Oliveira Lima trata, em outras obras, do sertão: “A navegação a vapor e o telégrafo elétrico aproximaram-nos demais da Europa e distanciaram-nos do nosso próprio sertão. Nos começos do século xix ainda se procurava […] com afã utilizar as vias fluviais e desbravar vias terrestres em toda a superfície do país, com o fito de formar do Brasil um todo uno, compacto, forte, poderoso e agressivo” (Dom João vi no Brasil, Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 558).
“Aos sertões chegavam mal a disciplina social e a autoridade do governo. Seus habitan-tes eram rebeldes a tudo quanto não fosse a ação dos seus instintos de vingança e da sua arisca independência […] Essa idiossincrasia particular do sertanejo servia de contra-peso ao regime de espírito feudal que vigorava entre os matutos, sem que lhes entibiasse a fibra combativa” (O Império Brasileiro, São Paulo, Melhoramentos, 1927, p. 250).
Quanto à Ilha Brasil, trata-se de mito situado na zona de intersecção entre duas visões, a estratégica e a maravilhosa. Este mito foi estudado em suas diferentes vertentes por Jaime Cortesão e por Sérgio Buarque de Holanda, e faz parte relevante da geografia imaginária dos sertões. Para Jaime Cortesão, este conceito, pelo qual o Brasil formaria uma ilha, separada da América Hispânica pelos rios da Prata e Amazonas, unidos por um grande lago, de onde ambos nasciam, seria uma “razão geográfica” de Estado oposta ao Tratado de Tordesilhas e que presidiria à formação territorial do Brasil. Ainda para Cortesão, o mito da Ilha Brasil seria a tradução da “consciência perfeita da unidade geográfica, econômica e humana” que caracterizaria o Brasil. Segundo ele, é “na cartografia anti-ga que deparamos os melhores documentos sobre a evolução e a importância daquele mito na história do Brasil”. A concepção duma Ilha Brasil rodeada pelo Oceano e por dois grandes rios, unidos por um lago, tão vulgar na cartografia desde a segunda metade do século xvi, apareceu em cartas como a de Bartolomeu Velho de 1561, na qual o rio da Prata e o rio Pará, provavelmente o Tocantins de hoje, “ligam-se pela Lagoa Eupana, ao sul da qual se vê o Mar Grande ou Paraguai, que identificamos com o pantanal dos Xarais”. Dessa mesma lagoa partia o rio do São Francisco, “o qual se reúne por um lago menor ao Parnaíba e mais abaixo ao Paraná, que por sua vez se re-úne à Lagoa Eupana”. Nos primeiros mapas de Fernão Vaz Dourado, de 1568 e 1580, em vez do Pará ou Tocantins, era o Maranhão que se ligava por meio do lago central ao Paraná e ao Uruguai, donde nascia igualmente o São Francisco. No mapa de 1580do mesmo cartógrafo, a Ilha Brasil era representada pela mesma forma, acrescentando-se apenas que o São Francisco e o Maranhão se ligavam também por um lago. Em 1600, Luís Teixeira voltou ao protótipo de Bartolomeu Velho e a Ilha Brasil ganhou corpo vasto e único. Assim, para Jaime Cortesão, “estava completado o conceito orgânico e ideal do Brasil insular”. Durante quase duzentos anos “perdurou a crença muito generalizada na existência duma formação geográfica brasileira, insulada pelo mar e um sistema de grandes rios, ligados por meio duma vasta lagoa. E seria absurdo imaginar que esse conceito, tão corrente, não se tivesse refletido na expansão territo-rial do Brasil”. A Ilha Brasil era assim “um mito expansionista, em que se antecipa a solução ao problema e ao conflito de soberania, entre Portugal e Castela, na América Meridional”. Trata-se dessa forma de um mito essencialmente geográfico e político, ao contrário dos mitos castelhanos, heroicos e imaginosos: “o elemento maravilhoso apresenta-se como secundário e importado”.
Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, em artigo publicado em 1952 e depois reunido na coletânea Tentativas de Mitologia, intitulado “Um Mito Geopolítico, a Ilha Brasil”, antes de criticar a teoria de Cortesão, a resume e sintetiza: tratar-se-ia, se-gundo ele, da ideia de que os portugueses, aspirando, desde o começo da colonização, e antes dela, a ampliar seus domínios neste continente, se apoiaram inicialmente numa espécie de “mito”, forjado por parte dos navegadores e cartógrafos, e evoluíram, aos poucos, com o socorro às vezes deliberado dos bandeirantes e da diplomacia lusa, até à visão clara e fecunda de Alexandre de Gusmão. Como óbice a essa teoria, Holanda apresenta a tendência lusitana a uma colonização litorânea, mais uma neces-sidade imperiosa que uma vontade precisa, inclusive para evitar o despovoamento da marinha e a sua consequente conquista por eventuais invasores. Nesse sentido, mesmo a conquista de parte do sertão, no caso o amazônico, “podia apresentar-se como simples prolongamento da colonização litorânea, já que as margens do rio mar estendiam para o interior as do mar Oceano”.
Sérgio Buarque, por outro lado, integra a Ilha Brasil de Jaime Cortesão em uma “espécie de intencionalismo na história da conquista do sertão, assim como existe um intencionalismo na do próprio descobrimento do Brasil pela frota de Cabral”. Ter-se-iam criado, assim, fronteiras naturais para o território luso nas Américas, que se estenderia não só do Amazonas ao Prata, “como se ampliava sertão adentro, rumo aos limites pressentidos, que a natureza marcou com dois braços de água saindo de um lago chamado de Eupana ou Dourado”.
Esse mito geográfico e político, entretanto, não seria capaz, por si só, de inspirar, direta ou indiretamente, toda a expansão territorial da América portuguesa. Sérgio Buarque de Holanda, em síntese, não estava convencido que “nas entradas e bandeiras, ainda quando movidas por um acendrado patriotismo português, ou luso-brasileiro, para recorrer à terminologia do Professor Jaime Cortesão, fossem tão eficazes quanto as puras contingências econômicas”. Anos mais tarde, voltaria a escrever sobre a Ilha Brasil, em seu magistral Visão do Paraíso, mas desta feita sob um enfoque nitidamente mitológico.
Referia-se ele na ocasião ao arquipélago ao qual São Brandão haveria chegado, verdadeiro paraíso onde não havia nem calor, nem frio, nem tristeza, nem fome, do qual fazia parte a Ilha Brasil ou Braçile (conforme mapa de André Benincasa, de 1467), ou Ysola de Braçir, na carta de Pizzigno, de 1367. Essa Ilha Brasil, vinculada à lenda de São Brandão, pertencia à tradição céltica e foi objeto de busca até o século xviii.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, já que de ilhas tratamos. Se Jaime Cortesão padecia às vezes de um excessivo patriotismo intelectual português nas suas interpre-tações, ao atribuir à onisciência da Coroa, direta ou indiretamente, as iniciativas que conduziram à expansão territorial na América do Sul, Sérgio Buarque de Holanda parece padecer do que ele próprio denomina “um exacerbado orgulho regional” paulista que, “impaciente de qualquer jugo, se afirmou frequentemente contra a vontade, os interesses imediatos e os direitos da própria Coroa”, e de que é representante legí-timo a historiografia de São Paulo na i República brasileira, período de glorificação histórica do bandeirismo como forma de propaganda da pujança política, econômica e social dos paulistas. Parece ser mais razoável ficar-se pelo meio termo entre as duas teorias, e afirmar a interdependência entre a ação da Coroa e as ações individuais e particularistas. O poder central, a Coroa, não era capaz de executar, sozinha, a empresa da expansão; o poder local individualista, fosse ele exercido por bandeirantes ou fazendeiros, era fragmentado em unidades sem conta, não sendo capaz de garantir a exploração das riquezas descobertas ou produzidas por si só. A solução era o compromisso, que, pela tolerância e pelo reconhecimento da interdependência, le-gitimava as duas partes. A iniciativa das bandeiras, assim, podia pertencer – e nem sempre pertencia – a particulares, que investiam nela seus próprios recursos e os de sua parentela; mas as riquezas extraídas, fossem elas ouro ou escravos, eram exporta-das para o reino ou para outros domínios portugueses, e pagavam impostos. A Coroa, por sua vez, incapaz de prover sozinha a essas expedições, dava mercês e reconhecia os descobertos. Observe-se que os descobridores de ouro, a primeira coisa que faziampágina 194, 195 e 196