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Antes da abolição, intelectuais faziam vaquinha para libertar escravos
19 de setembro de 1869, domingo. Há 155 anos
O primeiro teatro construído em Porto Alegre, o São Pedro, recebeu centenas de pessoas em 19 de setembro de 1869. Com sua fachada imponente no estilo neoclássico, o prédio ficou com o salão e os camarotes lotados naquela noite. O público saiu de casa para assistir a um espetáculo com desfecho impensável para a elite econômica da época.

Quando a cortina foi levantada, a plateia viu a personagem Liberdade visitando o Brasil. Na peça, ela encontra um escravo, "coberto de andrajos e cicatrizes recentes, entregue à lida diurna". A Liberdade, então, "invoca o auxílio do céu". Um anjo mensageiro responde o chamado e devolve o escravo à Liberdade. Além disso, ele também ordena a libertação das crianças escravizadas.

No palco, então, surgem 21 crianças. Nenhuma delas é aspirante a ator mirim. Todas são negras e filhas de escravas. Elas recebem cartas legítimas de alforria.

"A este espetáculo as lágrimas correram e o entusiasmo dos corações sensíveis tocou até o delírio", escreveu depois o médico José Antonio do Valle Caldre Fião, presidente da Sociedade Partenon Literário, grupo criado há 150 anos, que organizou o espetáculo abolicionista e que fazia "vaquinhas" para comprar a liberdade de escravos.

Mas não só no Rio Grande do Sul atividades de libertação de escravos ocorreram no período. Por todo o Brasil, de 1868 a 1888, há registros de grupos mobilizados pela causa abolicionista. No Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, por exemplo, as cartas de alforrias também eram entregues em apresentações culturais com direito a registro na imprensa.

Em 10 de agosto de 1886, Nadina Bulicioff, uma cantora russa, apresentou a opera Aida, de Verdi, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Ao final, "arrebentou suas algemas cenográficas e, diante do público, que de pé afitava lenços, entregou-lhes (a seis escravas) cartas de liberdade", conta a pesquisadora Angela Alonso, no livro Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (Cia das Letras, 2015). A apresentação carioca foi organizada pelos abolicionistas André Rebouças, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco.

Quanto ao grupo gaúcho Partenon Literário, sua bandeira ia além das letras.

"O Partenon não foi uma sociedade meramente literária, mas de ordem cultural e com viés político. A maioria dos partenonistas tinha dois ideais. Eles defendiam sobretudo a República, sendo contrários à Monarquia vigente, e eram abolicionistas", explicou Maria Eunice Moreira, professora da Faculdade de Letras da PUCRS à BBC News Brasil.

Juntamente com os pesquisadores Alice Campos Moreira e Mauro Nicola Póvoas, a professora escreveu um estudo que servirá de apresentação a todo o acervo digitalizado da "Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário". A revista, publicada entre 1869 e 1879, poderá ser acessada pela internet a partir de outubro (o site ainda não divulgado). No periódico também eram publicados textos contra a escravidão, como o registro de Caldre Fião sobre o teatro apresentado no São Pedro.

Atualmente, quem deseja pesquisar todas as 71 edições precisa alternar visitas a diferentes acervos, entre eles o da coleção especial da biblioteca da PUCRS, onde esteve a reportagem.

As revistas eram diminutas para o padrão atual, com menos de vinte centímetros de largura e altura, com somente a capa em papel colorido e raras ilustrações, como nos casos de textos sobre figuras históricas.

Ultraje

A peça teatral de 1869 foi considerada um ultraje por quem defendia a escravidão. Vale lembrar que, no Brasil, a abolição ocorreu 19 anos depois do espetáculo, em 13 de maio de 1888. A Lei do Ventre Livre, que daria liberdade às crianças, também foi posterior à montagem teatral, assinada em 1871. A Lei dos Sexagenários, que libertou os escravos idosos, foi firmada em 1885.

No Rio Grande do Sul, a escravidão foi abolida em 1884, resultado da pressão de diversos grupos, como o Centro Abolicionista e o Partenon Literário.

O livro que contém a ata original da sessão na Câmara de Vereadores da capital gaúcha que acabou com a escravidão no Estado está preservado no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho, da prefeitura.

Barreiras

Os integrantes do Partenon Literário não organizaram o espetáculo sem encontrar barreiras. Pelo contrário. Se conseguiram libertar as 21 crianças em 19 de setembro foi por que foram impedidos na data originalmente planejada - 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, declarada em 1822.

"Alguns senhores mal-intencionados especularam. Riu-se com estúpido desdém, e a situação pressentiu um golpe certeiro que lhe dirigíamos. Daí os óbices, as dificuldades com que o Partenon teve que lutar e que retardaram a festa da santa liberdade até o dia 19", relembrou Caldre Fião. A passagem também está registrada no livro História da Academia Rio-Grandense de Letras (1901-2016) e Parthenon Litterario (1868-1885) (Metamorfose, 2016), de José Carlos Laitano.

Segundo a historiadora Marília Conforto, autora de Escravo de Papel (Educs, 2012) e Faces da Personagem Escrava (Educs, 2001), muitos dos escravos que chegavam ao Rio Grande do Sul vinham pela rota do comércio interno, já que o tráfico internacional era proibido desde 1850. O tráfico passou a ser ilegal por pressão da Inglaterra, que chegou a apreender navios negreiros. Com o desenvolvimento do capitalismo inglês e da consequente industrialização, novos mercados consumidores eram necessários para o comércio dos produtos da Inglaterra.

"Escravo não tinha salário e não consumia", resumiu criticamente a pesquisadora durante a entrevista.Purgatório dos negros?
br>Conforme Conforto, ser vendido com destino ao Rio Grande do Sul era um novo castigo aos escravizados. "Se criou a ideia de que o Estado era o purgatório dos negros. O negro que se rebelava era o primeiro a ser vendido e mandado para o Rio Grande do Sul. No inverno, as temperaturas eram gélidas, muitas vezes abaixo de zero. Se não ficavam no espaço urbano, como em Porto Alegre, eram mandados para o campo. Lá, trabalhavam nas charqueadas, que exigia manejo de facas afiadas. Eles tinham que matar os bois a pauladas, tirar o couro, cortar, colocar o sal nas chamadas mantas de carne, algo muito bruto", explica a pesquisadora.
br>Além de Caldre Fião, outro líder do Partenon que teve forte atuação abolicionista foi o professor Apolinário Porto Alegre. O primeiro estudou Medicina no Rio de Janeiro, o segundo, estudou direito em São Paulo. Segundo Conforto, "estudar fora" influenciava os intelectuais que depois retornavam ao Estado trazendo novas ideias influenciados pelos ideais do positivismo europeu, entre eles a liberdade, por exemplo.
br>Apolinário publicou na revista do Partenon diversas peças de teatro e textos abolicionistas. Uma peça, em especial, foi a mais polêmica e chegou a ser proibida pela polícia. Os Filhos da Desgraça contava a história de amor entre uma senhora e um escravo (o contrário era mais aceito no Brasil colonial). "Com tal temática, Apolinário não poderia colocar a ação em Porto Alegre, porque provocaria a revolta de muitos chefes de família", explicou o historiador Moacyr Flores, em artigo de 1978, sobre a obra do autor.
br>Como a ideia de "proximidade" chocava demais os "chefes de família", o escritor optou por situar a trama em Salvador. "O drama está inserido na filosofia dos abolicionistas que por princípios éticos, além dos econômicos, não admitem a escravidão", acrescentou Flores sobre a peça.
br>Apolinário também liderou o projeto de aulas gratuitas noturnas para os pobres e libertos, explica a professora Maria Eunice Moreira, da PUCRS. Ainda de acordo com ela, enquanto ficcionistas, o tema da liberdade interessava os partenonistas de maneira abrangente, incluindo figura do gaúcho cavalgando livre pelos campos, o mítico "centauro dos pampas", que surge na literatura regionalista do período influenciada pelo Partenon.
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