' A Vila de São Paulo em seus primórdios – ensaio de reconstituição do núcleo urbano quinhentista - 01/01/2009 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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A Vila de São Paulo em seus primórdios – ensaio de reconstituição do núcleo urbano quinhentista
2009. Há 15 anos
(antiga Rua do Bom Retiro), indo adiante talvez pelo percurso da José Paulino (cujotrecho inicial, nas proximidades do Jardim da Luz, foi aberto apenas em 1890 à custada estrada de ferro inglesa, seguindo provavelmente o traçado do antigo caminho quepassava no local) e, aparentemente, com um pequeno desvio à direita, prosseguindopela Rua da Graça. Correndo sempre na mesma direção, deveria atingir a margemesquerda do Tietê na altura do Bom Retiro. Justamente nesse ponto, em zonainundável, desaguando no Tietê, sabemos ter existido um ribeiro de volumeinexpressivo, do qual um levantamento hidrográfico paulistano datado de 1889,intitulado Planta Geral das Nascentes, Vertentes e Curso de Águas no Perímetro daCidade de São Paulo, hoje depositado no Arquivo Histórico de São Paulo, omite-lhe onome sem, porém, deixar de assinalar sua presença. Seria esse pequeno curso d’águao esquecido Ribeiro Piratininga?

Numa escritura pública, datada de 30 de maio de 1589, em que é feita a descrição dos limites das terras cedidas por Brás Cubas (1507-1592) aos frades carmelitas, pode-se inferir, de determinado trecho, esse mesmo percurso. Damos abaixo o teor parcial do documento. Entre colchetes iremos comentando por partes os mencionados limites:

o caminho de Santo André para Piratininga vinha do curral de Aleixo Jorge pelo mesmo caminho que vem pela ponte grande em Tabatinguera [como já vimos, e veremos novamente, esse é o caminho velho do mar, trecho do antigo Peabiru, que acompanhava o traçado da Rua da Mooca, passava pela Rua Tabatinguera e seguia pela atual Rua do Carmo] e dahy atravessava pela villa vindo pela rua direita ate onde estava o mosteiro dos padres da companhia [essa rua “direita” parece seguir o trajeto de um segmento de rua sem denominação específica incorporado ao Pátio do Colégio, segmento este que hoje vai da Rua Floriano Peixoto, em frente à Caixa Econômica Federal, sita na Praça da Sé, até ao Pátio do Colégio; na embocadura inicial dessa via estaria localizada a porta da vila transposta por aqueles que chegavam do litoral] e dahy vindo pela porta que foi de Affonso Sardinha [saída provavelmente localizada na altura da esquina da Rua Anchieta com Rua 15 de Novembro] e da qual rua foi de Rodrigo Álvares e Martim Affonso [essa via, rua de Martim Afonso, nome de batismo adotado pelo índio Tibiriçá, em nossa opinião, não poderia ser jamais a Rua São Bento, como afirmava Frei Gaspar – porque, como veremos adiante, a Rua São Bento, ao contrário do que dizia o frade beneditino, só teria sido aberta, na verdade, no século XVII –, mas talvez estivesse representada por uma trilha que seguisse pela Rua 15 de Novembro e trecho inicial da atual Avenida São João, antiga ladeira desse nome; isso, se não acompanhasse o traçado, justamente, da Rua Álvares Penteado, orientada, como visto, para o Ribeiro Anhangabaú] e dahy a sahir a aguada do ribeiro e atravessando o ribeiro do Anhangobai pelo mesmo caminho que hoje por elle se servem os moradores daquela banda de Piratininga ate defronte a barra do Piratinin onde dava no rio grande [caminho de Piratininga, que, após a transposição do Anhangabaú no local chamado Acu, se iniciava na Rua do Seminário, e cujo trajeto, descrito anteriormente, terminava na barra que o ribeiro daquele nome formava ao lançar suas águas no Rio Tietê] (apud SILVEIRA CAMARGO, 1953, p.114)

Após a transferência de Tibiriçá para perto da casa jesuítica de São Paulo, aprimitiva aldeia indígena de Piratininga parece ter entrado em decadênciarapidamente. Como Maia Fina notou com propriedade, o caminho que levava a essaantiga aldeia de índios nunca é mencionada entre os mais importantes da vila nas Atasda Câmara dos primeiros anos, sendo registrado somente como uma via de alcancelocal nas cartas de datas de terra concedidas entre o Quinhentos e o Seiscentos. Fatoque revela a crescente indiferença demonstrada pelos paulistanos por uma região cujonome simplesmente se esvaeceria ao longo dos próximos 170 anos.

Se em meados do século XVIII a paragem de Piratininga já havia perdido seu topônimo original, a senda que ia até ela, ou, antes, que por ela passava, continuou, como visto, sobrevivendo sob outra denominação. Tornou-se o caminho de Nossa Senhora do Ó (CARTAS DE DATAS, v.6, p. 54), devendo, após atingir a margem esquerda do Tietê, virar à esquerda e acompanhar o rio a jusante, até o ponto em que o atravessava por meio de uma ponte, de acordo com uma menção documental de 1741. A etapa desse caminho até a ponte, ao que parece, já estava com pouco uso na segunda metade do século XVIII, havendo sido preterida pelo caminho de Jundiaí, que saía do Piques e se bifurcava para os lados de Nossa Senhora do Ó na região da Água Branca.

O progressivo desinteresse da população pelo velho caminho de Piratininga é,ademais, confirmado por alguns documentos curiosos. No volume de Cartas de Datasde Terra referentes aos anos de 1833 a 1835, faz-se menção a uma questão entre aCâmara e o proprietário da Chácara do Bom Retiro, Tenente-Coronel Jerônimo Joséde Andrade (C.D., v.11, p. 125-130). A edilidade pretendia recorrer à Justiça, exigindoque para benefício do público o proprietário da chácara reabrisse uma passagem quedava na margem esquerda do Rio Tietê (em nossa opinião, a isso fora reduzido oantigo caminho de Piratininga). Os pareceres então emitidos por especialistas semostraram, contudo, favoráveis a Jerônimo de Andrade, pois a Câmara não conseguia [Páginas 20 e 21]

provocada por um dos donos de uma propriedade rural por ela atravessada, extinçãoessa sem dúvida causada pela busca de privacidade por parte do governador que nãoqueria ser importunado por estranhos que iam à margem do Tietê praticar algumasatividades então corriqueiras, tais como, a pesca, a cata de gravetos e o uso da várzeapara pasto de animais de tropa (C.D., v.11, p. 143-146). Pressionada ou não pelo Governador Franca e Horta, o certo é que a Câmarahavia permitido o fechamento da passagem, situação de resto mantida por todos osposteriores proprietários da chácara. E a isso a população acedeu passivamente, semdúvida porque para ir a Freguesia do Ó já fazia uso de uma estrada mais cômoda, ouao menos mais bem conservada, que, partindo do Piques, passava pela Água Branca(estrada de Jundiaí e Campinas); ou se servia de uma variante, o caminho do Araçá(D’ALINCOURT,1953, p. 43-44). Caso em que, o viajante devia subir a atual Rua daConsolação (Peabiru), e na altura do cruzamento da Avenida Paulista, tomar à direita,encaminhando-se para a estrada do Araçá, atual Avenida Dr. Arnaldo. A variante seprolongava a partir daí pelas Avenidas Heitor Penteado e Cerro Corá, seguindo pelaRua Belmonte até atingir a estrada de Jundiaí e Campinas na altura da ponte doAnastácio. Nos meados do século XIX, um pequeno trecho do velho caminho de Piratiningacontinuava a conduzir à Chácara do Bom Retiro, aparecendo nas plantas da cidade daépoca interrompido bem defronte dos edifícios dessa propriedade, que depois deFranca e Horta, pertenceu, sucessivamente, ao Brigadeiro João Jácome de Baumann,a seu genro Tenente-Coronel Andrade, a seguir ao filho deste, Dr. José Maria deAndrade, ao Dr. João Ribeiro da Silva e a Manfred Mayer, loteador daquelas terras emfins do Oitocentos. Cartas de datas de terra concedidas pela Câmara Municipal em 1809 e em 1817referem-se a esse trecho da antiga trilha como o caminho, ou corredor, que ia “emdireitura” à chácara do General Franca e Horta ou como a estrada que de SantaIfigênia ia para a chácara do Coronel Baumann (C.D., v.6, p. 101-103 e 199). [Página 23]

O termo e o rossio de São Paulo

Foi o comandante da primeira expedição colonizadora portuguesa ao Brasil,Martim Afonso de Sousa, quem implantou a organização municipal no País, a partir dacriação da primeira vila brasileira, São Vicente, em 1532. Ao chegar à América, veioinvestido pela autoridade real no direito de erigir em municípios as povoações quedesejasse, desde o que fizesse dentro dos padrões das instituições municipaisportuguesas.
No Reino, o município, ou antes o concelho, tinha competência administrativa ejudiciária; na prática, assumia também a dimensão política, que com o tempo foi aospoucos sufocada pelo poder absoluto dos reis. Na América portuguesa, ao contrário,durante o período colonial, a atividade política do município foi bastante ampla emrazão da omissão do poder real, ou melhor, diante das dificuldades que esse poderenfrentava para se fazer presente em terras tão distantes.A função administrativa das Câmaras Municipais quase sempre esbarrava nafalta de recursos das vilas, mormente na parte sudoeste do Estado do Brasil, por issoadministrar o município significava, em geral, administrar a indigência. Os moradorestinham de arcar com trabalhos diretos compulsórios, principalmente na conservaçãode caminhos e pontes, o que faziam em geral, por intermédio de seus escravos. Osbens municipais de presença obrigatória ou, ao menos, indispensáveis para odesenvolvimento da vida comunitária, tais como, obras de fortificação, caminhos,pontes, fontes ou chafarizes, Casa da Câmara e Cadeia, pelourinho, forca, igrejamatriz, além de açougue, mercado etc., eram construídos, quando o eram, de formaprecária, com muito sacrifício e parcimônia, mediante o lançamento de fintas, tributosproporcionais aos rendimentos de cada morador. Tudo na colônia era moroso e difícil,sobretudo em função das particularidades que o processo de colonização do Brasilapresentou ao longo dos primeiros séculos. Para que uma vila fosse instituída em Portugal e suas possessões era necessárioter “termo e jurisdição, lliberdade e insignias”, conforme os costumes lusitanos. NaMetrópole, até o século XVI, eram emitidas Cartas de Foral, atos régios que elevavamas povoações à categoria de vilas, sedes de concelho (municipalidade, no tempo daColônia). Esses atos continham as normas que disciplinavam as relações dosmoradores entre si e com a entidade outorgante, além de fixar rendas e foros a serempagos pela população da nova vila à autoridade real. No Brasil, havia as provisões25emitidas no início pelos donatários das Capitanias [Página 24]

cadastrava nem media os chãos que concedia aos particulares, a identificação dasterras doadas e sua medição ficava sob o total encargo dos moradores: do peticionárioe dos vizinhos. Se esses últimos se considerassem prejudicados pela nova concessão,deveriam reclamar e, em conseqüência, o concessionário teria de delimitar sua datamais adiante, em local considerado ainda devoluto. O cadastramento municipal das datas doadas só se deu a partir de uma épocamuito tardia. Apenas em 1888, no ocaso do Império, é que foi aprovada uma indicaçãopara que a Câmara voltasse a doar terras, já que havia um ano que essa atividade forasuspensa. O engenheiro municipal deveria a partir de então demarcar as datasconcedidas em planta, com o registro da data de doação, nome do concessionário eárea do terreno dado (ATAS, 1888, p.216). Isso acontecendo poucos anos antes daextinção do rossio como instituição municipal (1891). Numa sociedade de caráter estamental-escravista, hierarquizada e com nítidase legítimas desigualdades entre os estados, onde predominava a ordem patrimonial,como é o caso da sociedade brasileira durante o período colonial, eram os poderososda terra, os chamados homens bons, constituídos de mercadores, proprietários emoradores mais abastados que possuíssem bens na vila e aí morassem, que tinham aganhar com uma situação territorial indefinida, porque faziam uso de seu prestígio oude seu poder de intimidação para obter as melhores terras, com a localização edimensões desejadas, sem que o interesse público conseguisse atingi-los em suasvantagens particulares (lembremo-nos que no Antigo Regime as camadas inferiores,compostas de oficiais mecânicos e peões, não tinham sequer direito a assento naCâmara Municipal). Essa dedução nos ocorreu a partir da análise do período históricoposterior, referente ao Império (ver CAMPOS, 2004, p. 192-193, 205-206; CAMPOS,2008, passim), mas estudos recentes têm procurado identificar indícios de que otráfico de influência também existia dentro da Câmara de São Paulo durante operíodo colonial. A esse respeito consulte-se, por exemplo, o texto A câmara municipale a doação de terras em São Paulo colonial (1562-1765), de autoria de Fernando V.Aguiar Ribeiro, apresentado no Simpósio de Pós-Graduação em História Econômica,realizado na FEA-USP, São Paulo, em 2008. Não admira, portanto, que trinta e seis anos depois da fundação da vilapaulistana, as autoridades municipais solicitassem a contratação de profissionais que pudessem resolver as inúmeras questões de limites de terras surgidas entre vizinhos(TAUNAY, 120, p.103-104; ATAS, v.1, p.390-391). Além da inexistência de mediçõesrigorosas por motivos de deficiências técnicas e de falta de qualificação de pessoal, ospróprios moradores abusavam da boa-fé alheia, deslocando marcos das terras quelhes eram próximas ou alargando valos que cercavam seus terrenos para aumentar aspropriedades à custa das terras de outrem ou avançar sobre as terras públicas,incorporando-as ao respectivo patrimônio privado (ATAS, v.1, p. 356-357 e 502).

Sabemos por diversos documentos e testemunhos que a elevação da vilaimpunha a realização de uma cerimônia específica. O donatário perpétuo, ou seusubstituto, na presença de outras autoridades e do povo, fazia a leitura da provisãoque fundava a vila, ao pé do pelourinho, em geral erguido no logradouro maisimportante da povoação. O foral e ata da fundação eram recolhidos ao cartório local eno mesmo dia o capitão-mor constituía oficiais e justiças para reger e governar a vila(MARQUES, v.2, p.120).

Conforme nos conta o historiador Taunay, a primeira demarcação do rossio paulistano se realizou durante o triênio de Pedro Colaço (1571-1573), lugar-tenente do donatário Martim Afonso de Sousa (TAUNAY, 120, p.9-100). Na ocasião, Colaço atendeu a uma petição dos oficiais da vila, que solicitavam fosse concedida uma área de terra comum, medida por meio de cinco tiros de besta, dados ao “derredor da vila” (isto é, como veremos, a partir do centro da área urbanizada em direção aos quatro pontos cardeais). O recurso aos tiros de besta se justificava, porque naquele tempo, numa região em que tudo faltava, devia constituir a maneira mais prática de proceder à medição de grandes distâncias em meio a campos cheios de obstáculos físicos naturais. Como o tiro desferido por esse tipo de arma, segundo os entendidos, atingia de 370 a 380 jardas, que dizer em torno de 338 a 347 metros, podendo alcançar até mais de 500 metros no caso da balestra tardo-medieval, consideramos que o rossio paulistano solicitado a Colaço teria em tese o formato de um quadrado cujo lado deveria medir 10 tiros de besta ou algo em torno de 3500 ou 4ooo m de comprimento. A área concedida pelo locotenente do donatário, contudo, não chegou a ser demarcada na época da concessão.

Da primeira medição, datada de 1598, só se conservam os autos relativos à implantação de dois marcos, um no caminho de Virapoeira, ao sul, e outro no caminho de Pinheiros, a oeste. Os outros dois autos, relativos aos marcos posicionados ao norte e a leste, sem dúvida se perderam (R. G.,v.2, p.110).

A doação das terras patrimoniais feita por Colaço, em nome do donatárioMartim Afonso de Sousa, era “para dadas, para casas e quintaes, o rocio do concelho,e para tudo aquillo de que o povo tivesse necessidade”, com a condição de serem“forras de todo tributo somente dizimo a Deus com a condição da sesmaria”, condiçãoque não seria respeitada pela Câmara paulistana até fins do século XVIII. Como tinhapontos de referência bem vagos e a edilidade se perguntasse desde 1594 onde era orossio da vila (ATAS, v.1, p. 489), resolveu-se quatro anos mais tarde realizarbalizamento com a implantação, à beira de cada um dos principais caminhosorientados para os pontos cardiais, de um marco que parecia com uma pedra “deamolar, com a cabeça para baixo” (R.G., v.2, p.107-109) (fig.3). Os limites do primeiro rossio concedido (fig.4) comporiam, como dissemos,uma área quadrada (ou aproximadamente quadrada, já que, dadas as circunstânciasde época, seria quase impossível conseguir algum rigor geométrico nesse tipo demedição), área cujo perímetro, descrito em sentido horário nos dois autosremanescentes, interpretamos a seguir: principiava na barra do Rio Tamanduatei,indo em direção a montante desse rio; passava pela Ponte Grande da Tabatinguera,até atingir, ao sul, a foz do primeiro regato, ou ribeiro, tributário do mencionado rio,sem dúvida o Lavapés (isso significa que a distância entre a barra original doTamanduateí e a desembocadura do seu primeiro afluente, o Lavapés, nos dá adimensão aproximada do lado do quadrado do rossio então adotado, que parece serde pouco mais de 4000 m, não muito diferente dos dez tiros de besta avaliadosanteriormente, com uma margem de erro compatível com o processo falho demedição então adotado). Do Lavapés, o perímetro do rossio cortava rumo a oestepelas terras de Jorge Moreira, até alcançar o Caminho dos Pinheiros (AvenidaRebouças, pouco além da antiga portaria do Hospital do Hospital de Isolamento, atualHospital das Clínicas), no ponto em que talvez se situasse a tapera de Francisco Pires.O auto relativo à implantação do marco posicionado a oeste cita a “cabeça [oucabeceira] de um regato”, que uma vez indo por ele abaixo ia dar no Rio Grande (Anhembi ou Tietê). Esse regato era muito provavelmente o Pacaembu, mas jamais oRio Pinheiros como aventado por Afonso Taunay (1920, p. 100) e por Washington Luís [Páginas 30, 31 e 32]

localizavam-se, ao norte (caminho do sul de Minas Gerais), logo adiante da atualPonte das Bandeiras; a leste (caminho do Rio de Janeiro e Minas), na região até oinício do século passado conhecida por Marco de Meia Légua (nas proximidades daesquina da Avenida Celso Garcia com Rua Catumbi, no atual bairro do Belém); ao sul(Caminho de Santos), junto ao córrego Ipiranga, e a oeste (Caminho de Sorocaba), naaltura da esquina da Avenida Rebouças com Alameda Jaú, pouco além do espigão daatual Avenida Paulista (GIUSTI, 1958, p.3- 15). [Página 37]

Tal como teria acontecido com os marcos de 1598, os madeiros cravados em1769 representavam os pontos médios aproximados dos lados de um quadriláteroideal que continha as terras comunais paulistanas (a conformação da área do rossioé deveras importante, sobretudo na medida em que a maioria dos historiadorescontemporâneos que estudam o regime de propriedade das terras urbanaspaulistanas dos períodos colonial e imperial continua a desconhecer esse fato, que seconfigura básico, e insistem em dizer que o rossio tinha uma configuração circular, oque não é correto). Notemos que em 1769 não foi executada planta desse patrimônio,como teria sido oportuno que o fizessem; somente as peças de madeira fincadas àmargem dos caminhos serviram de referência aos vereadores e aos demaispaulistanos para a localização dos chãos municipais, onde a Câmara estava autorizadaa conceder datas para habitação e cultivo e onde podiam ser designados logradourospúblicos ou áreas de servidão pública em benefício do povo da cidade. Essas áreas deservidão tinham múltiplas serventias durante os séculos XVIII e XIX: serviam depastagens para o gado provindo do sul do País, para as tropas que cruzavam a cidadee para os demais animais locais; para o abastecimento de água para os moradores,viajantes e animais; para a retirada de lenha e de materiais de construção comomadeira, barro, areia de mina e tabatinga (no caso do Morro da Tabatinguera,também chamado do Saibro). Durante todo o período do Império brasileiro persistiu dentro das instituiçõesmunicipais o conceito de rossio, termo tradicional então caído em desuso esubstituído preferencialmente pelo de “terras do patrimônio público municipal”. Aépoca, no entanto, era de transição para o sistema capitalista, em que as propriedadescomunais das aglomerações urbanas estavam sendo privatizadas em outras partes domundo ocidental. Na Espanha, por exemplo, então sob o governo liberal, deu-se, em1836, o início de um tumultuado processo de privatização dos bens de mão-morta,conhecido pelo nome de Desamortização. A partir do segundo governo de BaldomeroEspartero (1793-1879), o ministro da fazenda Pascual Mandoz desencadeou uma novaetapa desse processo de privatização. Em 1855 foram postos à venda todos os bens doEstado espanhol e os da Igreja que se achavam nesse país. Também os próprios e oscomuns pertencentes às povoações foram a partir de então levados a leilão, de acordocom uma sucessão de fatos que se arrastaria até 1924. Enquanto isso, aqui em São [Página 38]

o taipal em uso na cidade não tinha mais de 0,88 m de alto (TAUNAY, 1951, v.2, 2ªparte, p.18). Os muros da vila, com certeza, não teriam características muitodiferentes destes últimos obstáculos defensivos. Apesar de extremamente diminuta, a povoação devia estar provida de aomenos duas portas: a mais importante, recém-aberta em 1563, ou antes, talvez refeitanesse ano, sobre a qual haviam construído uma guarita, era a Porta Grande (ATAS,v.1, p.22 e 38), abertura que daria passagem, provavelmente, ao caminho do Mar.Deste caminho partiria, logo depois de atravessada a Ponte da Tabatinguera, umramal à esquerda, de trajeto hoje impossível de reconstituir, que se ligava aocaminho que seguia para o Vale do Paraíba. Na altura da Mooca, outra velhainterligação se separava do caminho do Mar, tomando a direção norte (AvenidaÁlvaro Ramos), paralelamente ao Ribeirão do Tatuapé (por sobre o qual corre hoje aAvenida Salim Farah Maluf). Esta trilha também se ligava ao caminho que, rumandoem direção ao Vale do Paraíba, passava pela antiga Ururaí (São Miguel Paulista) e pelaaldeia indígena situada na futura freguesia de Penha de França. Acompanhando oleito das atuais Avenidas Celso Garcia, Amador Bueno da Veiga e São Miguel, ocaminho seguia por Bongy ou Mongi, aldeia indígena ocupada por índios tupi inimigosdos portugueses (ATAS, v.1, p.476), atual Mogi das Cruzes, indo em direção ao Vale doParaíba, de onde haviam partido ataques dos índios contrários em 1562 (LEITE, v.3,p.550). A outra porta da vila era, supostamente, a que permitia uma saída cômodapara o sertão (dando para a atual Rua 15 de Novembro), de onde também vinhamataques de índios contrários (ATAS, v.1, p. 394). Muito possivelmente era essa a saídaidentificada numa escritura de 1589 como “a que foi de Affonso Sardinha” (JORGE,1999, p. 41), morador citado como um dos responsáveis em 1584 pela manutenção docaminho de Pinheiros (ATAS, v.1, p. 238), encargo recebido devido ao fato de possuirterras em Embuaçava, depois dadas ao filho de mesmo nome.

As residências dos portugueses logo ultrapassaram os limites dos murosdefensivos, esparramando-se com rapidez pela região circunvizinha – problema que aVila de Santo André também tivera de enfrentar no início de sua formação, conformeas Atas desta vila datadas de 1556. Nos papéis camarários paulistanos muitas são as alusões a casas e construçõesutilitárias adossadas aos muros protetores pelo lado de fora e também a aberturas [Página 45]

Segundo Leonardo Arroyo, Francisco Nardy Filho acreditava que amatriz ficara pronta em 1612, porque a partir dessa data não havia mais nenhumaalusão nas Atas da Câmara a obras nesse edifício paulistano (ARROYO, p.314).Isso, porém, não é verdade. Já no ano seguinte os oficiais faziam menção ànecessidade de se retomarem as obras da matriz. E na sessão realizada em 11 de abrilde 1620, o vereador Garcia Rodrigues justificava sua ausência com o fato de andarocupado com a armação da igreja. O que significa que oito anos depois a matriz aindanão tinha sua cobertura completamente pronta! (ATAS, v.2, p. 331 e 425)

Planta atribuída a Alexandre Massaii), hoje depositada na Real Academia de la Historia, Madri (1616/1617)

A mencionada planta atribuída a Massaii pelo Professor Nestor Goulart Reis Filho merece minuciosa análise e interpretação, por constituir, sem dúvida nenhuma, a mais remota representação iconográfica do primitivo assentamento paulistano (fig.22). Embora se trate de documento sumário e esquemático, com notações por vezes confusas e incorretas, temos de reconhecer que a interrelação de distâncias existente entre seus elementos constitutivos não foi estabelecida de modo completamente aleatório.

Há decerto erros bastante grosseiros de orientação o convento de São Bento, por exemplo, que até hoje se mantém no mesmo lugar, aparece no mapa situado a poucos passos adiante do colégio jesuítico, imediatamente à direita da Igreja da Misericórdia, edifício que, por sua vez, deveria ter sido locado mais a nordeste.

Assim, observamos que, depois de galgar a “serra de parana piacaba” [sic], e atingir talvez o ponto mais alto onde, ficamos sabendo, havia um pequeno cruzeiro, o caminho procedente do litoral atravessava sucessivamente três cursos d’água, o Rio Pequeno, ou “Garaiba ti miri” [sic, por Jeribatiba-mirim], o Grande, ou “Garaiba ti guoasu” [sic, por Jeribatiba-guaçu], e o “Rio Tamandoatibi” [sic], cujo nome é curiosamente traduzido no mapa (e provavelmente de maneira errônea) por “aguoa de rapoza”. Este último curso d’água aparece transposto duas vezes; a segunda ultrapassagem sendo feita por meio de uma ponte que só pode ser a da Tabatinguera. [Página 73]

À mão esquerda da encosta que conduzia a São Paulo de Piratininga, reparamos a seguir num cruzeiro, que, julgamos, devia ficar em frente do local onde fora erguida a forca em 1587 (ATAS, v.1, p.315), à direita do viandante que chegava à Piratininga, no alto do Outeiro da Tabatinguera, mais tarde conhecido como Morro do Saibro. O odiado instrumento de execução de pena capital, seguidas vezes derrubado pela população piratiningana, seria depois, como veremos, transferido para o futuro Largo da Liberdade.

Em seguida, identificamos uma série de distorções de orientação na reprodução do percurso que o Caminho do Mar fazia nas imediações da vila. Depois de subir a Ladeira da Tabatinguera, o recém-chegado deveria virar para o norte, no intuito de entrar na futura Rua do Carmo (essa mudança de orientação quase não é perceptível no mapa que estamos observando). Passaria então pelo convento dessa denominação, à margem direita da via, atingindo logo a seguir o Mosteiro da Companhia (simplesmente identificado em planta com o nome de Iesus).

No documento gráfico aqui analisado aparecem corretamente representados na parte traseira do mosteiro da Companhia os muros da cerca jesuítica que, sabemos, atingiam a margem esquerda do Tamanduateí. Em contrapartida, a matriz, naquela altura ainda não totalmente concluída, mostra-se erradamente posicionada, pois, deduz-se, sua posição original era muito próxima à da antiga Sé paulistana demolida em 1912. Nesse caso, a matriz deveria ter sido mantida a oeste, sim, porém em ponto abaixo do colégio de Jesus e não imediatamente à sua frente, à esquerda, como aparece no desenho. Um pouco acima da matriz, vemos a Igreja da Misericórdia, e, mais além, temos a ermida de Santo Antônio, sequência de construções que estaria correta se estivesse sido orientada para oeste e não para o norte, como se observa.

Na região correspondente ao atual bairro do Brás, estendiam-se os famosos campos piratininganos. Por eles se espalhavam várias “fazendas”, a respeito das quais o autor da planta faz a seguinte observação: “Serquas de taipa de Pilão e seo vallo asi tem todas ellas co suas arvores e vinhas dentro”, lembrando-nos o que relatou o Padre Fernão Cardim, em 1585, sobre a fartura dos pomares paulistanos, onde marmeleiros, figueiras, laranjeiras e muitas vinhas produziam abundantemente, fazendo o planalto piratiningano parecer “um verdadeiro Portugal” (apud PREZIA, p.311).

A crer no que a planta nos mostra, os muros protetores dessas quintas seriam desprovidos de entradas, sendo feito o acesso por meio de precárias escadas de mão, facilmente eu removíveis, solução engenhosa que procurava garantir a proteção contra os ataquesdos indígenas provenientes de Mogi e do Vale do Paraíba, ainda frequentes nos últimos anos do século XVI. Neste caso, o documento talvez pretendesse retratar não propriamente a região leste imediatamente contígua à vila, como se vê, mas uma zona mais recuada, constituída talvez pelo Tatuapé e Piqueri.

Ainda na margem direita do Tamanduateí, observamos um intrigante grupo de caçadores de perdizes nativas (enapupês, Rhynchotus rufescens), aves características dos campos e cerrados, habitualmente caçadas com cães (tiro ao voo), e, um pouco acima, mais ou menos onde deveria iniciar a região do Guarepe, vemos bois vagueando livres pelo pasto, coisa que de fato ocorria nas campinas paulistanas, pois conforme o Padre Cardim estavam elas “cheias de vaccas”, às quais se juntava por vezes gado bravio, que deveria ser imediatamente retirado do local por ordem dos vereadores (ATAS, v.1, p.385) . [Páginas 74 e 75]

Do outro lado da vila, na parte do curso superior do Anhangabaú (Anhagavabahi), uma inscrição nos dá o significado em português do nome desse ribeiro, “aguoa do Rosto do diabo”, numa referência à crença nativa de ocorrerem nesse local aparições do espírito malfazejo Anhangá (PREZIA, p.82). E, em suas margens, na altura, mais ou menos, da atual intercessão das Avenidas Nove de Julho e 23 de Maio, descobrimos instalados dois moinhos d’água, um em cada margem, pertencentes a “Mel Joam” (Manuel João), destinados sem dúvida a moer trigo, produto agrícola muito abundante na São Paulo daquele tempo, segundo o depoimento do mesmo Padre Cardim.

Este detalhe configura-se da máxima importância, pois, é por meio dele que podemos datar com bastante precisão a planta ora sob análise. Em 2 de fevereiro de 1616, os vereadores atenderam a solicitação de um certo Manuel João (certamente o mesmo Manuel João Branco, rico morador de São Paulo que no final da vida decidiu ir a Portugal beijar a mão do Rei D. João IV e presenteá-lo com um pequeno cacho de bananas feito de ouro, a que se refere o historiador Pedro Taques de Almeida Pais Leme, 1714-1777, em sua Nobiliarquia Paulistana). O peticionário solicitava datas de terra para construir dois moinhos, numa paragem que hoje seria impossível de identificar se só pudéssemos contar com a transcrição confusa feita pelo escrivão da Câmara:

“queria fazer dous moinhos em hua agoa saindolhe do caboulo a outra parte fazer houtro da banda dalem de bartolameu glz as quais Agoas nacem na tera diguo tapera de Diogo glz lasso da banda dos pinheiros hu da banda dalem houtro da banda de bartalomeu glz e terras pera hu quintal” (ATAS, v.2, p.375-377).

Como a carta de data de terra concedida vem datada do dia 2 de fevereiro de 1616, deduzimos que a confecção do documento gráfico aqui analisado, registrando os moinhos já construídos, só pode ser posterior de vários meses a essa época. Se supusermos que esses engenhos demoraram cerca de um ano para ficar prontos, teremos de admitir que a planta em questão só poderia ter sido executada a partir de fins de 1616.

Como o Professor Nestor (p. 231) afirma que no ano seguinte Massaii já se encontrava de volta à Europa trabalhando em Portugal, mais precisamente no Algarve, somos induzido a concluir que a planta em exame tenha sido executada ou em fins de 1616 ou logo nos primeiros meses do ano seguinte, levando-se em consideração o largo tempo necessário para que o autor do mapa se trasladasse de navio a Portugal e voltasse a exercer suas atividades profissionais nesse país ainda em 1617.

Retomando a análise do registro iconográfico objeto de nossa atenção, reparamos ainda que, abaixo do largo da matriz, havia um curral. Este abrigo para gado, conjecturamos, deveria estar situado perto da saída para a Vila de Santos, à esquerda do observador que olha a Rua Tabatinguera a partir da várzea, talvez na região conhecida hoje como Baixada do Glicério. A localização de redis era então regulada pela Câmara. Deviam-se distanciar uns dos outros em 60 braças (132 m), segundo postura de 1580, e das demais construções da vila em 300 braças (660 m), de acordo com as posturas de 1583, diminuídas para 200 (440 m) pelas posturas de 1590 (ATAS, v.1, p. 163, 201 e 397). Decerto eram em cercados como esse que se abatiam e retalhavam para o consumo humano as reses criadas soltas nas capoeiras ou campos do Guarepe (ATAS, v.1, p.123).

Quando a caminho do litoral, para servir de aprovisionamento aos navios ancorados no porto ou para alimentar o povo estabelecido à beira-mar, o gado do Guarepe, por culpa dos “pastores”, tinha o mau costume de passar por dentro da vila murada, causando estragos nas construções de taipa e sérios aborrecimentos aos moradores piratininganos (ATAS, v.1, p.98-99 e 387).

Nem tudo, porém, parece verossimilhante no documento cartográfico que estamos apreciando. O autor deve ter-se deixado levar às vezes ou pela imaginação, ou pela desatenção, ou apenas pelo hábito.

Com relação aos caçadores de perdizes, por exemplo, surpreendidos em plena atividade venatória nos campos próximos do Tamanduateí, apresentavam-se muito bem trajados, com longos calções bufantes e chapéus de copa alta e abas estreitas, sobre montarias que se erguiam com garbo sobre as patas traseiras, como nos retratos da orgulhosa e rica nobreza espanhola. Esses caçadores tinham porte aristocrático, em grande contraste com a aparência modesta e descuidada dos quase semidespidos mamelucos paulistanos, enquanto seus cavalos trazem à mente os espécimes apreciados por Fernão Cardim, que os qualificou de ginetes dada a sua boa raça.

Quanto aos elegantes caçadores, seriam porventura membros remanescentes do distinto séquito do requintado e esbanjador D. Francisco de Sousa), sétimo Governador Geral do Brasil (1592-1602) e, depois, entre 1609 e 1611, nomeado Governador da Repartição do Sul do Estado do Brasil (resultante da reunião das capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente) (R.G.,v.1, p.188-190).

Francisco de Sousa, por volta desses mesmos anos, fixara residência na Vila de São Paulo, à cata de notícias sobre minas de ouro e prata e outros metais existentes na região. A esse respeito, Frei Vicente do Salvador conta que os paulistanos muito se impressionaram com a luxuosa comitiva do fidalgo, pois antes da chegada de D. Francisco, só se vestiam com algodão tinto, não contando com peças de vestuário adequadas nem ao menos para se apresentarem em cerimônias de casamento. No que foi corroborado pelo jesuíta Fernão Cardim, que viu os piratininganos singelamente vestidos com roupas antiquadas e feitas de pano grosseiro:

Vestem-se de burel, e pellotes pardos e azues, de pertinas compridas como antigamente se vestiam. Vão aos domingos à igreja com roupões ou berneos de cacheira sem capa. (p. 173)

Depois da chegada do vaidoso governador tudo teria mudado na vila, segundo o historiador baiano:

Depois que chegou d. Francisco de Souza, e viram suas galas, e de seus criados e criadas houve logo tantas librés, tantos periquitos [altos topetes usados pelos homens da aristocracia de então] e mantos de soprilhos [tecido de seda muito leve e ralo, segundo Bluteau] que já parecia outra coisa. (apud TAUNAY, 1920, p. 163) (informações adicionadas entre colchetes pelo Autor)

Mais um pormenor nos intriga nessa planta. É a aparência da igreja da Companhia de Jesus, representada com seu flanco esquerdo à mostra. Segundo o desenho, a construção possuía nave única, capela-mor e, acima do telhado, assomava algo que parece ser uma alta parede terminada em empena, com duas sineiras (elemento arquitetônico conhecido em espanhol pelo nome de espadaña), em posição perpendicular à fachada principal e recuada em relação a ela, compondo uma tipologia arquitetônica pouco comum entre as igrejas jesuíticas portuguesas (veja-se, por exemplo, o Santuário de Nossa Senhora da Lapa, na freguesia de Quintela, Sernancelhe, erguida pelos jesuítas no século XVII em Portugal).

Além desse, há outro detalhe singular na representação do templo jesuítico: nele não se vê o alpendre que a igreja apresentava desde 1556, e que ainda era mencionado nas Atas paulistanas de 1624 (fig. 23). A alusão feita em documento camarário datado deste último ano pode, porém, ter sido o resultado de um equivoco cometido pelo escrivão da Câmara.

Na Ata do dia 22 de novembro de 1624 são citados os nomes de determinados personagens que deixavam o gado de sua propriedade sujar os adros da vila (da Matriz, do Carmo, da Misericórdia e do Colégio); dias depois, o escrivão transcreve novamente a acusação de que os mesmos personagens deixavam suas cabeças de gado sujar os alpendres dos citados templos (ATAS, v.3, p.144 e 147).

Na vereação do dia 13 de dezembro de 1631. Volta-se a falar na necessidade de se afastar o gado que danificava os adros da vila (ATAS, v.4 , p. 102). Não estaria o escrivão cometendo um lapso, usando uma palavra pela outra, já que a planta atribuída a Massaii, datada dos anos 1616/1617, não traz nenhuma igreja alpendrada dentro da vila paulistana – nem aMatriz, nem o Carmo, nem a Misericórdia, nem o Colégio?

Num aspecto, porém, temos plena certeza de que o desenhista se descuidou.

Foi quando assinalou bosques de pinheiros nativos ao nascente da povoação. Os exemplares representados têm a copa com a conformação cônica típica dos espécimes europeus e em nada sugerem as belas araucárias brasileiras, com sua característica silhueta em forma de taça de champanhe.

O arruamento da vila

Como já nos referimos, no Brasil, as Câmaras Municipais do período colonialtinham atribuições que abrangiam ao menos duas esferas: a administrativa e ajudiciária. Na São Paulo quinhentista, porém, um dos problemas que mais consumiamo tempo dos vereadores era a segurança da vila face aos iminentes ataques deindígenas, tanto dos contrários, que vinham de longe – ou do litoral norte (índiostupinambá ou tamoio), ou do interior do sertão (guarani), a oeste –, como dos tupilocais, estabelecidos nas redondezas do núcleo piratiningano, já que as aliançascelebradas entre os portugueses e estes últimos também estavam sujeitas areviravoltas imprevisíveis. Essa constatação, aliada à permanente falta de recursos camarários e àprevalência do saber tradicional referente a questões urbanísticas, partilhado tanto [Páginas 76, 77, 78 e 79]

Gonçalo, e a partir do período republicano de Rua Marechal Deodoro, seria absorvidoem 1913 pela Praça da Sé contemporânea. Embora fosse esse segmento tambémconsiderado parte do caminho de Virapoeira, ele, na realidade, era a seção inicial doramal que se desviava para o norte, em direção ao Guaré e ao Piqueri, divergindo, talqual a perna direita de um Y, do caminho de Virapoeira num ponto situado nascercanias da vila, conforme vimos há pouco (fig.24). A sudeste principiava o Caminho do Mar, velha trilha tupiniquim pertencenteao mesmo ramal paulista do Peabiru (fig.24). Para alcançá-lo os paulistanos deveriamsair por uma porta supostamente localizada num ponto da via que leva o nome dePátio do Colégio e que desemboca na Rua Floriano Peixoto, via à qual já nos referimosanteriormente. Após percorrerem os leitos das Ruas do Carmo e Tabatinguera, osviajantes transpunham o Rio Tamanduateí por meio de uma outra Ponte Grande,muito citada nas Atas quinhentistas (ATAS, v.1, p. 104 e 274), e cuja construção, aliás,era anterior à da Ponte Grande sobre o Tietê. A partir desse ponto se enveredavampelo caminho da Mooca, ou como afirmava o Padre Anchieta, numa carta datada de1579 citada por Gonçalves (p.58), era possível também percorrer parte do trecho queatravessava o planalto navegando pelas águas do Tamanduateí, que nasce dentro doslimites do município de Mauá, vizinho de Ribeirão Pires. À margem da etapa inicialdesse caminho, no outeiro Tabatinguera, levantava-se a forca (ATAS, v.1, p. 315),como a servir de advertência aos turbulentos forasteiros que chegavam do litoral.

Anos mais tarde (1598), com o estabelecimento dos frades carmelitas nas redondezas, esse sinistro instrumento de pena capital foi, mediante requerimento dos frades, removido para o caminho de Virapoeira. Assentado numa elevação de frente para a cruz que estava no caminho de Virapoeira (Morro da Forca), ele permaneceria até a segunda metade do oitocentismo nesse local, depois ocupado pelo Largo da Liberdade (ATAS, v.2, p. 48 e 197; TAUNAY, 1920, p. 36). A cruz que aí havia pode ter sido a avistada pelo Padre Fernão Cardim S. J. (1980, p.172) ao entrar na vila em 1585.

Depois de ter subido a Serra do Mar e feito parte do caminho correspondente ao planalto de canoa, navegando as águas de um dos rios aí existentes, teria aportado numa localidade não designada (Virapoeira?). De lá Cardim, acompanhando o visitador Padre Cristovão de Gouveia, teria vindo a cavalo, com os paulistanos que os foram buscar, pelo caminho que se aproximava da vila pelo sul. [Página 93]

modo, toda a documentação relativa ao caminho do Guaré, ou da Luz, a partir dosprimeiros anos de 1600 até 1784, deve ser interpretada tendo-se em mente o caminhoque passava pela Rua do Seminário e pela atual Brigadeiro Tobias, e não pela RuaFlorêncio de Abreu, ao contrário do que fizeram, invariavelmente, Afonso de Freitas eMaia Fina, entre tantos outros estudiosos. Com o tempo novos caminhos e variantes foram sendo abertos, com o objetivode oferecer aos viajantes itinerários mais econômicos e talvez menos acidentados.Um destes era o que se dirigia para oeste, o chamado caminho de Jundiaí, que seapartava do de Sorocaba (antigo Peabiru) na altura do Piques. Passava pelas Ruas daPalha (hoje Sete de Abril) e do Arouche, pelo largo desse nome, pelas atuais RuasSebastião Pereira e das Palmeiras e pela Água Branca (ATAS, v.43, p. 137 e 159). Háalguns anos, o arquiteto e historiador Professor Carlos Lemos (2004, p.174-175)publicou uma planta reconstituída da cidade de São Paulo em 1775, que traz a saídapara Jundiaí passando pela Avenida São João. Apesar de cometido com certafreqüência esse engano (uma reconstituição gráfica dos antigos caminhos paulistanosdatada dos anos 1930 já cometia esse equívoco), é fácil perceber que a Rua São Joãosó passou a cortar a região além-Anhangabaú depois de construída a ponte doMarechal (1786-1788). Foi a partir daí que a Rua São João foi encompridada pelaprimeira vez, o que possibilitou o acesso à futura Praça das Alagoas (atual Largo doPaiçandu), onde havia nascentes que alimentavam umas lagoas usadas para alavagem de roupa pela população local, lagoas que então se achavam dentro dapropriedade rural do sargento-mor Manuel Zúniga (Zúñiga). A São João sofreriasucessivos prolongamentos ao longo do XIX na região da Cidade Nova, mas só setornou avenida e atingiu sua extensão atual a partir do início do século passado,quando começou a ser usada como a saída oeste da cidade de São Paulo. Existem,aliás, duas provas gráficas desse fato, publicadas pelo Professor Nestor Reis Filho(p.74-76 e 66-67), que não deixam dúvidas em relação a essa questão: uma é ofrontispício da cidade feito por volta de 1773/74, em que se vê claramente que nãohavia caminho algum prolongando a ladeira de São João adiante do RibeirãoAnhangabaú, a outra é a misteriosa “Planta da Restauração da Capitania”, planta daCidade de São Paulo assim nomeada pelo Professor Nestor Goulart Reis Filho, datadaaparentemente de fins do século XVIII (embora traga alguns acréscimos posteriores) em que também se constata que a São João era ainda inexistente naquela altura nolado oeste da cidade. Afinal, até as Atas oitocentistas insistiam em afirmar que a saídapara Jundiaí se iniciava no Piques (ATAS, v.43, p. 137 e 159), desviando-se do caminhoque conduzia à Sorocaba (Rua da Consolação). Ou seja, para deixar a cidade pelo ladooeste era preciso tomar a futura Rua Sete de Abril. A sudoeste, já estava aberto em 1639 o novo caminho de Santo Amaro, queseguia os leitos da atual Rua Santo Amaro e de parte da Avenida Brigadeiro LuísAntônio, continuando em direção à Várzea do Rio Pinheiros (R. G. v.2, p. 88, 135, 138 e152; MONTEIRO,1943, p. 17). Ao sul, foi traçado, em fins do século XVI ou começo doseguinte, novo segmento inicial do Caminho do Mar, representado, como visto, pelasatuais Ruas da Glória e Lavapés (ATAS, v.38, p. 259). A leste, nova saída para a Penhae Rio de Janeiro, começando por uma ladeira fundamente escavada no terreno emfrente do convento do Carmo e atravessando a zona alagadiça da Várzea doTamanduateí por meio de um longo aterrado – estrada que talvez datasse do séculoXVII, como veremos adiante, e à margem da qual teria origem, depois, o arrabaldechacareiro do Brás, assim denominado por causa do nome de um morador local,chamado José Brás. Há confirmação deste último fato na documentação camarária,onde se acha menção, datada de 1769, a “mandado para os moradores do Pary eNicolau ajudarem aos moradores de São Miguel a fazer o aterrado que fica desde aponte do Ferrão até o Nicolau, e nomearam para cabo a José Braz” (ATAS, v. 18, p.214). A nova estrada seguia, portanto, o leito da atual Avenida Rangel Pestana,entroncando-se a seguir na atual Celso Garcia, que como já vimos fazia parte de umavereda indígena que se orientava em direção ao Vale do Paraíba. Hoje pensamos que o trecho inicial desse caminho, escavado na base do morroonde se assentava o convento do Carmo, pode ter sido aberto em 1620. Em Ata desseano (datada de 18 de abril) há uma passagem obscura, à qual ninguém parece ter dadosuficiente atenção (ATAS, v.2, p.429). Os vereadores paulistanos tratavam naquelaaltura de tomar posse e abrir um caminho para o Rio Tamanduateí, nas proximidadesdo cenóbio carmelita. O trabalho realizado a mando da Câmara desagradou oscarmelitas, que se ofereceram para refazê-lo às suas custas, porque se achavamprejudicados pelo serviço então executado. Os padres compareceram no paçomunicipal e convenceram os oficiais de suas razões (chegaram a mencionar que [Páginas 97 e 98]

Câmara Municipal, cuja sede se erguia em frente da Igreja do Colégio, e dos adrosfronteiros às três igrejas conventuais, todos os outros logradouros antigos da cidadeparecem ter nascido de maneira completamente espontânea. Nas proximidades da encruzilhada do ramal paulista do Peabiru com a trilhaindígena que ligava Jeribatiba a Piratininga formou-se a pequenino Largo daMisericórdia; do mesmo modo, nas imediações da interseção do caminho do Guarécom o Peabiru surgiu o Largo da Sé. No ponto em que se afastavam os caminhos dosPinheiros (Peabiru) e de Jundiaí (Ladeira da Memória) formou-se o Piques, largo deforma triangular, onde o depois Marechal Daniel Pedro Muller ergueu, em 1814, suafamosa “pirâmide” de pedra. Os dois caminhos da Luz (atuais Florêncio de Abreu eBrigadeiro Tobias), próximos e paralelos a partir de determinado ponto (início daAvenida Tiradentes), deram origem a um espaço extraordinariamente amplo, depoisconhecido por Campo da Luz, e mais tarde ainda por Largo do Jardim, onde serealizavam feiras no final do século XVIII (SANT’ANNA, v.2, p. 77-78). No lugar em que se separava o caminho que buscava o norte (Guaré) docaminho de Virapoeira, ou de Santo Amaro, que vinha do sul, apareceu o Pátio de SãoGonçalo, depois Praça Dr. João Mendes, e na altura em que a via que fazia ainterligação do Peabiru com o caminho de Piratininga (atual Avenida Ipiranga) cruzavao caminho de Jundiaí (Ruas Sete de Abril e do Arouche) tomou forma a Praça daAlegria, depois Largo dos Curros, e hoje Praça da República. E ainda no caminho deJundiaí, numa inflexão que havia logo adiante da Praça da Alegria, o Coronel Arouche,responsável pela abertura da Cidade Nova, no Morro do Chá, demarcou, em 1808,num largo decerto preexistente, um espaço destinado às evoluções militares a seremexecutadas pelos Voluntários Reais, o que motivou o primeiro nome dado a esse novologradouro: Praça da Legião (JORGE, [1985], p. 46), atual Largo do Arouche. Em alguns desses largos, ou em bifurcações, ou mesmo em meras inflexões decaminhos, foram com o tempo, num movimento centrífugo, sendo edificadas igrejasde irmandades, quase sempre de origem social bastante modesta. A Igreja daMisericórdia (c.1599), no largo de mesmo nome; São Gonçalo (1756) – e depois NossaSenhora dos Remédios (1825) –, no largo desde então denominado de São Gonçalo;Rosário dos Pretos (c.1721), numa bifurcação do caminho que naquela altura conduziaao mosteiro de São Bento, hoje Rua 15 de Novembro; Santa Ifigênia (1794), numa bifurcação do antigo caminho de Piratininga; Boa Morte (1802-1810), na inflexão queo velho Caminho do Mar (Peabiru) fazia ao se aproximar da Várzea do Tamanduateí(Rua do Carmo esquina com Rua Tabatinguera), Santo Antônio (de data imprecisa,mas já existente em 1592 pois citada no testamento de Afonso Sardinha feito nesseano), quase na curva que um hipotético trecho novo do caminho de Pinheiros (RuaDireita, atual Praça do Patriarca) fazia ao se precipitar em direção ao Vale doAnhangabaú, e Nossa Senhora da Consolação (c.1801), pouco adiante da mudança dedireção que a estrada de Sorocaba (Peabiru) sofria ao subir a encosta do Caaguaçú (noalto do qual se encontra a atual Avenida Paulista).Conclusão De tudo quanto se viu, constata-se claramente que a constituição básica darede viária paulistana mais remota se deu, via de regra, a partir dos eixosestruturadores representados por velhas trilhas indígenas. Ao contrário do queocorreu em algumas cidades brasileiras, Salvador por exemplo (TEIXEIRA, p .134 a155), na São Paulo dos primeiros tempos foi quase nula a formação planejada, isto é,intencional de ruas e largos, prevalecendo a espontânea e gradativa incorporação nonúcleo urbano da densa malha de veredas preexistentes, algumas das quais de remotaorigem pré-cabralina. Só nos primeiros anos dos Seiscentos, quando foram abertasalgumas ruas em São Paulo a mando do governador D. Francisco de Sousa (REISFILHO, p.40-42), e sobretudo a partir dos derradeiros anos dos Setecentos, é que asautoridades municipais e da Capitania se preocuparam em começar a ordenar eorientar o crescimento da cidade. Dos tempos dos capitães-generais procedem aabertura de ruas novas (Florêncio de Abreu, em 1784 – esta de fato uma iniciativa dosbeneditinos, consentida pela Câmara –, e Rua Nova de São José, hoje Líbero Badaró,em 1787), a construção das primeiras pontes de cantaria ou de alvenaria (Ponte doMarechal, entre 1786 e 1788; Ponte do Lorena, em 1795, e Ponte do Carmo, entre 1805e 1808), e ainda a expansão da área urbanizada (arruamento da Cidade Nova, noMorro do Chá, em 1808). No caso de São Paulo, a organização informal do espaçourbano, adequada às características físicas e ambientais do território, preponderounos primeiros séculos e pode ser ainda hoje em parte reconstituída, ao confrontarmos, [Páginas 100 e 101]

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