Revista do Arquivo Municipal. 30 anos do Departamento do Patrimônio Histórico da Cidade de São Paulo
2006. Há 18 anos
Paulo. As Atas constituem uma documentação primária de valiosíssima e imprescindívelleitura para todo aquele que se sente atraído pela história paulistana num período queabrange quase trezentos e cinqüenta anos, 1562-1909, e seus inestimáveis manuscritosse acham sob a guarda do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís. Nome muitoapropriadamente atribuído ao Arquivo em 1969, já que foi justamente esse prefeito da cidade de São Paulo, historiador ele também, quem decidiu com muito acerto e descortinomandar transcrever as antigas Atas e publicá-las a partir de 1914.Pode-se afirmar que o que dissemos acima em relação ao extraordinário valor dasAtas da Câmara como fonte primária fundamental para o estudo da história da capitalpaulista, sobretudo nos seus primeiros séculos, já é de há muito de pleno conhecimentopúblico. Para a ampla vulgarização dessa coleção documental muito contribuiu o conhecido historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), que no decorrer de sua vidaproduziu uma larga obra historiográfica, quase inteiramente dedicada à cidade de SãoPaulo, a partir da reverente leitura da documentação camarária paulopolitana. Exemplodepois seguido por vários outros estudiosos que recorreram, e continuam a recorrer, àsvelhas Atas para delas extrair os mais ínfimos indícios que os orientem na árdua tarefade tentar reconstituir a vida dos paulistanos de mais de quatrocentos anos atrás. E, comopoderemos constatar no estudo aqui presente, é ainda das Atas da Câmara (e não só delas, mas também do Registro Geral e das Cartas de Datas, outras coleções documentaisproduzidas na antiga Câmara paulistana, e das Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil,publicadas por ocasião dos festejos do IV Centenário de São Paulo) que provêm algunsdados importantes para os quais ainda não atentaram os historiadores atuais, muitosdeles arquitetos, recentemente interessados na reconstituição da conformação urbana dacidade de São Paulo nos seus primeiros tempos.IntroduçãoO estudo sobre os caminhos quinhentistas de São Paulo e o traçado das mais antigasruas da cidade passou a chamar a atenção de historiadores especializados na história paulistana a partir do final do século XIX. Durante certo tempo relegado ao esquecimento,o assunto acabou recentemente retomado por alguns estudiosos, estimulados pela aproximação do 450º aniversário da cidade. De nossa parte, como dissemos anteriormente,temos desenvolvido ao longo de vários anos uma pesquisa independente que nos possibilitou alcançar um ponto de vista interpretativo sintético, a partir da revisão bibliográficaatualizada e da leitura minuciosa dos primeiros volumes das Atas da Câmara da Vila deSão Paulo.E nossa concordância ou não com as conclusões a que chegaram aqueles estudiosos levou-nos à redação do presente artigo.
A fundação da casa jesuítica de São Paulo
As razões que conduziram à criação de uma casa jesuítica no planalto paulistanoestão claramente expressas nas cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Estabelecidosnum colégio havia pouco fundado em São Vicente, os padres da Companhia de Jesus, liderados por Manuel da Nóbrega, foram levados pelas circunstâncias a criar um núcleo de catequese no planalto localizado serra-acima. Aí se manteriam em permanente contatocom os índios locais que então pediam para ser catequizados e estariam mais próximosdo caminho que em breve pretendiam trilhar até o Paraguai (LEITE, 1956-1958, v.1, p.496). Nessa região distante viviam os carijós, gentio que, por sua dócil natureza, diziamser de fácil conversão (LEITE, v.1, p. 493-496).
Em fins de agosto de 1553, Nóbrega visitou a recém-criada aldeia em que se concentravam os índios em processo de conversão, separados dos demais (LEITE, v.1, p. 522-523). A seu pedido, Tibiriçá e seus comandados ergueram uma pequena e modesta choupana, onde em janeiro seguinte vieram morar alguns dos jesuítas (LEITE, v.2, p. 110-111 e nota n.36).
A escolha de um sítio apropriado no campo para a localização do núcleo de catequese – “em muito boom sitio posto, o milhor da terra”, diria o Padre Manuel da Nóbrega em carta de 1556 (LEITE, v.2, p. 84) – teve de levar vários fatores em consideração. Entre eles dois muito importantes: a topografia e a hidrografia.
O assentamento em acrópole, muitos metros acima do nível dos cursos d’água que banhavam o sopé da colina sobre a qual se ergueria o aldeamento jesuítico (chamada Inhapuambuçu – monte que se vê de longe, segundo alguns), permitia aos moradores gozar não apenas de uma pureza de ares característica dos lugares altos, como também de algumas vantagens do ponto de vista defensivo, tais como, um vasto descortinamento dos arredores e uma ampla proteção proporcionada pelas íngremes escarpas voltadas para o Rio Tamanduateí e para o Ribeirão Anhangabaú (PETRONE, 1995, p. 137-140).
Os historiadores alegam ainda razões de subsistência para justificar a escolha do sítio da nova aldeia. Não devemos nos esquecer que, com a chegada dos europeus transferidos de Santo André, em 1560, os campos planaltinos se mostrariam muito favoráveis à criação de animais domésticos, sobretudo de gado vacum, nas pastagens alagadiças situadas a nordeste, próximas das margens do Tietê e do Tamanduateí (Guaré), e que a pesca foi também uma atividade econômica de grande relevância para a nascente povoação. O próprio Padre Manuel de Nóbrega fazia questão de ressaltar, em carta de 1556, que a aldeia de Piratininga estava provida “de toda abastança que na terra pode aver” (LEITE, v.2, p. 284).
O que não se via até há pouco suficientemente ressaltado, contudo, como um dos fatores determinantes da escolha do local onde depois se fixaria a nova casa jesuítica – com a grande exceção de Pasquale Petrone (PETRONE, p.140-141) talvez –, era a preexistência nas imediações de um intrincado sistema de trilhas indígenas que cortavam em todos os sentidos a lombada interfluvial. Essas veredas poriam os irmãos da Companhia em comunicação direta com o litoral vicentino, com as aldeias planaltinas dos índios aliados e com o distante Paraguai, cujo fascínio durante muito tempo manteve bem aceso o fervor catequético dos inacinos, sobretudo do Padre Manuel da Nóbrega.
Cumpre, porém, chamar a atenção para um ponto controvertido acerca do modo como se deu a escolha do sítio onde foi erguida a casa jesuítica no planalto piratiningano. Indícios nos levam a pensar que, contrariamente à história oficial divulgada pelos jesuítas, foram os próprios índios desejosos de serem convertidos pelos padres da Companhia que se teriam reunido, sozinhos, numa aldeia, sem contar para a escolha de sua localização com a presença ou, quem sabe, sequer com a orientação de Nóbrega e seus companheiros (AMARAL, 1971,v.1, p. 128-129). [Páginas 12 e 13]
No primeiro semestre de 1553, três núcleos indígenas haviam expressado ao padre o desejo de se reunir numa só povoação para serem convenientemente doutrinados e convertidos. Nóbrega acedeu a esse pedido, mas só visitou a nova aldeia em agosto desse ano, fazendo então 50 catecúmenos entre os índios nela estabelecidos. Ao contrário do que acontecera meses antes, em Porto Seguro, quando Nóbrega fora pessoalmente escolher o local da nova casa jesuítica, acompanhado do Governador-Geral Tomé de Sousa e de alguns principais da região (LEITE, v.1. p. 427), pode muito bem ter o padre deixado, no caso aqui considerado, a cargo dos próprios aborígines a escolha do sítio onde depois surgiria a cidade de São Paulo. O fato é que, naquela altura, se cogitava apenas da criação de uma simples aldeia de índios que pretendiam ser convertidos e não de uma casa de catequese sob a responsabilidade dos jesuítas.
Prova disso seria a carta datada de 31 de agosto de 1553, escrita na nova aldeia, em que Nóbrega nada diz acerca da criação de uma casa de catequese no planalto (LEITE, v.1, p. 522-527). É possível que essa idéia só tenha ocorrido ao padre algum tempo depois.
Aliás, cabe assinalar que Nóbrega não levava muito a sério a doutrinação dos índios do planalto. Em carta anterior, datada de 15 de junho de 1553, afirmava com todas as letras que só se ocuparia na conversão desses índios, enquanto estivesse impedido de se internar em definitivo no sertão (LEITE, v.1, p. 496).Na hipótese de ser verdade que foram os índios os únicos responsáveis pela escolha do lugar de sua nova aldeia no planalto – local esse depois plenamente aceito e ratificado pelos jesuítas, podemos supor – fica mais fácil compreender o grande acerto com que desempenharam tal missão. Com efeito, na condição de silvícolas planaltinos, profundamente familiarizados com a região, eram eles os mais capacitados para determinar o ponto mais favorável para a criação de um novo povoado. Por uma questão de sobrevivência, só poderiam decidir-se por um local em acrópole (o que parece ter sido uma tradição entre os nossos índios antigos), próximo de rios piscosos e de trilhas que os poriam em fácil comunicação terrestre com pontos estratégicos ocupados por aldeias amigas.
É flagrante o contraste entre o destino da futura cidade de São Paulo, presumidamente criada por índios, e o da Vila de Santo André da Borda do Campo, criada pelo Padre Leonardo Nunes (LEITE, v.1, p. 208) e elevada a vila em 1553 por ordem de Tomé de Sousa. Mal localizada em termos estratégicos, esta povoação não vingaria. Extinta sete anos depois de fundada, teve, a pedido dos próprios habitantes de Santo André, seu foral de vila transferido para o núcleo piratiningano, onde desde alguns anos uns poucos jesuítas viviam no meio de índios convertidos.
Nas proximidades da casa jesuítica, uma encruzilhada de veredas pré-cabralinas
De todas as trilhas indígenas que percorriam o planalto a mais célebre é, sem dúvida, o Peabiru. De importância continental, desde remotas eras pré-colombianas essa grande artéria sul-americana unia à costa atlântica a populosa mesopotâmia paraguaia, habitada pelos índios carijós ou guaranis. Formada de um tronco e várias ramificações, uma delas atingia a região vicentina, regularmente freqüentada pelos tupiniquins, moradores do planalto paulistano (PETRONE, p. 35-44). Consistindo numa picada de 200 léguas (1200 km) de extensão, este último ramal, segundo a descrição do Padre LozanoS. J., possuía oito palmos de largura (1,76m) e seu leito, forrado por uma gramínea que impedia o crescimento de outra vegetação, apresentava um rebaixamento de 40 centímetros em média em relação ao solo adjacente. Posteriormente chamada pelos jesuítas de Caminho de São Tomé (identificado com Sumé, o herói civilizador do mito tupi), a famosa trilha permitiu que, em sentido contrário, a partir da costa brasileira os conquistadores atingissem o Paraguai e desse ponto fosse possível alcançar as fabulosas riquezas do longínquo Peru (HOLANDA, 2000, p. 142-144).
Tal fato revela que, naquele tempo, além do intenso desejo dos jesuítas de ir converter os carijós, havia uma fortíssima motivação política e econômica a instigar a penetração lusa em direção à região paraguaia. A questão das Molucas, provocada no Oriente pelos espanhóis, fizera recuar a linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas para o Ocidente. No Brasil, essa linha deveria retroceder também para o Ocidente, de maneira a deixar os mesmos 180º de cada parte. Com esse deslocamento, imaginavam os portugueses, Assunción, cidade espanhola erguida em 1537 no meio dos carijós e à beira do caminho do opulento Peru, certamente passaria à pertencer coroa lusitana, crença compartilhada durante certo tempo pelo próprio D.João III (LEITE, v.1, p. 448 e nota n.6).
Naqueles primeiros anos de 1550, eram corriqueiras as notícias de aventureiros estrangeiros chegados a São Vicente por via terrestre proveniente do Paraguai, o famoso alemão Ulrico Schmidl entre eles (1553), e em sentido inverso, bastante habitual a ida de portugueses à Bacia do Prata, onde corriam boatos sobre a existência de ricas minas desse metal. O deslocamento em ambos os sentidos foi tão intenso que acabou provocando o fechamento da citada via de comunicação por ordem do governador-geral do Brasil em 1553 (LEITE, v.1, p. 448), por ser, naquele momento, vista como prejudicial aos interesses lusos essa transferência amiudada de súditos portugueses para as terras sob o controle de Espanha.
Correndo de poente ao nascente, o ramal paulista dessa importantíssima artéria intercontinental, ao atingir os arredores da casa jesuítica de São Paulo, proveniente das cercanias de Emboaçava (assim se chamava a barra do Rio Tietê com o Pinheiros), daria origem às atuais Ruas Butantã e dos Pinheiros, Avenida Rebouças, Ruas da Consolação, Quirino de Andrade, Dr. Falcão Filho e Direita. O Professor Gustavo Neves da Rocha Filho, em sua tese de livre docência defendida na FAU USP (1992), propôs um trajeto ligeiramente diferente.
Ao atingir a colina histórica, o Peabiru percorreria o traçado das atuais Ladeira do Ouvidor (antiga do Meio) e Rua José Bonifácio. É bem possível que o professor tenha razão neste caso, pois tal percurso, ao que parece, facilitaria o deslocamento dos índios. Sempre transitando a pé, os silvícolas procuravam seguir os espigões dos morros. Contornavam as curvas de nível, preferindo deslocar-se em terrenos planos e evitando sempre que possível o esforço de subir ou descer encostas muito íngremes. Como poderemos verificar adiante, outra trilha, a que seguia para o Guaré e o Piqueri, ao se afastar bruscamente do leito da Rua 15 de Novembro, apresentava um desvio na altura da atual Rua Três de Dezembro, fato sem dúvida motivado pelas mesmas razões de comodidade no caminhar.
Após um segmento hoje obliterado, nas imediações da Praça da Sé, o Peabiru reaparecia na Rua do Carmo, virava à esquerda na Rua Tabatinguera, descia ao antigo leitodo Tamanduateí e, a partir daí, orientava-se pelo traçado do primeiro caminho do mar,a hoje chamada Trilha dos Tupiniquins. Passando por Santo André da Borda do Campo,elevada a vila em 1553, e Paranapiacaba, fazia a descida da serra pelo vale do Rio Mogi,até atingir na Baixada Santista o ponto conhecido por Piassaguera Velha (PERALTA,1973, p. 5-7; PEREIRA, 1936, p. 33-40). O pesquisador Daniel Issa Gonçalves, desenvolvendo um estudo sobre o Peabiru na região de São Paulo (GONÇALVES, 1998, p.49-60) chegou à conclusão de que a Trilha dos Tupiniquins, ao transpor o Rio Tamanduateí,acompanhava o trajeto do antigo caminho da Mooca (Rua da Mooca). Depois continuavapela Rua do Oratório, pela Avenida Vila Ema e por trechos da Avenida Sapopemba, jáfora dos limites do município até atingir a cidade de Ribeirão Pires. O Peabiru compunha-se portanto dentro da atual área urbana de São Paulo, como veremos mais adiante,de dois importantes caminhos quinhentistas da vila paulistana, o que chegava do sertão,vindo do oeste, e o que seguia para o litoral, em direção a leste.O que os pesquisadores da história de São Paulo, contudo, não perceberam é queao percorrer o topo da colina em que vieram estabelecer-se os jesuítas, tangenciando osprimeiros muros defensivos do aldeamento, essa vereda pré-cabralina era, muito provavelmente, interceptada por outra, que corria em sentido transversal. De acordo comnossa hipótese, esta última vinha da direção do sul, cruzava o Peabiru na altura do atualLargo da Misericórdia e seguia em frente, desviando-se para nor-noroeste. Ultrapassavao Ribeiro Anhangabaú e, mantendo a mesma orientação, dirigia-se à margem esquerdado Rio Tietê. Esse caminho também tinha, certamente, origem imemorial e, ao tempoem que chegaram os jesuítas, interligaria duas das mais importantes aldeias indígenas doplanalto: Jeribatiba, ao sul, e Piratininga, a noroeste.
Foi a transferência dos chefes dessas duas aldeias para a colina junto ao Tamanduateí, que as levaram por certo ao rápido declínio. Em carta de 1557, contudo, fala ainda Anchieta de Jeribatiba, onde os inacinos doutrinavam índios da mesma forma que o faziam em São Paulo (LEITE, v.2, p. 369). Tudo leva a crer que a antiga aldeia de Caiubi ficava ao sul, na região ribeirinha do Rio Pinheiros (antigo Jeribatiba) ou do Jeribatiba-Açu (atual Rio Grande) e, conforme se lê na correspondência jesuítica daquele tempo, distava seis milhas ou duas léguas mais ou menos (cerca de treze quilômetros) da casa paulistana.
Provavelmente, em algum momento entre 1557 e 1575, a aldeia de Jeribatiba foi preterida pelos padres, sendo transferida a aldeia de catequese para a localidade de Virapueira(Ibirapuera, atual Santo Amaro). Desde então nas Atas da Câmara aparece o caminho queia na direção do sul com o nome de caminho de Virapueira (ATAS, v.1, p. 71), sendo nelecolocado um dos marcos do rossio da vila de São Paulo por ocasião da medição de 1598(R.G., v.2, p. 106-108). Esse caminho, nas proximidades da casa jesuítica de São Paulo,acompanhava o rumo das seguintes ruas atuais: Rua Vergueiro, Avenida da Liberdade eRuas Dr. Rodrigo Silva e Quintino Bocaiúva (SANT’ANNA, 1937-1944, v.2, p. 44 e 49).Com relação ao trecho que se distanciava para nor-noroeste, seu desenvolvimentoinicial era, em nossa opinião, constituído pela atual Rua Álvares Penteado, seguido deuma pequena parte desaparecida decerto devido a remanejamento urbanístico executadoem meados do século XVII (abertura da Rua São Bento, assunto ao qual retornaremosadiante). Um documento cartográfico, de origem misteriosa, conservado no Arquivo Histórico Militar no Rio de Janeiro, executado ao que parece de fins da segunda metade doséculo XVIII (supomos que ele date de c. 1785), recentemente publicado pelo ProfessorNestor Goulart Reis Filho (REIS FILHO, 2004, p.67), que o chama de “Planta da Restauração da Capitania”, mostra que àquela altura havia desaparecido um pequeno trechodo caminho de Piratininga que se seguia à antiga Rua do Comércio (atual Álvares Penteado). Para alcançar o pontilhão que transpunha o Anhangabaú era necessário entrar noBeco da Lapa (Ladeira Miguel Couto) e a partir daí se dirigir ao ponto em que era feitaa transposição do curso d’água. Esse trecho novo, que por sua vez seria suprimido coma abertura da Rua de São José (Líbero Badaró) em 1787, é bem visível no “Dezenho por îdea da cidade de Saõ Paulo” [sic], datado do período 1765-1774 e atualmente depositadona Biblioteca Nacional. Nessa ilustração, também há pouco divulgada pelo ProfessorNestor (REIS FILHO, 2004, p.74 e 75), vê-se claramente que o trecho de caminho quenos interessa, então chamado de “caminho da Luz”, partia do velho Beco da Lapa, e, demodo enviesado, cortava a ainda mal formada ladeira que descia do Largo do Rosárioem direção ao Anhangabaú, futura Ladeira do Acu ou de São João. Já havíamos conseguido reconstituir o traçado original desta parte do caminho de Piratininga a partirdo exame da planta da cidade de São Paulo executada em 1810 pelo engenheiro militarRufino Felizardo da Costa (SÃO PAULO, 1954, planta n.1), mas os dois documentossetecentistas recentemente publicados confirmam plenamente as nossas suspeitas. Nãodeixa de ser surpreendente que nenhum pesquisador tenha reparado que a antiga Rua doComércio (hoje Álvares Penteado) possui praticamente a mesma orientação da Rua doSeminário e da antiga Rua do Bom Retiro (hoje General Couto de Magalhães). Esse trecho de caminho, que atravessava o Ribeirão Anhangabaú no lugar onde outrora havia umpontilhão construído na embocadura do desaparecido Beco do Sapo, subia a atual Rua doSeminário e buscava a região correspondente ao Bairro do Bom Retiro de nossos dias,onde devemos ver, conforme procurou demonstrar Afonso de Freitas, a entrada dumaregião quase mítica, que se estendia a partir daí em direção a oeste, ao longo da margemesquerda do Rio Tietê, conhecida até o primeiro quartel do século XVIII pelo nome dePiratininga (FREITAS, 1978, p. 179-192).O caminho de Piratininga Muito já se falou sobre Piratininga. Todo o estudioso que se interessou pela históriade São Paulo quinhentista tem uma opinião formada acerca desse nome. Infelizmente,porém, talvez jamais consigamos esclarecer por inteiro o mistério que envolve esse topônimo. Para Washington Luís, por exemplo, Piratininga indicava vasta região no campo,no planalto paulistano. Não era povoação e muito menos vila (LUÍS, 1980, p. 72-73 e 82).Na interpretação de Afonso de Freitas, fundamentado na leitura das cartas de datas deterra distribuídas durante o quinhentismo e o seiscentismo, Piratininga era, ao contrário,uma região bem delimitada, de localização precisa, a nor-noroeste da vila de São Pauloe contígua ao Guaré.
Já na correspondência dos primeiros jesuítas, o nome de Piratininga aparece empregado de modo extremamente difuso, e, devemos admitir, confuso. Segundo carta de Nóbrega datada de outubro de 1553, a aldeia recém-construída no planalto, logo depois transformada em aldeamento jesuítico, estava instalada a cerca de duas léguas de distância da povoação de João Ramalho, conhecida pelo nome de Piratinim (LEITE, v.2, p. 16). Dada a grande – e desconcertante – distância que o separava da futura São Paulo, não parece ser esse povoado a aldeia indígena liderada pelo sogro de Ramalho, Tibiriçá, a qual, embora possuísse essa mesma denominação, estava situada, segundo Frei Gaspar da Madre de Deus, como veremos adiante, a uma distância bem menor, a mais ou menos meia légua do núcleo jesuítico.
De acordo com Nóbrega, na carta citada, foi nesse núcleo de João Ramalho que Martim Afonso de Sousa ”primeiro povoou”, ou seja, fundou a efêmera vila de Piratininga no recuado ano de 1532, conforme relata o diário de Pero Lopes, irmão de Martim Afonso. Por outro lado, em missiva escrita por Anchieta em 15 de agosto de 1554, a própria povoação dos padres aparece também chamada de aldeia de Piratininga, onde os jesuítas mantinham “uma grande escola de meninos, filhos de índiosensinados a ler e escrever” (LEITE, v.2, p. 81). Ainda nesse tipo de documentação se faz alusão a um certo porto de Piratinim, localizado à margem esquerda do Rio Grande (Rio Tietê) e a um rio de Piratininga, que deve ser interpretado como sendo também o Anhembi (Tietê), o rio por excelência da região; fala-se igualmente em campos de Piratininga, que abarcavam toda a amplidão dos campos planaltinos; e, finalmente, em São Paulo de Piratininga, que é o nome que a casa jesuítica tomou a partir de 25 de janeiro de 1554 e que depois foi estendido à vila criada em 1560, às vezes denominada São Paulo do Campo.
Maia Fina, por seu turno, procurou provar em ao menos dois de seus trabalhos,baseado na opinião do Padre Serafim Leite, S. J., que a Piratiniga primitiva estava situada no atual bairro de Santana, nas fraldas da Serra da Cantareira (FINA,1965; FINA,1971, p. 119-258). Mas, analisando seus estudos, identificamos uma série de equívocos, de deduções apressadas e sem fundamento, que nos fazem rejeitar totalmente esta última hipótese. Sobre esse assunto, porém, as cartas jesuíticas de meados do século XVI fornecem uma pista, que, em nosso entender, não pode ser de modo algum desprezada. Nóbrega chamava de Piratinim o porto que assegurava existir à margem esquerda (e não à direita!) do Rio Grande (Rio Tietê) (LEITE, v.2, p. 414) e isso nos conduz à conclusão de que a Piratininga original bem poderia jazer em algum ponto nas proximidades dessa margem do rio – afinal, a origem etimológica do topônimo (peixe seco ou lugar onde seca o peixe, segundo Anchieta) sugere um lugar inundável, nas imediações de algum curso d’água, onde o peixe se deixa apanhar entre as ervas, depois da enchente, tal como aconteceu durante séculos na época das chuvas perto da cidade de São Paulo com o próprio Rio Tietê (PEREIRA, p. 66).
Para Frei Gaspar da Madre de Deus, o rio de Piratininga, conforme o entendimento de Azevedo Marques, era o Rio Tamanduateí (MARQUES, 1980, v.2, p. 175). Isso, porém, parece ser fruto de um engano de Azevedo Marques. O que declara de fato FreiGaspar é que Piratininga era um ribeiro afluente do Rio Anhambi, ou Anhembi. Aliás,não se deve rejeitar pura e simplesmente a versão de Frei Gaspar a respeito de Piratininga.
Afinal, nascido na região de São Vicente em 1715, estava o monge beneditino muito maispróximo do que nós dos fatos por ele relatados, podendo até ter conhecido velhos paulistanos que ainda conservavam por tradição a lembrança de onde a primitiva Piratininga se localizava. Diz Frei Gaspar:
Pelo dito campo dos Antigos faz seu curso um Rio famoso, a que os títulos e cartasmais antigas dão o nome de Rio Grande e o de Anhambi as Sesmarias concedidas noprincípio do século passado; e, hoje, todos vulgarmente o de Tietê. Nele faz confluência um ribeiro a que os índios da terra intitulavam Piratininga ou Piratinim, como acho escrito em alguns documentos antigos e o lugar dessa confluência fica longe da cidade cousa de meia légua. Em uma das margens do tal ribeiro estava situada uma aldeia, cujo nome era Piratininga, onde residia Tebiriçá [sic], Soberano dos Guaianazes; ela tomou o nome do ribeiro, o qual se comunicou a todo o País, e este se chamou Campos de Piratininga (DEUS, 1953, p. 119-120).
Azevedo Marques deduziu do acima reproduzido que Madre de Deus ao mencionaro Ribeiro Piratininga se referia ao Rio Tamanduateí. O que não pode ser, à vista do quedirá a seguir o historiador setecentista. Páginas adiante relata Frei Gaspar, baseado na [Páginas 14, 15, 16, 17 e 18]
versão tardia – e certamente distorcida –, do Padre Simão de Vasconcelos S. J., que, porordem de Nóbrega, tinham os jesuítas escolhido no planalto, para fundação de sua futura casa, um lugar eminente entre o Rio Tamanduateí e o Ribeiro Anhangabaú, por não lhes agradar nem a povoação de Santo André, nem a aldeia de Piratininga. E acrescenta:
“Para mais comodamente poderem instruir aos neófitos, aconselharam a Martim AfonsoTibiriçá e a Cay Uby, Senhor de Geribatiba, já muito velho [...], que transferissem suasresidências para junto ao Colégio futuro.” (DEUS, p.123)
De tudo isso se conclui facilmente, portanto, que o Ribeiro Piratininga jamais poderia ser o Rio Tamanduateí (antes de tudo por uma questão de volume; um é rio, o outro ribeiro). Junto do Ribeiro Piratininga estava situada a aldeia de mesmo nome, onde primitivamente habitava Tibiriçá, enquanto perto do segundo curso d’água, de volume maior, no alto de uma colina, se assentaram no princípio do segundo semestre de 1553 os índios que desejavam ser convertidos pelos padres de Jesus (numa aldeia a que os jesuítas atribuíram logo depois o mesmo nome de Piratininga).
Como demonstrou Afonso de Freitas, o caminho de Piratininga desenrolava-se para além do Anhangabaú, indo aproximadamente em direção do nor-noroeste. Corresponderia, portanto, ao trecho inicial do caminho do Ó, conforme vem consignado na planta de Rufino Felizardo da Costa (1810), caminho esse a que alude, aliás, uma passagem das Atas citada por Maia Fina e que remonta ao longínquo ano de 1741 (FINA,1971, p. 233-234).
Tomando por base as plantas antigas da cidade, podemos deduzir que a antiga vereda, como já vimos antes, se afastava da vila a partir da encruzilhada hoje ocupada pelo Largo da Misericórdia. Seguia a partir daí pela atual Rua Álvares Penteado, indo sempre em frente, até atingir o Anhangabaú. Transposto esse ribeiro, percorria sucessivamente as atuais Ruas do Seminário e General Couto de Magalhães (antiga Rua do Bom Retiro), indo adiante talvez pelo percurso da José Paulino, que sob a forma de rua só seria aberta no tempo do Presidente João Teodoro (1872-1875), e, aparentemente, com um pequeno desvio à direita, prosseguindo pela Rua da Graça.
Correndo sempre na mesma direção, deveria atingir a margem esquerda do Tietê na altura do Bom Retiro. Justamente nesse ponto, em zona inundável, desaguando no Tietê, sabemos ter existido um ribeiro, do qual um levantamento hidrográfico paulistano datado de 1889, intitulado Planta Geral das Nascentes, Vertentes e Curso de Águas no Perímetro da Cidade de São Paulo, hoje depositado no Arquivo Histórico Municipal, omite-lhe o nome sem, porém, deixar de assinalar sua presença. Seria esse pequeno curso d’água o esquecido Ribeiro Piratininga?
Numa escritura pública, datada de 30 de maio de 1589, em que é feita a descrição dos limites das terras cedidas por Brás Cubas aos frades carmelitas, pode-se inferir, de determinado trecho, esse mesmo percurso. Damos abaixo o teor parcial do documento. Entre colchetes iremos comentando por partes os mencionados limites:
o caminho de Santo André para Piratininga vinha do curral de Aleixo Jorge pelo mesmo caminho que vem pela ponte grande em Tabatinguera [como já vimos, e veremos novamente, esse é o caminho velho do mar, trecho do antigo Peabiru, que acompanhava o traçado da Rua da Mooca, passava pela Rua Tabatinguera e seguia pela atual Rua do Carmo] e dahy atravessava pela villa vindo pela rua direita ate onde estava o mosteiro dos padres da companhia [essa rua “direita” parece seguir o trajeto de um segmento de rua sem denominação específica incorporado ao Pátio do Colégio, segmento este que hoje vai da Rua Floriano Peixoto, em frente à Caixa Econômica Federal, sita na Praça da Sé, até ao Pátio do Colégio; na embocadura inicial dessa via estaria localizada a porta da vila transposta por aqueles que chegavam do litoral] e dahy vindo pela porta que foi de Affonso Sardinha [a porta mais importante da vila, que provavelmente estava localizada na altura da esquina da Rua Anchieta com a Rua 15 de Novembro] e da qual rua foi de Rodrigo Álvares e Martim Affonso [essa via, Rua de Martim Afonso, nome de batismo adotado pelo índio Tibiriçá, em nossa opinião, não poderia ser jamais a Rua São Bento, como afirmava Frei Gaspar – porque, como veremos adiante, a Rua São Bento, ao contrário do que dizia o frade beneditino, só teria sido aberta, na verdade, no século XVII –, mas talvez estivesse representada por uma trilha que seguisse pela Rua 15 de Novembro e trecho inicial da atual Avenida São João, antiga ladeira desse nome; isso, se não acompanhasse o traçado, justamente, da Rua Álvares Penteado, orientada, como visto, para o Ribeiro Anhangabaú] e dahy a sahir a aguada do ribeiro e atravessando o ribeiro do Anhangobai pelo mesmo caminho que hoje por elle se servem os moradores daquela banda de Piratininga ate defronte a barra do Piratinin onde dava no rio grande [caminho de Piratiniga, que, após a transposição do Anhangabaú no local chamado Acu, se iniciava na Rua do Seminário, e cujo trajeto, descrito anteriormente, terminava na barra que o ribeiro daquele nome formava ao lançar suas águas no Rio Tietê] (JORGE,1999, p. 41)
Após a transferência de Tibiriçá para perto da casa jesuítica de São Paulo, a primitiva aldeia indígena de Piratininga parece ter rapidamente entrado em decadência. ComoMaia Fina notou com propriedade, o caminho que levava a essa antiga aldeia de índiosnunca é mencionada entre os mais importantes da vila nas Atas da Câmara dos primeirosanos, sendo registrado somente como uma via de alcance local nas cartas de datas de terra concedidas entre o Quinhentos e o Seiscentos. Fato que revela a crescente indiferençademonstrada pelos paulistanos por uma região cujo nome simplesmente se esvaeceria aolongo dos próximos 170 anos.Se em meados do século XVIII a paragem de Piratininga já havia perdido seu topônimo original, a senda que ia até ela, ou, antes, que por ela passava, continuou, comovisto, sobrevivendo sob outra denominação. Tornou-se o caminho de Nossa Senhora do Ó(CARTAS DE DATAS DE TERRA, v.6, p. 54), devendo, após atingir a margem esquerdado Tietê, virar à esquerda e acompanhar o rio a jusante, até o ponto em que o atravessavapor meio de uma ponte, de acordo com uma menção documental de 1741. A etapa dessecaminho até a ponte, ao que parece, já estava com pouco uso na segunda metade doséculo XVIII, havendo sido preterida pelo caminho de Jundiaí, que saía do Piques e sebifurcava para os lados de Nossa Senhora do Ó na região da Água Branca.O progressivo desinteresse da população pelo velho caminho de Piratininga é, ademais, confirmado por alguns documentos curiosos. No volume de Cartas de Datas deTerra referentes aos anos de 1833 a 1835, faz-se menção a uma questão entre a Câmarae o proprietário da Chácara do Bom Retiro, Tenente-Coronel Jerônimo José de Andrade(CARTAS DE DATAS, v.11, p. 125-130). A edilidade pretendia recorrer à Justiça, exigindo que para benefício do público o proprietário da chácara reabrisse uma passagem quedava na margem esquerda do Rio Tietê (em nossa opinião, a isso fora reduzido o antigocaminho de Piratininga). Os pareceres então emitidos por especialistas se mostraram,contudo, favoráveis a Jerônimo de Andrade, pois a Câmara não conseguia provar que foracoagida pelo Capitão General Franca e Horta a concordar com o fechamento do antigoatravessadouro, no tempo em que o governador da Capitania de São Paulo esteve na posseda referida chácara, havia mais de vinte anos. [Páginas 19 e 20]
De fato, em 1809, o governador tinha solicitado à Câmara que reconsiderasse adecisão de manter aberto o caminho que atravessava suas terras. Esse trilho fora fechadoanteriormente por antigos proprietários da chácara que ora possuía (o mais remoto delesparece ter sido o Dr. Luís de Campos na segunda metade do século XVIII), mas o Coronel Luís Antônio Neves de Carvalho, então secretário do governo da Capitania, interessado em percorrê-lo para ir à sua propriedade situada além-Tietê, denominada Chácara dosMorrinhos, havia feito em 1799 uma representação à Câmara queixando-se da obstruçãoperpetrada pelo Capitão Manuel Fernandes de Andrade, na época dono da Chácara doBom Retiro (R.G.,v.12, p. 393-401; R. G., v.14, p. 130-131). Na ocasião, a Câmara defendera os interesses do queixoso e exigira que o caminho se mantivesse acessível a quemquer que fosse; agora, em 1809, o governador da Capitania requeria o seu fechamentodefinitivo e a edilidade, intimidada talvez pela alta posição social e grande poder políticodo solicitante, acabou simplesmente por ceder aos desejos dele.
Não deixa de ser intrigante essa menção à Chácara dos Morrinhos, pois seus limitesenglobavam originalmente as áreas ora ocupadas pelo Campo de Marte e pelo bairrodenominado Jardim São Bento, local onde subsiste, na Rua Santo Anselmo, n.102, a sededa antiga chácara, datada de 1702, imóvel hoje pertencente à Secretaria Municipal deCultura da Prefeitura de São Paulo. Numa rápida consulta a um mapa da cidade, verificaremos que a chácara se estendia a partir da margem direita do Rio Tietê, bem defronteao bairro do Bom Retiro, fato que – devemos reconhecer – faz dessa propriedade sériacandidata a herdeira da velha região de Piratininga, numa interpretação que considereválida a hipótese de essa paragem situar-se à direita do Tietê (como defendia Maia Fina),e não à esquerda como preferimos. Neste caso, à margem esquerda do rio, provavelmentebem junto da trilha indígena, estaria localizado o porto quinhentista de Piratinim, citadopor Manuel da Nóbrega.
As passagens documentais a que aludimos acima revela-nos assim que a extinçãoda servidão pública representada pela trilha multissecular de Piratininga foi provocadapor um dos donos de uma propriedade rural por ela atravessada, extinção essa sem dúvidacausada pela busca de privacidade por parte do governador que não queria ser importunado por estranhos que iam à margem do Tietê praticar algumas atividades então corriqueiras, tais como, a pesca, a cata de gravetos e o uso da várzea para pasto de animais detropa (CARTAS DE DATAS, v.11, p. 143-146).Pressionada ou não pelo Governador Franca e Horta, o certo é que a Câmara haviapermitido o fechamento da passagem, situação de resto mantida por todos os posterioresproprietários da chácara. E a isso a população acedeu passivamente, sem dúvida porquepara ir a Freguesia do Ó já fazia uso de uma estrada mais cômoda, ou ao menos maisbem conservada, que, partindo do Piques, passava pela Água Branca (estrada de Jundiaíe Campinas); ou se servia de uma variante, o caminho do Araçá (D’ALINCOURT,1953,p. 43-44). Caso em que, o viajante devia subir a atual Rua da Consolação (Peabiru), ena altura do cruzamento da Avenida Paulista, tomar à direita, encaminhando-se para aestrada do Araçá, atual Avenida Dr. Arnaldo. A variante se prolongava a partir daí pelasAvenidas Heitor Penteado e Cerro Corá, seguindo pela Rua Belmonte até atingir a estradade Jundiaí e Campinas na altura da ponte do Anastácio.Nos meados do século XIX, um pequeno trecho do velho caminho de Piratiningacontinuava a conduzir à Chácara do Bom Retiro, aparecendo nas plantas da cidade daépoca interrompido bem defronte dos edifícios dessa propriedade, que depois de Franca e Horta, pertenceu, sucessivamente, ao Brigadeiro João Jácome de Baumann, a seu genroTenente-Coronel Andrade, a seguir ao filho deste, Dr. José Maria de Andrade, ao Dr. JoãoRibeiro da Silva e a Manfred Mayer, loteador daquelas terras em fins do Oitocentos.Cartas de datas de terra concedidas pela Câmara Municipal em 1809 e em 1817referem-se a esse trecho da antiga trilha como o caminho, ou corredor, que ia “em direitura” à chácara do General Franca e Horta ou como a estrada que de Santa Ifigênia ia paraa chácara do Coronel Baumann (CARTAS DE DATAS, v.6, p. 101-103 e 199).A vila de São Paulo do CampoErguidas inicialmente de maneira provisória, as primitivas casa e igreja dos jesuítasnão tardaram em ser substituídas por outras, de mais sólida construção. Sob a responsabilidade do Padre Afonso Brás, S.J., carpinteiro e construtor, o novo convento e a segundaigreja, alpendrada, foram inaugurados quase três anos depois, em fins de 1556 (LEITE,v.2, p. 315-316).Não há motivos relevantes para julgar que o conjunto arquitetônico então edificado estivesse em localização muito diversa da do colégio seiscentista, réplica do qualcontemplamos hoje no Pátio do Colégio. Em torno da segunda casa, de proporções maisreduzidas que as da construção posterior, agruparam-se novas famílias de índios convertidos, cujas moradias, de taipa (de acordo com o modelo português, segundo Simão deVasconcelos), foram executadas também sob a orientação daquele mesmo padre construtor (LEITE, v.3, p. 256).Apenas seis anos após a fundação da casa jesuítica piratiningana, os padres deJesus e os habitantes de Santo André solicitaram ao Governador-Geral Mem de Sá atransferência do foral de vila para o aldeamento jesuítico, por ser este último local maisseguro do ponto de vista estratégico (LEITE, v.3, p. 343-347). A chegada dos portuguesesvindos de Santo André provocou a imediata retirada dos índios, que, abandonando suascasas, foram reunir-se em dois pontos afastados, transformados depois em aldeamentos,Pinheiros e Ururaí (São Miguel Paulista) (ATAS, v.1, p. 211).
O núcleo, protegido por muros, tinha certamente exíguas dimensões. Provavelmente as defesas rodeavam um espaço pouco maior que o Pátio do Colégio dos dias atuais.É totalmente despropositada a reconstituição, datada de 1936, que fazia a vila fortificadaocupar uma área maior que a do Triângulo (formado pelas Ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento) (PEREIRA, p. 75). Por meio das Atas, temos conhecimento de que o sistema defensivo, naquela altura, era constituído de fossos, muros de taipa cobertos de palha, baluartes e portões fechados a cadeado (ATAS, v.1, p. 16-17, 22 e 63). A nosso ver, é também provavelmente fantasista a reconstituição desses muros com a aparência das muralhas medievais, coroadas com ameias e merlões, como o faz o Professor Nestor (REIS FILHO, 2004, p.22). Em nossa opinião, não passavam de simples muros de taipa;cobertos de palha, como dizem as Atas, para que não se danificassem com as chuvas então freqüentes. Uso que se prolongaria até o século XIX, por ser mais em conta cobri-los assim do que com telhas de capa e canal.
Apesar de extremamente diminuta, a povoação devia estar provida de ao menos duas portas: a mais importante, sobre a qual haviam construído uma guarita em 1564, era a Porta Grande, abertura que talvez desse passagem ao caminho do sertão, de onde provinham em geral os ataques dos índios contrários (ATAS, v.1, p. 38 e 394); a outra porta era, supostamente, a que permitia uma saída cômoda para o Caminho do Mar (ATAS, v.1, p.98).
As residências dos portugueses logo ultrapassaram os limites dos muros defensivos,esparramando-se com rapidez pela região circunvizinha. Nos papéis camarários são muitas as alusões a casas e construções utilitárias adossadas aos muros protetores pelo ladode fora e também a aberturas feitas irregularmente nesses muros pelos moradores, o queprejudicaria a defesa da vila em caso de ataque inimigo (ATAS, v.1, p. 63, 69, 74, 80-81 e 94). Uma dessas aberturas fora feita em 1575 por Joane Anes para ir a uma das fontes da vila, situada detrás de sua moradia (ATAS, v.1, p. 69, 94 e 237).
São Paulo do Campo era então muito pobre. Em 1589, seus cerca de 150 moradores habitavam construções baixas com tetos de palha, a qual começava a ser substituída pelas primeiras telhas produzidas na vila. Sendo também digno de nota que, conforme o regimento dos carpinteiros da época, uma porta padrão não tinha mais do que 1,76m de altura! (ATAS, v.1, p. 67, 324 e 370)
A primeira Casa de Câmara só foi edificada em 1575 (ATAS, v.1, p. 76-79). Térrea e dispondo de um único cômodo, quando havia alguém encarcerado nela eram os vereadores obrigados a se reunir alhures, em geral na casa do vereador mais velho (ATAS, v.1, p. 125, 135, 158 e 161). Com a construção da Casa de Câmara, São Paulo passou a contar com dois logradouros, funcionando um deles como praça religiosa e o outro, como praça civil, dualidade que remontava em origem à cidade portuguesamedieval: o terreiro jesuítico, onde fora erguido o pelourinho em 1560 e agora se viaum cruzeiro em frente da igreja (DEUS, p. 125; ATAS, v.1, p. 322 e 467) – terreiroesse que devia coincidir espacialmente com a praça central da aldeia indígena criadaem 1553 –, e a praça pública, para onde foi depois transferido o símbolo de liberdademunicipal, o qual não passava de uma rústica peça de madeira falquejada (ATAS, v.1,p. 269, 309 e 310). Posicionando-se entre esses dois espaços, a Casa de Câmara dava,supomos, os fundos para a praça pública e a frente para o adro dos jesuítas (ATAS, v.1,p. 161 e 269).
Cinco anos mais tarde, cogitavam os vereadores fazer um paço municipal mais amplo, de sobrado, com sala de Conselho em cima e cadeia embaixo, como era costume noReino, mas a falta de recursos obrigou-os simplesmente a reformar a precária construçãoexistente, então em ruinoso estado (ATAS, v.1, p.265 e 268). Em 1587, expressaram os habitantes da vila paulistana o desejo de erguer igrejamatriz; para tanto se escolheu um local situado entre as casas de dois moradores, DiogoTeixeira e André Mendes (ATAS, v.1: 345 e 352). A menção destes nomes é valiosa porque autores da estatura de um Taunay ou de um Leonardo Arroyo asseguraram ser hojeimpossível localizar o terreno da primeira matriz paulopolitana (TAUNAY, [1953], v.1,p. 45: ARROYO, 1953, p. 23). Acontece que Diogo Teixeira e André Mendes são citadosnas primeiras Atas como moradores do caminho de Virapoeira (ATAS, v.1, p. 238), e issocolocava os chãos da futura matriz ao sul da vila e fora da área fortificada. Esse ponto éa nosso ver de extrema relevância, pois até pesquisadores experimentados como o Professor Nestor Goulart Reis Filho não atentou para esse precioso detalhe (REIS FILHO,2004, p.18). Reconstituiu a projeção horizontal original da pequena vila de São Pauloincluindo nela uma área que só seria acrescentada à parte murada quarenta anos após suafundação, como veremos abaixo. [Páginas 21, 22 e 23]
Em 1591, a vila de São Paulo vivia em clima de guerra contra os índios inimigos.Ao alpendre da igreja jesuítica foram recolhidos os familiares dos moradores dos arredores que estavam fora. Havia necessidade de se alargarem os muros do povoado paraabrir espaço para o acolhimento de novos refugiados vindos dos campos circunvizinhos epara permitir melhores condições de luta, caso fosse necessário (ATAS, v.1, p. 415). Essapassagem das Atas é também importantíssima porque derruba a hipótese do ProfessorGustavo Neves da Rocha Filho (1992, p.48) de que o Pátio do Colégio original possuíaextensas dimensões. Se assim fosse não seria preciso ampliar o espaço intramuros. Finalmente, três milésimos mais tarde, decidiram os edis demarcar e murar o terreno da futura matriz, incorporando-o na parte cercada. Coisa que já estava pronta umano depois, pois o público pregão era então anunciado no terreiro da igreja matriz (ATAS,v.1, p. 488 e 505). Esse alargamento de muros deve ter duplicado a área do núcleo original, e uma importantíssima carta seiscentista em que se acha representada a vila de SãoPaulo (c. 1609-1611), documento conservado na Real Academia de História em Madri,recentemente republicado pelo Professor Nestor (REIS FILHO, 2004, p.34), de autoriaatribuída ao engenheiro militar italiano Alessandro Massaii, comprova surpreendentemente que o terreiro da matriz delimitado em 1594 já era o mesmo que sobreviveu até1913, quando intervenções urbanísticas resultaram na criação da Praça da Sé. Foi, semdúvida, essa ampliação de 1594 que deu aos limites da vila situados ao sul a conformaçãoarredondada a que certa vez se referiu Nuto Santana (SANT’ANNA, 1958, p. 599). Efoi essa a conformação equivocadamente adotada pelo Professor Nestor como sendo aoriginal. Mais próxima da solução que achamos correta é a do Professor Benedito Limade Toledo (TOLEDO, 2004, p.364 e 365), que de modo pouco compreensível, no entanto,acabou por incluir na parte anexada em 1594 o Largo da Misericórdia. A nosso ver, nãohá evidências documentais que dêem sustentação a essa hipótese.
Os quatro caminhos principais da Vila eram de fato dois
Conta-nos Teodoro Sampaio que eram quatro as portas da povoação (SAMPAIO, 1978, p. 236). Essa afirmação indubitavelmente não se baseia em nenhuma referência antiga, mas provém, isso sim, de uma ilação, decerto errônea, fundamentada no fato de que, segundo velhos documentos camarários, eram quatro os caminhos principais que serviam a vila, cada um deles seguindo, aproximadamente, na direção de cada um dos pontos cardeais.
Como vimos, porém, esses caminhos eram anteriores à criação da aldeia indígena de 1553; portanto, não se irradiavam de início a partir da vila, mas constituíam basicamente duas longas veredas de origem pré-cabralina que a princípio se cruzavam nas vizinhanças da área fortificada do núcleo paulistano e apenas o tangenciavam. Nas Atas dos primeiros anos, no entanto, as duas veredas de índios, muito antigas, já estão decompostas em quatro caminhos. Citados com grande insistência, tinham de ser constantemente mantidos limpos e transitáveis à custa dos moradores.
Rumo ao norte partia o caminho da Ponte Grande, também chamado do Piqueri, pelo qual eram responsáveis os moradores das regiões de Piratininga, Piqueri e Tejuguaçu (ATAS, V.1, p. 374). O pesquisador Issa Gonçalves em seu estudo sobre o Peabiru coloca esta última região, hoje de localização incerta, a leste da vila (GONÇALVES, 1998, p.48), mas pelo contexto das Atas que a mencionam só podemos vê-la situada ao norte da vila, tal como as demais regiões citadas conjuntamente com ela, Piratininga a nornoroeste e Piqueri a nordeste.
O caminho que ia para o norte era conservado ainda pelos moradores que mantinham gado nas pastagens do Guaré e o traziam à vila (ATAS, V.1, p. 374). Esse caminho não era senão um ramal da vereda indígena que ligava Jeribatiba a Piratininga, da qual se separava na altura da atual Praça João Mendes. Seguia então pelo leito da Rua de São Gonçalo (lado esquerdo da atual Praça da Sé), continuava pelo trecho inicial da atual 15 de Novembro, virava abruptamente na Rua 3 de Dezembro e tomava a Boa Vista, acompanhando as curvas de nível do relevo local, até o Largo São Bento. Apartir daí, percorria a Rua Florêncio de Abreu e a Avenida Tiradentes até atingir a Várzea do Tietê, onde já havia, em 1584, uma ponte muito importante chamada Ponte Grande (ATAS, v.1, p. 237). A região do Guaré, como é sabido, correspondia ao atual bairro da Luz, enquanto Piratininga, pelas deduções de Afonso de Freitas, se estendia para nor-noroeste, a partir do bairro do Bom Retiro. Quanto ao Piqueri, região habitada pelos índios Piqueris, em que se situava a fazenda de Brás Cubas, jazia também à margem esquerda do Tietê, mas a montante (a nordeste da vila), nas proximidades de onde desaguava o Ribeirão Tatuapé, conforme se conclui da leitura da sesmaria concedida a Cubas em 9 de agosto de 1567 (ABARCA, 1997, p. 18-19). Nessa carta de sesmaria existe mesmo uma passagem que atesta, de acordo com a interpretação de Afonso de Freitas, a existência de um caminho vicinal ao longo da Várzea do Tietê, pondo em contato Piratininga e o Piqueri (FREITAS, p.192).
O caminho que seguia para o norte embora fosse uma derivação da vereda Jeribatiba-Piratininga acabou por superar em importância o trecho da trilha que se direcionava para o nor-noroeste, ou seja, que ia à região de Piratininga.
Para sudoeste se desenvolvia o “caminho do sertão”, passando pela aldeia dos Pinheiros e pela Embuaçava, como então era denominado o encontro das águas do Tietê e do Pinheiros. Essa vereda nada mais era do que uma fração do ramal paulista do Peabiru já mencionado. Ia-se por ela, saindo talvez pela aludida Porta Grande, porta que parece ser a mesma descrita numa escritura de 1589, também já referida, como “a que foi de Affonso Sardinha” (JORGE, 1999, p. 41), personagem responsável em 1584 pela manutenção do caminho dos Pinheiros (ATAS, v.1, p. 238). Seu trecho inicial, nas proximidades da vila, era representado pela Rua José Bonifácio e pela Ladeira do Ouvidor, segundo os estudos de fotointerpretação desenvolvidos pelo Professor Gustavo Neves da FAU USP.
Tomando-se a direção do sul, ia-se a Virapoeira, mas também à região de Jeribatiba, conforme permite inferir uma passagem das Atas datada de 1593 (ATAS, v.1, p. 457). O pesquisador Issa Gonçalves confunde-se ao identificar Jeribatiba com a aldeia dos Pinheiros, o que faz baseado nas conclusões do Professor Gustavo Neves da Rocha Filho (GONÇALVES, p.43 e 60). As Atas do dia 27 de março de 1593 provam de forma contundente que isso não tem cabimento.
Na sessão camarária desse dia ficou consignado que Jerônimo Rodrigues, morador das proximidades do caminho que seguia em direção ao sul, se encarregaria de convocar a gente de “ubirapoera” e Jeribatiba para que o consertasse. Se Jeribatiba fosse outro nome da aldeia dos Pinheiros, seus moradores teriam sido convocados, mais logicamente, para restaurar o caminho da “Ãbuasava” situado a oeste, tarefa que, ao contrário, ficou a cargo dos habitantes que demoravam próximos desta última via. Essa constatação, segundo nosso entendimento, confere novas forças à desprezada interpretação de Gentil de Assis Moura (MOURA, 1908, p, 22 e 23), que colocava a aldeia de Jurubatuba, ou Jeribatiba, no sul de São Paulo, bem distante, portanto, da aldeia dos Pinheiros.
Como afirmamos anteriormente, o caminho que conduzia à região sul interceptavao Peabiru na altura do Largo da Misericórdia. Em direção à vila, no entanto, partia umsegmento viário que se afastava do caminho de Virapoeira nas imediações da Praça Dr.João Mendes, e foi na beira dele que se demarcou terreno para a ereção da matriz em1594. Esse trecho, chamado no século XIX de Rua de São Gonçalo, e a partir do período republicano de Rua Marechal Deodoro, seria absorvido em 1913 pela Praça da Sécontemporânea. Embora fosse esse segmento também considerado parte do caminho deVirapoeira, ele, na realidade, era a seção inicial do ramal que se desviava para o norte, emdireção ao Guaré e ao Piqueri, divergindo, tal qual a perna direita de um Y, do caminhode Virapoeira num ponto situado nas cercanias da vila, conforme vimos há pouco. A sudeste principiava o Caminho do Mar, velha trilha tupiniquim pertencenteao mesmo ramal paulista do Peabiru. Para alcançá-lo os paulistanos deveriam sair poruma porta supostamente localizada num ponto da via que leva o nome de Pátio doColégio e que desemboca na Rua Floriano Peixoto, via à qual já nos referimos anteriormente. Após percorrerem os leitos das Ruas do Carmo e Tabatinguera, os viajantestranspunham o Rio Tamanduateí por meio de uma outra Ponte Grande, muito citadanas Atas quinhentistas (ATAS, v.1, p. 104 e 274), e cuja construção, aliás, era anteriorà da Ponte Grande sobre o Tietê. A partir desse ponto se enveredavam pelo caminhoda Mooca, ou como afirmava o Padre Anchieta, numa carta datada de 1579 citadapor Gonçalves (p.58), era possível também percorrer parte do trecho que atravessavao planalto navegando pelas águas do Tamanduateí, que nasce dentro dos limites domunicípio de Mauá, vizinho de Ribeirão Pires. À margem da etapa inicial desse caminho, no outeiro Tabatinguera, levantava-se a forca (ATAS, v.1, p. 315), como a servirde advertência aos turbulentos forasteiros que chegavam do litoral. Anos mais tarde(1598), com o estabelecimento dos frades carmelitas nas redondezas, esse sinistroinstrumento de pena capital foi, mediante requerimento dos frades, removido para ocaminho de Virapoeira. Assentado numa elevação de frente para a cruz que estava nocaminho de Virapoeira (Morro da Forca), ele permaneceria até a segunda metade dooitocentismo nesse local, depois ocupado pelo Largo da Liberdade (ATAS, v.2, p. 48e 197; TAUNAY, 1920, p. 36). A cruz que aí havia pode ter sido a avistada pelo PadreFernão Cardim ao entrar na vila em 1585. Depois de ter subido a Serra do Mar e feitoparte do caminho correspondente ao planalto de canoa, navegando as águas do RioPequeno, do Rio Grande e do Rio Jurubatuba, teria aportado numa localidade nãodesignada, Virapoeira talvez, futura Santo Amaro. De lá Cardim teria vindo a cavalopelo caminho que se aproximava de São Paulo pelo sul. Ao atingir os arredores davila, passou por um cruzeiro em posição sobranceira à povoação, que bem poderiaser o que estava chantado no local onde séculos depois surgiria o Largo da Liberdade(CARDIM, 1980, p.172).
Em 1560, por uma questão de segurança, Mem de Sá ordenou a abertura de um novo caminho do mar, conhecido mais tarde pelo nome de Caminho do Padre José (PERALTA, p. 7). A primeira seção desse novo caminho, porém, durante muito tempo parece ter coincidido com a do anterior. Partia da vila pelas atuais Ruas do Carmo e Tabatinguera, passando em seguida pela mesma ponte sobre o Rio Tamanduateí (ATAS, v.1, p. 272-274 e 300). Nas Atas, essa via de comunicação é chamada de Caminho do Ipiranga (1584), porque se distanciava a partir de determinado ponto da velha trilha tupiniquim para atravessar o ribeiro desse nome (ATAS, v.1, p. 237-238).
Em 1593, a Câmara propôs abrir outro trecho inicial mais direto pelas terras de Jorge Moreira, localizadas entre o caminho de Virapoeira e as bandas do Ipiranga (ATAS, v.1, p. 458-460), importante decisão que certamente daria origem ao trecho da futura Rua da Glória. Esse atalho atravessava o Córrego do Lavapés, e foi o trilho usado para ir ao litoral até meados do século XIX, passando pela Várzea do Cambuci. Desde então, e até a inauguração da ferrovia inglesa em 1867, foi preferida pelas tropas de mulas que vinham do interior a estrada aberta entre 1862 e 1863 por um particular, o fazendeiro e comendador José Vergueiro (estrada do Vergueiro), que saia pela Rua da Liberdade, seguindo o leito da Rua Vergueiro. O pesquisador Issa Gonçalves, porém, baseado nos estudos do Professor Gustavo Neves, aventa a possibilidade de o trecho da Glória ter sido usado desde osremotos tempos pré-cabralinos (GONÇALVES, p. 49 e 69). Não concordamos com essa interpretação, pois as Atas da Câmara paulistana deixam claro que só a partir de 1593 se cogitou em abrir essa variante, que encurtava parte do trecho planaltino do caminho que ia dar no mar.
Caminhos mais recentes
Ao findar o século XVI, já se viam duas ordens religiosas sediadas nas vizinhanças de São Paulo: os frades carmelitas (1592), à beira do Caminho do Mar (Rua doCarmo), e os monges beneditinos (1598), à margem do caminho da Ponte Grande (RuaFlorêncio de Abreu). Embora as construções conventuais erguidas na ocasião estivessem situadas em pontos bem afastados do povoado, mantinham voltados para ele osseus frontispícios. Balizavam assim os limites da vila, ao mesmo tempo que velavamespiritualmente por ela.
No século seguinte foi a vez dos franciscanos. A princípio, instalaram-se na Ermidade Santo Antônio (1639), na atual Praça do Patriarca. Depois, em 1642, pretendendo fundar o seu convento, procuraram guardar, por motivos canônicos, em relação ao mosteirobeneditino a mesma distância que separava esse mosteiro do convento do Carmo. Porconseqüência – e contradizendo, nesse particular, a opinião da maioria dos historiadores–, deduzimos que a abertura da Rua São Bento não pode ser anterior a essa época. Unindo o mosteiro beneditino ao recém-construído convento franciscano, essa via, por suaconfiguração, destoa a olhos vistos das demais ruas paulistanas dos primeiros tempos:perfeitamente retilínea (com 700 m de comprimento por 7 m de largura), corta de modoortogonal a Rua Direita, o que demonstra que seu traçado foi feito, excepcionalmente,com o concurso dos conhecedores do ”rumo da agulha”, como eram à época chamadosos raros marujos topógrafos que apareciam no planalto (ATAS, v.4, p. 306). De fato, coma abertura da Rua São Bento se completava o triangulo ideal, quase eqüilátero – em cujosvértices estavam instaladas as três casas conventuais –, que, tal como um cinturão deproteção divina, passou desde então a circunscrever a vila de São Paulo. [Páginas 24, 25, 26 e 27]
atravessar o quintal do mosteiro beneditino (MARQUES, v.2, p. 129) – acontecimentoda maior relevância, durante muito tempo estranhamente ignorado de modo sistemáticopor todos os estudiosos da história paulistana. Ao longo de nada menos do que 184 anoso caminho para as bandas da Luz não correspondeu à atual Florêncio de Abreu, mas, sim,à futura Rua Alegre (hoje Brigadeiro Tobias). Essa variante, por seu turno, parece ter-seoriginado como uma ramificação do velho caminho de Piratininga, conforme sugeremalguns documentos do século XVII analisados por Afonso de Freitas – apesar de esse autor jamais ter-se dado conta de que nessa época o caminho da Luz seguia pela BrigadeiroTobias de hoje (FREITAS, p. 186-187). Em alguns textos antigos, deparamos mesmo comreferências ao Ribeiro Iacuba e a certa lagoa próxima tanto do caminho de Piratininga,quanto do caminho de Nossa Senhora da Luz (FREITAS, p. 187-191; JORGE, 1988, p. 15e 17). Essa lagoa nada mais seria que uma das existentes no local do atual Largo do Paiçandu, onde nascia o Ribeiro Iacuba ou Acu. Em razão da presença desses olhos d’água,o referido largo no início do século XIX chegou a ser conhecido pelo nome de Praça dasAlagoas (ATAS, V.21, p. 405). Por iniciativa dos próprios beneditinos, e com a anuência da Câmara, o primitivocaminho da Luz foi reaberto em 1784, agora sob a forma de rua (ATAS, v.18, p. 140-142).Muito íngreme, mal conservada e atravessando um pontilhão sobre o Anhangabaú, nuncafoi apreciada pelos que demandavam a região norte da cidade, os quais continuaram ademonstrar preferência pela Rua Alegre. Essa situação só começou a mudar a partir dodia em que a então denominada Rua da Constituição foi nivelada e calçada a paralelepípedo por ordem de Florêncio de Abreu, presidente da Província que acabou por lhe emprestar o nome em 1881 (ATAS, v.67, p.159). Desse modo, toda a documentação relativa ao caminho do Guaré, ou da Luz, a partir dos primeiros anos de 1600 até 1784, deve ser interpretada tendo-se em mente o caminho que passava pela Rua do Seminário e pela atual Brigadeiro Tobias, e não pela Rua Florêncio de Abreu, ao contrário do que fizeram, invariavelmente, Afonso de Freitas e Maia Fina, entre tantos outros estudiosos.
Com o tempo novos caminhos e variantes foram sendo abertos, com o objetivo de oferecer aos viajantes itinerários mais econômicos e talvez menos acidentados. A oeste, surgiu o caminho de Jundiaí, apartando-se do de Sorocaba (antigo Peabiru) na altura do Piques. Passava pelas Ruas da Palha (hoje Sete de Abril) e do Arouche, pelo largo desse nome, pelas atuais Ruas Sebastião Pereira e das Palmeiras e pela Água Branca (ATAS, v.43, p. 137 e 159). Recentemente, o arquiteto e historiador Professor Carlos Lemos publicou uma planta reconstituída da cidade de São Paulo em 1775 (LEMOS, 2004, p.174- 175), que traz equivocadamente a saída para Jundiaí passando pela Avenida São João.
Apesar de cometido com certa freqüência, é inadmissível esse engano. A Rua São Joãofoi encompridada pela primeira vez a partir da ladeira desse nome na penúltima década do século XVIII, com a construção da primeira ponte do Marechal (1786-1788); sofreu sucessivos prolongamentos ao longo do XIX, mas só se tornou avenida e atingiu sua extensão atual no início do século passado. Não tem portanto o menor sentido fazer dessa via uma das saídas da cidadezinha colonial. Afinal, até as Atas oitocentistas insistiam em afirmar que a saída para Jundiaí iniciava-se no Piques (ATAS, v.43, p. 137 e 159), desviando-se do caminho que ia a Sorocaba (Rua da Consolação).
A sudoeste, já estava aberto em 1639 o novo caminho de Santo Amaro, que seguia os leitos da atual Rua Santo Amaro e de parte da Avenida Luís Antônio, continuando em direção à Várzea do Rio Pinheiros (R. G. v.2, p. 88, 135, 138 e 152; MONTEIRO,1943, p. 17). Ao sul, foi traçado, em fins do século XVI ou começo do seguinte, novo segmento inicial do Caminho do Mar, representado, como visto, pelas atuais Ruas da Glória e Lavapés (ATAS, v.38, p. 259). A leste, nova saída para a Penha e Rio de Janeiro, começando por uma ladeira fundamente assentada no terreno em frente do convento do Carmo e atravessando a Várzea do Tamanduateí por meio de um longo aterrado – estrada que, supomos, provinha do início do século XVIII, e à margem da qual teria origem, depois, o arrabalde chacareiro do Brás.
Com efeito, inúmeras outras sendas vicinais, remontando ao período pré-cabralinoou à época mais recente, se cortavam mutuamente ou cruzavam os caminhos já descritos, formando uma verdadeira rede de integração regional. Muitas delas infelizmente dedifícil ou impossível identificação. Uma, porém, foi reconhecida por Afonso de Freitascomo sendo a Rua Ipiranga (FREITAS, p. 180, 184 e 191). De origem pré-cabralina, essesegmento viário punha em comunicação o antigo Peabiru com o caminho de Piratiniga.Nas Atas da Câmara de 1800, ele é descrito como a estrada que unia as imediações daIgreja de Santa Ifigênia ao Bairro do Piques, onde se conectava com a estrada geral doAniceto (Rua da Consolação) (ATAS, V.20, p. 256 e 258-259) – traçado correspondente àRua Torta, delineada na Cidade Nova (Centro Novo) em 1808, denominada também Ruada Alegria e, em 1865, rebatizada com o nome de Rua Ipiranga.Os largos de São Paulo Consultando a “Planta da Restauração da Capitania”, planta da Cidade de São Paulo assim nomeada pelo Professor Nestor Goulart Reis Filho, datada por nós de c. 1785, oua planta executada por Rufino José Felizardo Costa, datada de c. 1810, verificamos semesforço que foi a partir dos cruzamentos desses vários caminhos ou de suas bifurcaçõesque se formaram, na maioria das vezes, os primeiros largos paulistanos. Com exceção doterreiro jesuítico (de onde surgiria o Pátio do Colégio de nossos dias) – que, repetimos,deve ter-se originado da praça central da aldeia indígena de 1553 –, da praça pública ondese ergueu o pelourinho (espaço desde então desaparecido), aberta no fundo da CâmaraMunicipal, cuja sede se erguia em frente da Igreja do Colégio, e dos adros fronteiros àstrês igrejas conventuais, todos os outros logradouros antigos da cidade parecem ter nascido de maneira completamente espontânea. Nas proximidades da encruzilhada do ramal paulista do Peabiru com a trilha indígena que ligava Jeribatiba a Piratininga formou-se a pequenino Largo da Misericórdia;do mesmo modo, nas imediações da interseção do caminho do Guaré com o Peabiru surgiu o Largo da Sé. No ponto em que se afastavam os caminhos dos Pinheiros (Peabiru) ede Jundiaí (Ladeira da Memória) formou-se o Piques, largo de forma triangular, onde odepois Marechal Daniel Pedro Müller ergueu, em 1814, sua famosa “pirâmide” de pedra.Os dois caminhos da Luz (atuais Florêncio de Abreu e Brigadeiro Tobias), próximos eparalelos a partir de determinado ponto (início da Avenida Tiradentes), deram origema um espaço extraordinariamente amplo, depois conhecido por Campo da Luz, e maistarde ainda por Largo do Jardim, onde se realizavam feiras no final do século XVIII(SANT’ANNA, v.2, p. 77-78). No lugar em que se separava o caminho que buscava o norte (Guaré) do caminhode Virapoeira, ou de Santo Amaro, que vinha do sul, apareceu o Pátio de São Gonçalo,depois Praça Dr. João Mendes, e na altura em que a via (atual Avenida Ipiranga) que fazia a interligação do Peabiru com o caminho de Piratininga cruzava o caminho de Jundiaí(Ruas Sete de Abril e do Arouche) tomou forma a Praça da Alegria, depois Largo dosCurros, e hoje Praça da República. E ainda no caminho de Jundiaí, numa inflexão quehavia logo adiante da Praça da Alegria, o Coronel Arouche, responsável pela aberturada Cidade Nova, no Morro do Chá, demarcou, em 1808, num largo decerto preexistente,um espaço destinado às evoluções militares a serem executadas pelos Voluntários Reais,o que motivou o primeiro nome dado a esse novo logradouro: Praça da Legião (JORGE,[1985], p. 46), atual Largo do Arouche. Em alguns desses largos, ou em bifurcações, ou mesmo em meras inflexões decaminhos, foram com o tempo, num movimento centrífugo, sendo edificadas igrejas deirmandades, quase sempre de origem social bastante modesta. A Igreja da Misericórdia(c.1599), no largo de mesmo nome; São Gonçalo (1756) – e depois Nossa Senhora dosRemédios (1825) –, no largo desde então denominado de São Gonçalo; Rosário dos Pretos (c.1721), numa bifurcação do caminho que naquela altura conduzia ao mosteiro deSão Bento, hoje Rua 15 de Novembro; Santa Ifigênia (1794), numa bifurcação do antigocaminho de Piratininga; Boa Morte (1802-1810), na inflexão que o velho Caminho doMar (Peabiru) fazia ao se aproximar da Várzea do Tamanduateí (Rua do Carmo esquinacom a Rua Tabatinguera), Santo Antônio (de data imprecisa, talvez do início do séculoXVII), quase na curva que um hipotético trecho novo do caminho de Pinheiros (Rua Direita, atual Praça do Patriarca) fazia ao se precipitar em direção ao Vale do Anhangabaú,e Nossa Senhora da Consolação (c.1801), pouco adiante da mudança de direção que aestrada de Sorocaba (Peabiru) sofria ao subir a encosta do Caaguaçú (no alto do qual seencontra a atual Avenida Paulista).Conclusão De tudo quanto se viu, constata-se claramente que a constituição básica da redeviária paulistana mais remota se deu, via de regra, a partir dos eixos estruturadores representados por velhas trilhas indígenas. Ao contrário do que ocorreu em algumas cidadesbrasileiras, Salvador por exemplo, na São Paulo dos primeiros tempos foi quase nula aformação planejada, isto é, intencional de ruas e largos, prevalecendo a espontânea egradativa incorporação no núcleo urbano da densa malha de veredas preexistentes, algumas das quais de remota origem pré-cabralina. Só a partir do Seiscentos, quando foiaberta a Rua São Bento, e sobretudo a partir dos derradeiros anos do Setecentos, é queas autoridades municipais e da Capitania se preocuparam em começar a ordenar e orientar o crescimento da cidade. Dos tempos dos capitães-generais procedem a abertura deruas novas (Florêncio de Abreu, em 1784 – esta de fato uma iniciativa dos beneditinos,consentida pela Câmara –, e Rua Nova de São José, hoje Líbero Badaró, em 1787), aconstrução das primeiras pontes de pedra (Ponte do Marechal, entre 1786 e 1788; Pontedo Lorena, em 1795, e Ponte do Carmo, entre 1805 e 1808), e ainda a expansão da áreaurbanizada (arruamento da Cidade Nova, no Morro do Chá, em 1808). No caso de SãoPaulo, a organização informal do espaço urbano preponderou nos primeiros séculos epode ser ainda hoje em parte reconstituída, ao confrontarmos, atentos, a documentaçãoescrita remanescente e as primeiras plantas da cidade com o tecido urbano aparentemente caótico da megalópole de nossos dias. [Páginas 28, 29 e 30]
4. Fundo Serviço Funerário. Compõe-se basicamente dos 613 Livros de Termosde Sepultamentos, Arrecadação e Adjucação de Cemitérios, onde encontramos o registro dos mortos enterrados nos cemitérios da Cidade de São Paulo de 1858 a 1977 (comfalhas). É especialmente procurado para fins de prova de parentesco e propriedade. Poderíamos ainda a partir dessa documentação, elaborar estudos e ter, por exemplo, umaestatística dos mortos de um determinado ano; ou outros estudos sobre enterramentos e asaúde pública na Cidade. Os livros de termos de sepultamentos são de tamanhos variadose de difícil manuseio.5. Fundo Particular Severo & Villares. Nele estão cerca de 1800 plantas, oriundasdo escritório que se seguiria ao do Arquiteto Ramos de Azevedo, dentre elas as do Theatro Municipal de São Paulo. Plantas de equivalente importância só serão encontradas naFaculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.6. Fundo IV Centenário. Foi constituído a partir dos 7.300 processos produzidospela comissão encarregada dos festejos comemorativos dos 400 anos da fundação de SãoPaulo, e mais 2.900 prontuários referentes ao cadastro dos funcionários que atuaramjunto à comissão, cujos trabalhos tiveram início no ano de 1951. O interesse dessa documentação está em se fazer levantamentos, por exemplo, sobre os trabalhos produzidos porartistas, escritores, entre outros, envolvidos nas comemorações do IV Centenário.O AHM possui ainda documentos do que podemos chamar de mais representativosda história oficial do País, onde encontramos o Registro de Doações em ouro para aalforria de escravos, de 1886. Dentre as assinaturas importantes estão a do ImperadorDom Pedro II e da Imperatriz Teresa Cristina, além da Princesa Isabel e seu marido, oConde D’Eu. É importante salientar que os exemplos de pesquisa citados acima são osque ficam mais evidenciados numa rápida pincelada sobre a amostra que elegemos, nãotendo sido nossa pretensão esgotar esse levantamento, sendo inúmeros os trabalhos jáproduzidos a partir do acervo do AHM, sobre os mais variados temas.4 - A Revista do Arquivo Histórico MunicipalA Revista do Arquivo Histórico Municipal, capítulo à parte na história do AHM,revela um período profícuo da cultura paulistana, quando se tornou veículo preferencial de divulgação de uma variada gama de artigos da intelectualidade brasileira, cujostemas abordados vão desde estudos de historiografia aos da língua tupi, até levantamentos econômicos e sociológicos da população paulistana, passando por estudosantropológicos sobre os índios brasileiros. Seu primeiro número é anterior ao Departamento de Cultura, isto é, de junho de 1934. Era então mensal, com média de 120páginas por exemplar. A proposta inicial era publicar o acervo documental inédito doAHM: Ordens Régias, Papéis Avulsos, Documentos e Atos Oficiais. Quando FábioPrado assume o governo municipal, em 1934, já haviam sido publicados quatro números; passou então a ser uma publicação de responsabilidade da Diretoria do Protocolo eArquivo da Prefeitura, com tiragem mensal de 2.000 exemplares, de aproximadamente500 páginas por volume. Nas palavras de Rita de Cássia A. Oliveira (OLIVEIRA,1995, p.95-96), o grupo liderado por Mário de Andrade resolveu aproveitar e melhorara revista – que ocuparia a lacuna deixada pela Revista do Brasil, veículo de propagandado Movimento Nacionalista (extinta em 1927), com estudos voltados à Cultura Brasi- [Página 75]
As estruturas construtivas evidenciadas (paredes em taipa de pilão, marcas de esteio de divisórias em pau-a-pique e pisos de terra batida) foram parcialmente deixadas àmostra durante as obras de restauro a que o edifício foi submetido. Quando da aberturadesta Casa Museu à visitação pública, foi montada uma exposição de caráter permanentejunto às estruturas preservadas, contendo painel explicativo das pesquisas arqueológicase vitrines com parte do material mais significativo encontrado.No período entre maio e junho de 1980, por época das obras de restauração daCasa nº 1, foi realizado um corte estratigráfico no quintal dessa residência para verificação da topografia original do terreno em que a mesma havia sido implantada. Sobuma espessa camada de aterro foi evidenciado, acompanhando a declividade originaldo terreno, um bolsão de lixo, associado a uma estrutura de combustão. Essa área dedescarte do lixo doméstico da residência demonstrou uma seqüência estratigráfica demateriais provenientes de todo o período de ocupação daquele imóvel, desde as origensda Vila de São Paulo.Novas escavações foram realizadas em agosto de 1980, dessa vez subsidiando oprojeto de revitalização do Beco do Pinto. Além de uma quantidade surpreendente deartefatos, sugerindo utilização dessa área também para descarte de lixo, foram evidenciados restos dos calçamentos antigos, o primeiro em pedra e o segundo em tijolos. Essasestruturas foram incorporadas ao projeto de recuperação, tendo sido proposto que as mesmas ficassem expostas em vitrines, o que acabou ocorrendo somente em 1992, quando dareformulação e implantação do projeto. Dentre os artefatos recuperados nessas escavações, destacam-se fragmentos de cadinhos feitos de grafite. A presença de tais artefatos,utilizados na fundição de ouro, sugerem que esse depósito era contemporâneo à Casa deFundição de Ouro em São Paulo (séculos XVII e XVIII), localizada nas imediações.Nos meses de janeiro a agosto de 1981 foi realizada a primeira etapa de escavaçõesno Sítio Morrinhos. A equipe já contava, além da coordenadora e alunos, com duas arqueólogas contratadas pelo DPH, admitidas para atuar de maneira permanente na equipede arqueologia.Seqüencialmente, no período de agosto a outubro de 1981, foram realizadas escavações na Casa do Grito, já contando com uma equipe de arqueólogos do DPH. Asestruturas e a cultura material evidenciadas vieram a comprovar a hipótese desse imóvelter sido utilizado como ponto comercial à beira do antigo Caminho do Mar.As pesquisas arqueológicas no Sítio Mirim, realizadas de abril a setembro de 1982,apresentaram excepcional importância. O estado de ruínas em que se encontrava, acrescido da falta de documentação que comprovasse a antiguidade dessa sede rural construída de taipa de pilão e de partido arquitetônico diferenciado das demais casas classificadascomo “bandeiristas”, sugeria que somente a pesquisa arqueológica poderia esclareceressas dúvidas. Com efeito, os dados obtidos durante essas pesquisas definiam a plantaoriginal do imóvel, através da evidenciação de estruturas de fundação já não existentese a datação de artefatos cerâmicos demonstrou que a ocupação local iniciou-se ainda noséculo XVII, idade mais recuada em relação àquela apontada pelas pesquisas históricas,que encontrou na data de 1750 a sua fonte mais remota. Como na Casa do Tatuapé, asvasilhas cerâmicas demonstraram forte influência das técnicas indígenas, definindo umasituação de contato cultural.Em 1984 foram retomadas as pesquisas no Sítio Morrinhos. Os estudos nesse imóvel definiram importantes parâmetros para a identificação de duas fases construtivas [Página 132]