Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Volume XIV
1909. Há 115 anos
Para isso, nos serviremos primeiramente, da cópia, que tiramos no mosteiro de São Bento, desta cidade, da sesmaria concedida a Amador de Medeiros, e onde se determina o ponto ocupado pelas terras de Bartholomeu Carrasco, também chamado Bartholomeu Rodrigo ou, mais propriamente, Mestre Bartholomeu e que é o ponto iniciado da sesmaria concedida ao padre Luiz de Gram para o colégio de São Paulo.
Pelos termos da concessão feita ao geral dos jesuítas, vê-se que a vila de Santo André ficava de Piratininga para o mar, tendo seu ponto iniciado em uns pinheiros que estavam próximos á casa de Mestre Bartholomeu.
Com o auxílio desses documentos, reconstituímos o caminho velho ou caminho dos índios desde Piratininga até o Ponto Alto, a meia légua do Rio Grande ou Jurubatuba, oferecendo assim a primeira prova de nossa opção sobre o ponto em que devia ter assento aquela vila.
A segunda prova, que também servirá para verificar o ponto determinado pela primeira, será dada pelo delineamento da sesmaria de Pedro de Góes, controlada pela sesmaria de Braz Cubas, e que tem como as sesmarias do mestre Bartholomeu e padre Luiz da Gram, um ponto divisório comum a todas e que é um capão de pinheiros.
A sesmaria de Amador de Medeiros, conforme se vê transcrita no Livro do Tombo do Mosteiro de São Bento, ás fls. 38 e 39, foi concedido nos seguintes termos:
Pedro Colaço cappm. em esta Capitania de São Vicente pelo senhor Martim Afonso de Sousa, capitão e governador dela por El-Rey Nosso Senhor, e do seu Conselho, etc., etc. Faço saber a quantos esta minha carta de sesmaria virem, em como por Amador de Medeiros, ouvidor que ora é em esta Capitania pelo dito senhor e morador em esta vila de Santos, me foi feita uma petição em que dizia que havia dezoito anos que nela era morador aonde sempre ajudou a sustentar com a sua pessoa e fazenda, assim dos inimigos como das mais coisas necessárias e sendo sempre pronto a sustentar muitos, trabalhos sem nunca haver dos capitães passados, nem uma terra de sesmaria, e como ele ora determina com ajuda de Nosso Senhor fazer fazendas, rossas e criações no campo, me pedia que pelas confrontações seguintes lhe desse de sesmaria para fazer a sua fazenda.
Que pedia um pedaço de terra que parte pelo rio de Tamandatiiba, perto de uma roça que João Roiz tem junto a Inhoaiva e dai correrá direto a um pico alto e redondo, que se mostra do campo estar cumiada alta como tudo se mostra de uma cruz que está no caminho que vai de Santo André para São Paulo que uma pedra de corisco quebrou, que se diz que João Ramalho o pôs alí; e di dito pico alto irá pela dita cumiada sempre até ir dar no caminho que vai para Jrobatiba; e partir com os herdeiros do mestre Bartholomeu que Deus tem e daí partindo sempre com eles até vir ter com terras de Pero da Silva e tornar a dar no dito rio de Tamandatiiba e por ele acima até donde começou a partir; e assim outro pedaço de terra que parte no Ipiranga com terras de Antonio Pinto e com os capões que vão para a banda de Jrabatiba e com terras de Antonio Rodrigues de Almeida e de Jorge Moreira para a banda de Piratininga e das outras bandas com campos e com quem de direito deva partir, porquanto essas terras estão devolutas e ele suplicante as quer possuir e fazer que rendam para El-Rey N. Senhor e para o senhor Martim Afonso de Sousa, do que lhe mandaria fazer carta do que receberia mercê.
O que visto por mim seu dizer e pedir ser justo e em saber ser assim tudo o que o dito suplicante em a dita petição relatava, lhe dou as terras conteudas em sua petição pelas demarcações em ela alegadas e declaradas, em nome do senhor Martim Afonso de Sousa ... E eu Antonio Rodrigues de Almeida, escrivão das datas as fiz por seu mandado, ano de 1571. Pedro Colaço. [Páginas 7 e 8]
A norte, para o lado do Ipiranga, confrontava com a outra sorte de terras que lhe foram concedidas e que ocupavam a região limitada pelo ribeirão da Utinga, rio Tamanduatehy, donde seguira a procurar, nas proximidades da estação da Saúde, o divisor de águas Pinheiros e Ipiranga pelo qual seguia até as cabeceiras deste último ribeirão e onde encontrava as dividas de Pedro da Silva com quem devia confrontar até o bairro dos Meninos ou Inhoaiva. [Página 11]
Dai para diante, em direção a Piratininga, haviam ainda três sortes de terras ocupadas por Salvador Pires, Antonio Pinto e Jorge Moreira que ficavam entre as matas do Jurubatuba, rio Tamanduatehy e a vila de São Paulo.
Neste último trecho, estas terras dividiam com a sesmaria de Antonio de Almeida que compreendia o triângulo limitado no lado de poente, pelo espigão que se estende da vila Mariana até o cruzamento da Avenida Paulista com a rua Santo Amaro e nos dois outros lados pelo curso do ribeirão Saracura, rio Tamanduatehy e ribeirão do Lavapés. Dentro dessa sesmaria estava assentada a vila de Piratininga.
Para o lado do oeste dessa vila, foram concedidas, em época aproximada á sua ereção, as sesmarias de Afonso Sardinha, Antonio de Proença e Fernão Paes, que compreendiam sem apreciável interrupção na continuidade, toda a região limitada pelos rios Tamanduathey, Tieté e Jurubatuba.
Ao mesmo tempo que foram concedidas estas sortes de terras, se faziam outras doações de sesmarias para pontos menos próximos de Piratininga. Assim é que João Ramalho, Manoel Preto e Salvador Pires obtinham concessão de terras que vinham desde a Penha até as proximidades do Ó; Jorge Moreira, Garcia Rodrigues, Domingos Luiz, Clemente Alvares, Martim Rodrigues, Domingos Simões, Belchior da Costa, João Rodrigues Castelhano, Gaspar Conqueiro, etc., possuíam sesmarias que abrangiam a zona da margem direita do Jurubatuba desde as proximidades da aldeia desse nome até a barra do Carapicuiba.
Nesse agrupamentos agrícolas foi que teve início a verdadeira vida rural da nova vila, fortemente animada pelo grande número de concessões de sesmarias que então se fez.
Entretanto, por um sentido ou talvez por desprendimento, as duas únicas corporações ai existentes, a municipalidade e o colégio, deixaram de pedir em tempo a demarcação das terras, precisas para seu rocio ou para sua fazenda; Antonio Rodrigues de Almeida tinha obtido por concessão a 22 de janeiro de 1560, os terrenos em cuja área estavam assentadas.
A Municipalidade conseguiu, posteriormente a essa data, obter cessão dessas terras pelo foral de Pedro Colaço, enquanto que o Padre Luiz de Gram, para não prejudicar aos moradores da vila, pediu a transferência das terras que lhe tinham sido concedidas em Piratininga para a zona que atrás identificamos.
Reconstruída a posição da sesmaria do mestre Bartholomeu e a situação dos pinhaes em cujas proximidades se achava a vila de Santo André, vejamos agora, se vindo em sentido oposto ao que seguimos, partindo do mar para Piratininga, iremos encontrar nos mesmos pontos do terreno o célebre capão de pinheiros, marco igualmente comum ás sesmarias de Pedro de Góes e de Braz Cubas. [Página 12]
Antes, porém, de transcrevermos os trechos daquela sesmaria, devemos declarar que encontramos no convento do Carmo de Santos, num maço de documentos que serviram a frei Gaspar para documentação de seus trabalhos históricos, os autos do processo que Braz Cubas, intentou contra os herdeiros de Pedro de Góes, a respeito dessa sesmaria que ai vem na íntegra, mas que difere, na parte referente ás linhas divisórias com o que vem transcrito nos Apontamentos de Azevedo Marques.
Segundo este último escritor, a sesmaria de Pedro de Góes foi concedida com a seguinte confrontação...
"Hei por bem lhe dar e doar as terras de Taquararira com a serra da Taperovira que está da banda onde nasce o sol com as águas vertentes com o rio Jarabativa, o qual rio e terras estão defronte a ilha de São Vicente donde chamam Goyayo, a qual terra subirá para a serra acima até o cume e dai a buscar o Capetevar, e dai virá entestar com o rio adiante que está da banda norte e por ele abaixo até ygoar por terra em outro rio que tem ai o outeiro e dai tornará dentro a um pinhal que está da banda do campo Gioapê e dai virá pelo caminho que vem de Piratininga, e entestar com a serra que está sobre o mar e dai por uma ribeira que vem pelo pé da serra que chamam Mororê e dai dentro no pé da serra de Ururay e virá dentro por este rio a entestar com a ilha Caramacoara e então pelo rio São Vicente a entestar coma dita serra de Taperovira donde começou a partir..."
No manuscrito de Frei Gaspar, vem descrito do seguinte modo:
"... Hei por bem dar e doar as terras de Taquaraopara como será de Tapirovira que está da banda donde nasce o sol com as águas vertentes com o rio Geribatiba, o qual rio e terras estão defronte da ilha de São Vicente onde chama Guassú a qual terra sairá por a serra acima até ao cume, e dai embeiçará com o Poterim e dai virá entestar com o rio adiante que está da banda do norte e por ele abaixo até yguar por terra com outro rio que tem ai o outeiro, dai tornará dentro a um pinhal que está dentro do campo Ijabapé, dai virá pelo caminho que vem de Piratininga entestar com a serra que está sobre o mar e dai por uma ribeira que vem pelo pé da serra que chamam Mororé e ai dentro ao pé da serra Ruirinai e virá dentro por este rio a entestar com a ilha Caramaquera e então pelo rio São Vicente tornará e entestar com a dita serra de Tapirovira donde começou a partir..."
O donatário fizera, concessão a Pedro de Góes das terras de Taquararira, situadas entre a ilha de São Vicente ou Guassú (Engaguassú) e o rio Jabaratyba como vem nos Apontamentos ou Geribatiba como reza o manuscrito e cuja grafia hoje é Jurubatuba também chamado Rio Grande ou Pinheiros.
O ponto inicial das divisas é a barra do rio Jurubatuba de Santos, bem distinto do outro de igual nome afluindo para as águas salgados no largo de Santa Rita. Dai ela subia pela serra da Taquararíra deixando á esquerda o vale do Quilombo e as águas de Jurubatuba. Ao chegar ao alto da serra do Paranápiacaba"ia buscar o Capetevar" ou embeiçar para o Poteriu, que pela disposição topográfica local deve ser o ponto mais alto do contraforte denominado Mourão, que como se sabe pe por onde desce a linha Inglesa e cuja maior elevação fica fronteira á estação do Alto da Serra.
Desse ponto a "entestar com o rio que está da banda do norte" (está da banda e não que core nesse rumo) o que é perfeitamente aplicável ao outro Jurubatuba atualmente conhecido com o nome de Grande ou Pinheiros. Segue por esse rio "abaixo até ygoar (?) por terra (?) em outra que tem ai o outeiro". O termo igoar ou ygoar, aparece ai talvez por erro do próprio original visto as duas cópias serem iguais.
No antigo português igoar era o termo que depois modificou-se para igualar, mas nesse sentido aquela palavra não teria cabimento, porque o outeiro maior que ai existe (Ponto Alto) não margeia rio algum que nesse ponto faça barra no Jurubatuba e com o qual pudesse ser comparado.
É verdade que esse outeiro serve de cabeceira ao rio dos Couros a que nessa época se dava o nome de Tamandatiiba, mas mesmo que se queira dar ao termo igoar a significação de frontear, as palavras "por terra" ficam sem sentido.
Quererá se referir ao rio Pequeno cuja confluência no Jurubatuba se dá cerca de uma légua do ponto onde esta rio fronteia o Ponto Alto.
É porém, certo que de um ponto qualquer do tio ela "tornaria dentro a um pinhal que está dentro do campo Gioapé" ou Ijabapé e que combinam ser os mesmos pinheiros de que fazem menção as sesmarias dos jesuítas e de mestre Bartholomeu, a que nos temos referido.
Dos "pinhais" seguia pelo caminho velho de Piratininga que como já vimos atrás quando nos referimos a sesmaria de Amador de Medeiros, passava pelo Ponto Alto, atravessando depois, dentre esse ponto e o pinhal, porém, muito próximo a este, o rio Jurubatuba.
Deste rio para diante, o caminho seguia em região de campo até a vizinhança da serra de Poço onde entrava na zona da mata que atravessava numa garganta entre essa mesma serra e a outra elevação denominada serra do Cubatão. Ai ganhava as cabeceira do ribeirão Perequê pelo qual descia até o porto das Armadias ou de Santa Cruz.
Frei Gaspar diz que entrava-se pelo "esteiro chamado Piraique o qual faz confluência com o rio Cubatão Geral pouco acima da ilha do Teixeira ... hoje chamam-lhe Piassaguera, nome composto do substantivo piassava que significa "porto" e do adjetivo áquera, "coisa velha" ou para melhor dizer "antiquada".
Essa anotação de Frei Gaspar fez com que Cândido Mendes e outros escritores pretendessem que o Piassaguera é o rio Mogy e que a estrada antiga atingisse o alto da serra pelo mesmo vale por onde hoje sobe a São Paulo Railway. [Páginas 13 e 14]
Se fosse o seu primitivo traçado, grande necessidade teria sido a de Mem de Sá transferindo-a para o vale do rio das Pedras. O próprio frei Gaspar querendo encarecer a impraticabilidade da serra diz que aquele talvez fosse o por caminho que tem o mundo, enquanto que os ingleses, trezentos anos depois, escolheram como única vereda por onde podiam levar a sua estrada de ferro o mesmo vale que não podia ser palmilhado pelos raros pedestres daquela época.
Demais, que razão poderosa poderia haver para forçar uma volta tão grande?
Felizmente ai está a sesmaria de Pedro de Góes cuja demarcação poderá se transformar em enigma aos que quiserem traçal-a pelo vale do Mogy. Felizmente subisse como magnífico atestado da sua existência o leito antigo da primitiva estrada, em parte francamente visível no campo Ijabapé hoje do Zanzalá, com seus profundos sulcos, alguns de mais de dois metros de profundidade e onde como padrão de sua antiguidade aparecem, no centro do caminho, madeiras de aparência tri-secular, como passareira, com diâmetro de cinquenta centímetros.
Por ela ainda transitam peças de gado que se desgarram das boiadas em Santos e que atingem o campo pelo vale do Perequê.
Além desta provas, poderemos apresentar uma outra e de cunho científico, assinalada num mapa raro pertencente hoje á Biblioteca Pública do Pará e confeccionado pelo cosmógrafo João Teixeira em 1640 e denominada - Descrição de todo o marítimo da terra de Santa Cruz, chamado vulgarmente o Brasil.
Nesse trabalho e na folha que corresponde ao porto de Santos, se vê assinalado em posição que se identifica perfeitamente a do Perequê, um ribeirão que traz a legenda de Esteiro do João Ramalho.
Do porto das Armadias, a linha perimétrica da esmaria continuava pelo Ururay ou Cubatão até a ilha deCaramaquara ou atual Casqueirinho, de onde pelo rio São Vicente seguia até o ponto inicial.
Antes de passarmos as divisas da sesmaria de Bras Cubas, voltaremos ainda um instante ao caminho velho para fizermos que das margens do Jurubatuba até as proximidades do Zanzalá, ele ia ora paralelo, ora cruzando os pontos atualmente seguidos pela estrada do Vergueiro. Dai para diante, seguia em direção diferente para procurar a garganta da serra do Poço. [Página 15]
A meu ver, o assento da antiga povoação de João Ramalho fica compreendido no âmbito de um círculo de quilômetro e pouco de raio, em torno da atual vila de São Bernardo. Em um estudo que, há cerca de seus anos, apresentamos ao Instituto, fixamos o local a cerca de quilômetro e pouco para o norte do núcleo da vila atual.
Machado de Oliveira, com pouca diferença, opina do mesmo modo, pois que afirma assentar hoje a vila de São Bernardo no terreno da primitiva povoação.
Frei Gaspar da Madre de Deus, que, de quantos escritos e cronistas se ocupam do assunto, foi quem mais documentos manuseou e melhores fontes teve, haurindo ainda na tradição mais viva, diz que o local da povoação ficava nas terras da fazenda de São Bernardo, de propriedade dos beneditinos, ordem a que ele pertencia.
João Mendes de Almeida e Azevedo Marques opinam, porém, diversamente, dando o assento da extinta povoação de João Ramalho como sendo á margem do córrego Guapetuba, vizinho da atual Estação de São Bernardo, na estrada de ferro, e cerca de uma légua para nordeste da vila do mesmo nome. A localização de Santo André nesse ponto não se compadece entretanto com o fato conhecido e por todos inconteste e é que a vila de João Ramalho ficava no "caminho do mar", isto é, no caminho velho de Piratininga para São Vicente, caminho ainda hoje de fácil reconhecimento e que não passava o Guapetuba.
Saindo de São Paulo pelo Ipiranga que vadeava próximo de sua confluência com o Tamanduatehy, o caminho velho do mar ia atravessar o ribeiros dos Meninos perto de Inhoahíba, e dai margeando o galho maior desse ribeirão, chamado então Tamanduatiiba, e hoje rio dos Couros, passava no lugar onde está a vila de São Bernardo, galgava as cabeceiras do dito Tamanduatiiba, a leste do Ponto Alto e daí já atravessando mato, descambava para o rio Jeribatiba, Rio Grande atual que, como se sabe, corre através a mata serrana; passava esse rio em direção á serra do mar e através do caminho do Gioapé, descia para o litoral pela gargante do Pereké ao esteiro do Ramalho, donde, pelo rio Cubatão, navegando os lagamares chegava a Santos ou a São Vicente. Tal é o traçado do primitivo caminho que de épocas imemoriais não era senão um trilho praticado pelo gentio, atravessando a mata, serrana na parte mais estreita e ganhando o campo de Piratininga na projeção dele mais avançada para o lado do mar.
O caminho velho, a partir do litoral, oferecia assim duas seções naturais bem distintas, a da mata serrana que se estendia desde o Perekê até as cabeceiras do Tamaduatiiba, nas vizinhanças do Ponto Alto e gargante do Botujurú e a do campo de Piratininga, desde aquelas cabeceiras até São Paulo. São as duas seções a que aqui chamaremos - zona da mata e zona do campo. [Página 28]
Era num ponto desse caminho que devia estar a vila de Santo André da Borda do Campo, segundo nol-o afirmam os cronistas e historiadores e, a julgar-se (ao meu ver, muito razoavelmente) pela denominação da própria vila, o assento devia estar á margem do campo de Piratininga, pois que borda do campo não tem outro significado, isto é, não tem como se interpretar senão como o lugar onde a mata termina e o campo começa.
Ora, o local atravessado pelo caminho velho de Piratininga, e situado á margem do campo ou á borda do campo não é outro senão aquele onde está hoje a vila de São Bernardo. Portanto, a extinta povoação de Santo André teve o seu assento nesse lugar ou mui próximo dele.
O sr. dr. Luiz Piza, um dos da comissão nomeada, pela segunda vez, pelo nosso Instituto para dizer sobre o assunto, chegou, porém, a resultado diverso: localizou a extinta povoação de João Ramalho no sítio Caveiras, entre o rio Jeribatiba ou rio Grande e a serra do mar, portanto, dentro da zona da mata, o que vale tanto como deixar sem significado o nome aliás tão expressivo de Borda do Campo, característico do local. Além disso, o sr. dr. Luiz Piza, assim opinando, desprezou um elemento de não menor valia, isto é, a distância de São Paulo e Santo André que os antigos fixaram em duas e meia para três léguas, enquanto o lugar Caveiras fica a mais de quatro.
O sr. Gentil Moura, cujos esforços no investigar são tão dignos de aplausos, examinando documentos antigos de sesmarias e percorrendo os lugares e estudando-os, acabou por assinalar o assento da extinta povoação de Santo André em um ponto á margem do Rio Grande, "... a uns quinhentos metros da estrada Vergueiro e um quilometro da ponte". Deu nos assim, a bem dizer - um "Santo André á Borda do Campo". Mas esta solução a que chegou o sr. Moura não satisfaz ás condições do problema histórico-geográfico pelas razões que passo a expor. Em primeiro lugar porque os documentos de que se serviu não dão para tanto, pois que, submetidos á crítica, o que deles mui logicamente se infere é que a povoação de João Ramalho não podia estar á margem daquele rio.
Esta circunstância é de si tão importante que nenhum cronista ou historiador a deixaria de referir. O rio Jeribatiba era o rio mais volumoso de quantos atravessava o caminho de Piratininga; era também o único navegável por pequenos barcos e canoas com que naqueles tempos se descia a corrente até o Tieté; era portanto uma artéria de comunicação para o interior e que não raro se utilizavam os moradores, e o fato de se achar a vila de Santo André em uma das suas margens não escaparia certamente aos escritores coevos ou quem dela nos fizesse a descrição. A Ulric Schmiedel que a visitou em 1552, quando passou do Paraguay para São Vicente e aos Jesuítas que dela se ocuparam em suas cartas, informações, ou em suas, cronicas, essa circunstância decerto não passaria despercebida. Demais, é preciso ter em consideração o modo por que naqueles tempos se redigiam os documentos ou cartas de sesmarias. Não havendo, como então não havia o hábito das medições prévias das terras que se concediam, á falta de dados de maior rigor, os escrivães, como as partes interessadas, se contentavam com citar nas escrituras os rumos pelos vizinhos contratantes ou por linhas naturais do terreno, como, por exemplo, um rio de maior caudal, acaso atravessado ou prolongado, uma cumiada de serra, um ponto alto ou morro vem visível, balizando então as linhas do perímetro que descreviam com simples indicações de objetos ou acidentes mínimos do terreno que nelas se encontram, ou seja uma barroca no campo, uma cruz quebrada, uma árvore de vulto como um pau de canoa, ou então um grupo de pinheiros, uma mancha de campo e, como circunstância mui digna de assinalar-se - "um trecho do caminho do mar"", fosse embora cortanto ou acompanhando esse caminho. Em tais condições, quando até de acidentes mínimos se lançava mão para assinalar um rumo, á falta de indicações mais precisas, pode-se acaso admitir que as escrituras de quatro sesmarias, quais as do Padre Luiz da Gram, Pedro de Góes, Bras Cubas e Bartholomeu Carrasco, todas, segundo o sr. Moura, com um ponto comum, na vila de Santo André, em um grupo de pinheiros, deixassem de citar a vila a vila ai tão vizinha, tão próximo, para só se referirem a esse grupo de pinheiros ou a um trecho do caminho do mar?
Que indicação melhor e de mais seguro alcance para assinalar numa região tão despovoada, pondo tão importante como esse que afeta a quatro sesmarias, do que essa mesma povoação de Santo André se por ventura fosse ai o assento dessa vila? [Páginas 29 e 30]
Excluído o Jeribatiba ou rio Grande que, como vimos das alegações de Braz Cubas, não atingia a "borda do campo" o trecho do caminho do mar onde podia ter existido a extinta povoação é certamente aquele entre o Ponto Alto e São Paulo, trecho que quase todo corria dentro do campo. Ora a partir de São Paulo, pelo Ipiranga, margeando o rio Piratininga, até o ribeirão dos Meninos, fronteiro a "Inhoahiba ("Nhu-ahiva", campo imprestável), ninguém jamais situou a vila de João Ramalho; o assento dela, portanto, não podia estar senão no trecho restante do dito ribeirão e o Ponto Alto. Ora, nesse trecho restante do caminho do mar, que aliás assinala ai o maior comprimento da sesmaria de Amador de Medeiros, havia um ponto ou localidade donde irradiavam outros caminhos e entre estes o que levava ao Jeribatiba e aldeia de Ibirapuêra, caminho que trilhara outrora Ulrich Schmiedel, vindo do Paraguay, e que na carta de sesmaria de Amador de Medeiros é cortado pela linha de perímetro, a qual depois de alcançar um "pico alto e redonto" (Ponto Alto), assinalado por uma cruz que um raio danificou e que João Ramalho ali plantara seguia pela cumiada ou divisor das águas "até ir dar no caminho que vai para Jeribatiba" e partir com os herdeiros de Bartholomeu Carrasco...". [Página 33]
Não padece dúvida que ficou escrito que a mata termina no Ponto Alto, na cabeceira do Tamandatiiva e o campo começava ali mesmo, naquele cabeceira e que de acordo com o outro trecho transcrito, a borda seria também, onde acaba e começa o campo. Entretanto, quer pela descrição que o dr. Sampaio faz, que pela que se vêm no seu esboço, Santo André fica localizado nas proximidades de São Bernardo; isto é a nove quilômetros do Ponto Alto que é a cabeceira principal do Jeribatiba ou do rio Couros, como hoje é chamado. [Páginas 68 e 69]
Finalmente, depois de gasto, do modo mais insensato, o fundo de mais de 200.000 cruzados, fornecido pelos acionistas e por subvenções da caixa real, resolveu-se, em vista dos prejuízos sofridos, dispensar a inteira companhia sueca. Uma Carta Régia de 27 de setembro de 1814, dirigida ao Conde de Palma, então governador de São Paulo, com as necessárias instruções mandou que os suecos fossem substituídos por uma companhia de trabalhadores alemães e que o major-engenheiro Varnhagen fosse investido da direção da instalação a construir com a minha assistência.
Transcrevo em seguida essa Carta Régia de 27 de setembro de 1814.
Conde de Palma do Meu Conselho, Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo. Amigo, Eu o Príncipe Regente, vos Envio muito saudar como aquele que Amo. Fazendo-se digno de uma particular e séria atenção o aumento do importante estabelecimento da fábrica de ferro de São João do Ypanema, na montanha de Vasassoyava, da Vila de Sorocaba, desta Capitania que Mandei criar pela Minha Carta Régia de 4 de dezembro de 1810, em benefício de Meus fiéis Vassalos e vantagem da agricultura, comércio e indústria destes Meus Estados do Brasil; e não tendo até agora correspondido os progressos desta fábrica ás providências que Fui servido dar para a sua verificação, mandando vir da Suécia, com grande dispêndio da Minha Real Fazenda, um diretor e uma companhia de mineiros fundidores, e fixando a maneira de se haver os fundos necessários, por meio de acionistas que voluntariamente concorreram para este estabelecimento, com o fim de participarem das grandes vantagens que dele devem resultar, e convencido Eu de que a continuação da sobredita companhia de mineiros, cujo prazo de contrato com que vieram da Suécia, se acha finalizado, seria nociva aos interesses da fábrica, não só por serem excessiva as condições por eles propostas para reforma do mesmo contrato, mas por ser reconhecido que muitos destes operários são pouco hábeis na sua profissão e convencido, igualmente, de que não convém de movo algum que o diretor Carlos Gustavo Hedberg continue a dirigir os trabalhos da fábrica, suposto devido ao seu caráter e mau método que Me tem seguido na construção dos fornos para a fundição do ferro; sou servido resolver que o sobredito diretor e a companhia de mineiros sejam dispensados, praticando-se a seu respeito o que se convencionou no contrato, relativamente ao seu regresso para a Suécia, podendo todavia ficar com alguns dos ditos operários que sejam mais peritos e que se reconheça ser conveniente, que ora fiquem reservados na fábrica. Para que não parem os trabalhos proceder-se-ha a um novo ajuste que pareça razoável, afim de continuarem ali ser empregados. Propondo-me Eu mandar vir da Alemanha alguns fundidores e refinadores hábeis para substituírem a sobredita companhia de Suecos, e porque Estou informado da necessidade que há, de se construírem dois fornos altos em outro local que seja mais adequado a este fim do que aquele em que existem os fornos atuais, para que a fábrica possa trabalhar em grande e produzir anualmente a quantidade de ferro em barra de que é suscetível um tal estabelecimento, Hei por bem ordenar-vos que encarregueis da direção desta boa obra o sargento-mor do Real Corpo de Engenheiros Frederico Guilherme Varnhagen, cujos conhecimentos afiançam, que ele saberá desempenhar como convém, podendo para o futuro ser ajudado nestes trabalhos pelo Tenente-Coronel do mesmo Real Corpo, Guilherme Barão de Eschwege, quando este puder ser dispensado das comissões do Meu Real Serviço de que ora se acha encarregado na Capitania de Minas Gerais. Para se efetuar esta obra indispensável para que a fábrica possa prosperar e cujas despesas, segundo o orçamento que Me foi presente, poderão montar a vinte contos de réis, dos quais deve deduzir-se a avaliação do que ali se acha já edificado e puder servir, convém procureis, com aquela desteridade e prudência que vos é própria, conseguir que aquele dos acionistas dessa Capitania que ainda até agora não entraram no cofre da fábrica com as segundas meias ações, hajam preencher o total da sua importância, persuadindo-os da necessidade destra medida, para que com mais brevidade se complete a construção dos fornos e para que em consequência possam eles gozar dos lucros correspondentes ás suas ações. Igualmente procurareis ver, se é possível adquirir novos acionistas para a dita fábrica, e vos Autorizo neste caso admitil-os debaixo das mesmas condições dos existentes, devendo vós fazer constar na Minha Real Presença o resultado desta diligência e o estado em que então se achar o cofre da fábrica, para Eu, por meio de adiantamentos, que Mando fazer pela Minha Real Fazenda ou por outros meios que Me parecerem convenientes, dar as providências afim de que não venham a faltar os fundos para suprir as indispensáveis despesas ordinárias da fábrica e as extraordinárias que se fizerem coma construção dos novos fornos. O que tudo Me pareceu participar-vos para vossa devida inteligência, e para logo hajam de ser despedidos os mineiros suecos com quem não se fizer novo ajuste para continuarem a ser empregados da fábrica, como acima fica dito, fazendo-os vós transportar para esta Corte a fim de seguirem daqui viagem para a Suécio, e vos Autorizo também para proceder a este ajuste e praticar tudo o mais que convém, segundo esta Minha Régia determinação, não duvidando Eu de que neste importante negócio Me dareis novas provas do zelo, inteligência e eficácia com que tanto vos tendes distinguido no Meu Real Serviço. Escrito no Palácio do Rio de Janeiro em 27 de setembro de 1814. [Páginas 95, 96 e 97]