e mítica. Desde o século de Quinhentos a IlhaBrasil foi, mais que tudo, uma ilha cultural e, em particular, a ilha da língua geral, quese tornou um vigoroso laço unificante do Estado colonial6.Sérgio Buarque de Holanda, em artigo publicado em 1952 e depois reunido nacoletânea Tentativas de mitologia, intitulado “Um mito geopolítico: a Ilha Brasil”7,antes de criticar a teoria de Cortesão, a resume e sintetiza: tratar-se-ia, segundo ele, da […] ideia de que os portugueses, aspirando, desde o começo da colonização, e antes dela,a ampliar seus domínios neste continente, se apoiaram inicialmente numa espécie de“mito”, forjado por parte dos navegadores e cartógrafos, e evoluíram, aos poucos, como socorro às vezes deliberado dos bandeirantes e da diplomacia lusa, até à visão clarae fecunda de Alexandre de Gusmão8.Como óbice a essa teoria, Holanda apresenta a tendência lusitana a umacolonização litorânea, mais uma necessidade imperiosa que uma vontade precisa,inclusive para evitar o despovoamento da marinha e a sua consequente conquistapor eventuais invasores. Nesse sentido, mesmo a conquista de parte do sertão, nocaso o amazônico, “podia apresentar-se como simples prolongamento da colonizaçãolitorânea, já que as margens do rio mar estendiam para o interior as do mar Oceano”.
Sérgio Buarque, por outro lado, integra a Ilha Brasil de Jaime Cortesão em uma“espécie de intencionalismo na história da conquista do sertão”, comparável àqueleexistente no próprio descobrimento do Brasil. Ter-se-iam criado, assim, fronteirasnaturais para o território luso nas Américas, que se estenderia não só do Amazonasao Prata, “como se ampliava sertão adentro, rumo aos limites pressentidos, que anatureza marcou com dois braços de água saindo de um lago chamado de Eupanaou Dourado”.
Esse mito geográfico e político, entretanto, não seria capaz, por si só, de inspirar,direta ou indiretamente, toda a expansão territorial da América Portuguesa. SérgioBuarque de Holanda, em síntese, não estava convencido que as entradas e bandeirasfossem tão eficazes quanto as contingências econômicas nesse processo.
Anos mais tarde, voltaria a escrever sobre a Ilha Brasil, em seu magistral Visãodo paraíso, mas desta feita sob um enfoque nitidamente mitológico. Referia-se ele naocasião ao arquipélago ao qual São Brandão haveria chegado, verdadeiro paraísoonde não havia nem calor, nem frio, nem tristeza, nem fome, do qual fazia partea Ilha Brasil ou Braçile (conforme mapa de André Benincasa, de 1467), ou Ysolade Braçir, na carta de Pizzigno, de 1367. Essa Ilha Brasil, vinculada à lenda de São Brandão, pertencia à tradição céltica e foi objeto de busca até o século XVIII.
Em outro livro, O extremo oeste, Sérgio Buarque de Holanda volta a se referir àIlha Brasil, desta vez para concordar parcialmente com Jaime Cortesão, já que aquelelago no sertão, do qual saíam dois braços, o Amazonas e o Prata, e que se identificavacom o lago Xarais, corresponderia ao Pantanal mato-grossense, de onde sai o rioParaguai, um dos formadores do Prata. Mas o mais importante, segundo ele, é que aIlha Brasil constituiria de fato um mito expansionista, que se concretizaria na íntimacooperação entre metrópole e colonos, os quais, com “astúcia maquiavélica, tratariam [Páginas 3 e 4 do pdf]