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A dicta do frade Pregador Egídio de Ferrara para a consulta sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos (1322)
10 de dezembro de 2019, terça-feira. Há 5 anos
Resumo: Este texto tem como tema as contendas sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos que atravessaram o papado de João XXII. A hipótese é que essas disputas também afetaram os frades da Ordem dos Pregadores, os quais entraram em conflito entre si em função de divergências acerca do modelo de pobreza da vida apostólica e do lugar do voto de pobreza na vida religiosa. O objetivo do texto é propor caminhos para a comprovação dessa hipótese por meio da teologia desenvolvida pelos frades Pregadores. Primeiro, a partir das atas dos Capítulos Gerais é demonstrada a possibilidade de Pregadores terem se associado aos frades Espirituais. Segundo, foi transcrita e analisada a resposta do frade Egídio de Ferrara para a comissão de 1322 sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos. Foi possível identificar que os conceitos de pecunia, dominium e proprietas podem ser importantes chaves de leitura da documentação administrativa e teológica.Palavras-chave: BAV, Cod. Vat. lat. 3740; Ordem dos Pregadores; voto de pobreza.The dicta of the friar Preacher Aegidius Ferrariensis for the consultation on the poverty of Christ and the apostles (1322)Abstract: This paper focuses on the disputes over the poverty of Christ and the apostles during John XXII’s pontificate. The hypothesis is that these disputes also affected the friars of the Order of Preachers, who quarreled amongst themselves due to divergences over the poverty model of apostolic life, as well as the place of the poverty vow in religious life. The aim of this paper is to propound ways of proving this hypothesis through the theology developed by the Preachers. First, an analysis of the Acts of General Chapters was made, which demonstrated the possibility of a significant number of Preachers associating themselves with the Spiritual friars. Second, Friar AegidiusFerrariensis’ response to the commission of 1322 on the poverty of Christ and the apostles was transcribed and analyzed. Through these procedures, it was possible to identify that the concepts of pecunia, dominium and proprietas may be important concepts for reading the administrative and theological documentation under investigation.Keywords: BAV, Cod. Vat. lat. 3740; Order of Preachers; vow of poverty.La dicta del fraile Predicador Aegidius Ferrariensis para la Consulta sobre la Pobreza de Cristo y los apóstolesResumen: Este texto tiene como tema los debates sobre la pobreza de Cristo y los apóstoles que cruzaron el papado de Juan XXII. Se presume que estas disputas también afectaron a los frailes de la Orden de Predicadores, quienes se enfrentaron entre sí por desacuerdos sobre el modelo de pobreza de la vida apostólica y el lugar del voto de pobreza en la vida religiosa. El propósito del texto es proponer formas de probar esta hipótesis a través de la teología desarrollada por los frailes Predicadores. Primero, a partir de las minutas de los Capítulos Generales se demuestra la posibilidad de que los Predicadores se hayan asociado con los frailes Espirituales. Segundo, se transcribió y analizó la respuesta de fray Aegidius Ferrariensis a la Comisión de Pobreza de Cristo y los Apóstoles de 1322. Fue posible identificar que los conceptos de pecunia, dominium y proprietas pueden ser claves de lectura importantes de la documentación administrativa y teológica.Palabras clave: BAV, Cod. Vat lat. 3740; Orden de Predicadores; voto de pobreza.1 IntroduçãoNo ano de 1322 o papa João XXII realizou uma comissão para obter resposta àquestão: “Se é herético afirmar que Cristo e os apóstolos não possuíram nada individualmente ou em comum?” (SPIERS, 1995, p. 91; NOLD, 2012, p. 646). Respostas foram obtidas de aproximadamente sessenta membros da Igreja. Entre os participantes estavam cardeais, bispos e mestres de teologia. A consulta e sua questão tinham como pano de fundo as disputas entre o papado de Avinhão e grupos de frades da Ordem dos Frades Menores (OFM), mais conhecidos como Espirituais, acerca do modelo de pobreza e de perfeição legado pela vida apostólica (NOLD, 2012, p. 646; PIRON, 2012, p. 381). Essas contendas tinham implicações políticas mais amplas na afirmação da plenitudo potestatis(plenitude do poder) do papado. Ao longo da década de 1320, intensificaram-se os conflitos entre João XXII e Luís da Bavária, imperador do Sacro Império RomanoGermânico, pela influência e controle de cidades na Itália. Os Espirituais, que buscaram proteção no imperador, e a defesa da pobreza absoluta de Cristo e dos apóstolos forneciam argumentos para deslegitimar as pretensões de poder temporal do papado (SILVA, 2015, p. 76-78 e 84-90). Sobre esse contexto de conflitos, pouca atenção foi dada para a participação dos frades da Ordem dos Pregadores (OP) nas discussões e disputas acerca da pobreza. Como aponta Patrick Nold os frades Pregadores2, geralmente, são descritos como aliados do papado e com grande poder de influência sobre esse, porém as particularidades dasconcepções destes frades sobre a pobreza não são consideradas (NOLD, 2012, p. 646-647).[1 e 2 do PDF]Aqui é proposta a seguinte hipótese: a resolução da questão sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos também afetava os frades Pregadores e a OP. A Ordem não era um bloco uníssono e os frades dirigentes tiveram de enfrentar grupos de Pregadores que expressavam opiniões semelhantes às dos Espirituais da OFM. Portanto, frades da OP disputaram e divergiram entre si acerca de concepções sobre a pobreza e o lugar que o voto tinha na vida religiosa dos Pregadores. O objetivo é propor caminhos e chaves de leitura para investigar a hipótese na documentação administrativa da OP e na produção teológica dos frades. O texto está dividido em duas seções. Na primeira a partir das atas dos Capítulos Gerais (CGs) são apresentados indícios de conflitos internos na OP acerca da questão da pobreza. Também é discutida a participação dos frades Pregadores na comissão de 1322 sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos. A segunda seção é dedicada a análise da resposta de um frade Pregador para a comissão da pobreza, obtidas no manuscrito da Biblioteca Apostólica do Vaticano, Códice Vaticanus latinus 3740: a dicta (declaração) de Egídio de Ferrara. Na conclusão são propostos os conceitos de pecunia, dominium e proprietas como possíveis chaves de leitura para a documentação.2 A Ordem dos Pregadores e as contendas acerca da pobreza de Cristo e dos apóstolos2.1 Atas dos Capítulos Gerais (1321-1330)O Capítulo Geral (CG) era a instância de maior autoridade na OP, sua ocorrência era anual e tinha o poder de alterar as Constituições e propor a interpretação das leis(FORTES, 2011, p. 40; VARGAS, 2011, p. 86 e 87). Da mesma forma buscava-se combater “desvios comportamentais” dos frades por meio da descrição, delimitação e normatização jurídica da conduta dos Pregadores (GELTNER, 2010, p. 50; VARGAS, 2011, p. 129). Dos CGs é possível ter acesso às atas que, apesar de não conterem uma descrição detalhada da reunião, registram as regulamentações votadas pelo mestre geral e pelos definidores. Essa documentação pode dar indícios acerca de possíveis dissensos entre os Pregadores na interpretação do voto de pobreza e do lugar desse na vida religiosa dos frades, entre outros possíveis conflitos.Entre os anos de 1321 e de 1330 é possível identificar nas atas dos CGs, sobretudona seção dos avisos e ordenações (admoniciones et ordinaciones), indícios do [3]possível separar o direito de usufruto do direito de usar. O terceiro, que Cristo e os apóstolos não tiveram nenhum domínio próprio ou comum de todos os bens e também nem mesmo [tiveram] o direito de usar em qualquer bem, pois esses [os bens] se opõem à perfeição evangélica (MOPH IV, 1899, p. 205. Adaptado)11.Todos os frades deveriam estar cientes de como o modelo de pobreza apostólica não deveria ser interpretado e posto em prática, sendo afirmada a relação de propriedade com os bens que se utilizava. Esta relação existia pelo direito e de forma alguma era contrária à perfeição da vida religiosa. Portanto, a partir das regulamentações e do conteúdo dos CGs de 1321, 1327, 1328 e 1330 é possível afirmar que grupos de frades Pregadores que mantinham relações com Luís da Bavária, com Miguel de Cesena, com Pedro de Corbaria e com Espirituais da OFM foram punidos pelos dirigentes da OP. Da mesma forma, a atuação de frades “de vida singular” que se diferenciavam dos demais Pregadores, e possivelmente uma determinada concepção do modelo apostólico de pobreza, foi combatida pela descrição na legislação da Ordem.As evidências obtidas na documentação administrativa tornam plausível a hipótese de que grupos de frades Pregadores, inseridos em um contexto de disputas acerca da definição do modelo de vida apostólico, possuíam conflitos em termos das concepções acerca do voto de pobreza e de seu lugar na vida religiosa. Para identificar estas diferenças são analisadas interpretações de frades individuais da OP sobre o modelo de pobreza apostólica. 2.2 A comissão de 1322 e o manuscrito BAV, Cod. Vat lat. 3740Para analisar a forma como alguns frades Pregadores estavam pensando o modelo de pobreza para a vida religiosa uma das fontes é o manuscrito MS BAV, Cod. Vat. lat. 3740. Neste códice estão reunidas as respostas para a consulta de 1322 sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos, sendo a cópia que chegou às mãos de João XXII. Como aponta Sylvan Piron, a realização de consultas, com grande participação de teólogos, era um modus operandi do papado de João XXII na legitimação das decisões das bulas pontifícias (PIRON, 2011, p. 381 e 382). Em 1322, as respostas de teólogos e canonistas sobre o modelo de pobreza apostólica serviram de base para a preparação da bula Ad conditorem canonum (1322), com a qual foram revogadas disposições da Exiit qui Seminat de Nicolau III (1279) atacando, sobretudo, a fundamentação jurídica do “simples uso de fato”. E da bula Cum inter nonnullos (1323), com a qual foi condenada como herética a afirmação de que Cristo e os apóstolos não possuíram nada individualmente ou em comum (NOLD, 2011, p. 646). O MS BAV, Cod. Vat. lat. 3740 é um relatório, que possui textos produzidos em espaços de tempo distintos (NOLD, 2003, p. 41 e 42). O códice é dividido em cinco partesde acordo com a condição do autor dentro da Igreja e a natureza da opinião sobre a pobreza(NOLD, 2003, p. 34). A maior parte dos textos é oriunda do consistório realizado em 26 de março de 1322, do qual participaram cerca de sessenta membros da Igreja, entre cardeais, prelados e mestres de teologia. A forma como os textos estão agrupados no códice é apresentada nos primeiros fólios por meio de uma lista (fos. 1r e 2r). Na primeira parte e na segunda estão os textos de frades Menores favoráveis à pobreza absoluta de Cristo e dos Apóstolos. Os textos da primeira parte são identificados como dicta (declarações) e sãoopiniões escritas após o consistório de 26 de março (NOLD, 2003, p. 40). A segunda parte, conforme Patrick Nold, é excepcional dentro do manuscrito, sendo os textos oriundos da anotação de declarações orais de frades Menores em um consistório particular, intituladas Compendiose Resumptiones Dictorum (NOLD, 2003, p. 41 e 42). A partir da terceira parte, na qual estão as respostas de cardeais, seguem as opiniões contrárias a afirmação da pobreza absoluta de Cristo. Na quarta estão as respostas de prelados e na quinta de mestres de teologia. Os textos destas partes são intitulados dicta, responsiones, consilium e rationes et allegationes (NOLD, 2003, p. 41). Segundo Nold, alguns participantes retornaram suas opiniões ao papa logo após a consulta, produzindo textos curtos, outros levaram mais tempo, e produziram textos mais longos e complexos. Da mesma forma, como no caso do Pregador João de Nápoles, foram enviadas mais de uma resposta (NOLD, 2003, p. 41).A parte escrita inicia no fólio 3ra, com a resposta do cardeal Vital du Four, e finaliza no fólio 261v com um “rascunho” da bula Cum inter nonnullos que provavelmente, pela letra, é de autoria de João XXII. O códice é composto de 261 fólios, sendo a dimensão da parte textual de 250x350 mm. Cada fólio possui 33 linhas, com o texto dividido em duas colunas (Figura 1). Antes de cada resposta é identificado o nome e/ou condição do autor. A primeira letra de cada texto é destacada, ocupando duas linhas[7 e 8]oficiais”12 de sete frades Pregadores sobre a pobreza de Cristo e dos Apóstolos. O conteúdo das respostas desses frades podem dar indícios sobre interpretações conflitantes acerca do modelo de pobreza legado pela vida apostólica e o lugar do voto de pobreza na vida religiosa dos Pregadores. Para a análise inicial foi selecionada a resposta de Egídio de Ferrara presente no fólio 152r13 do manuscrito.3 A resposta de Egídio de Ferrara à comissão de 1322 sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolosSobre o local e data de nascimento de Egídio de Ferrara não foram obtidas informações. É provável que fosse oriundo da cidade de Ferrara. A data de entrada do frade para a OP e o convento no qual fez sua profissão são desconhecidos. Da mesma forma, não foram encontradas informações sobre os estudos de Egídio. Ao longo de sua vida, Egídio ocupou cargos na hierarquia eclesiástica. Em maio de 1296 foi confirmado como Patriarca de Grado na Itália e em outubro de 1311 como Patriarca de Alexandria no Egito. No ano 1322 é provável que estivesse em Avinhão, onde participou da comissão sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos. Ao que tudo indica Egídio não retornou para Alexandria, morrendo em Tarascon na França, no dia 06 de junho de 132314. A dicta de Egídio de Ferrara é curta, ocupando o recto do fólio 152, sendo elencadas poucas autoridades, o que indica que o texto foi produzido e enviado logo após o consistório de 26 de março. A resposta pode ser dividida em três partes. O frade inicia respondendo diretamente à pergunta “se é herético afirmar que Cristo e os apóstolos não possuíram nada individualmente ou em comum?”: “Eu, frade Egídio, Patriarca de Alexandria, respondo que acredito ser [tal afirmação] herética.” (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl. 152ra. Adaptado)15 Segundo Egídio, sua opinião seguia as respostas de outros participantes da comissão, nas quais baseava a interpretação das autoridades elencadas em seu texto (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl. 152ra)16. A resposta do frade é desenvolvida em dois argumentos. Primeiro, são elencadosdois capítulos do evangelho de João: capítulo 4, versículo 8, em que os apóstolos são encarregados por Cristo de conseguirem comida na cidade samaritana de Sicar; e o capítulo 13, versículos 27 a 29, trecho no qual é narrado o momento da traição de Judas, dando-se destaque para as bolsas que ele carregava (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl.152ra)17. A partir destas autoridades Egídio concluí o seguinte: “Quanto a isso é um fato estabelecido que essas [coisas necessárias] não foram adquiridas por meio da moeda de outras pessoas.” (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl. 152ra. Adaptado)18. Isto é, para Egídio os trechos do evangelho de João demonstravam não só que Cristo e os Apóstolosfaziam uso de moeda (pecunia) como tinham a propriedade dessa.Conforme Roberto Lambertini, havia uma tradição dentro da OP na qual, para a imitação de Cristo e dos Apóstolos, o uso moeda pelos frades era proibido apenas in viam(no caminho), isto é, aos que iriam pregar entre os laicos. Ao restante dos Pregadores o uso e a posse de moeda não eram vetados. Essa tradição estava alicerçada tanto na legislação quanto na produção hagiográfica e teológica dos frades Pregadores (LAMBERTINI, 2004, p. 8-15). Ao demonstrar o uso e posse de moeda por Cristo e pelos Apóstolos, Egídio parte de uma forma já consolidada de considerar a relação entre uso de moeda e pobreza na vida religiosa dos Pregadores. Portanto, apesar de não mencionar o ponto da proibição de portar e usar moeda aos frades que pregavam, Egídio considera o uso e posse de moeda como parte integrante do modelo de pobreza legado pela vida apostólica. No segundo argumento, o frade busca demonstrar que os Apóstolos possuíram bens em comum. Para isso utiliza os versículos 32 a 37 do capítulo 4 dos Atos dos Apóstolos. Este trecho é mobilizado para demonstrar a posse comum dos bens entre os Apóstolos e as pessoas que os seguiam, fazendo com que não existissem necessitados (BAV, Cod. Vat.lat. 3740, 1322, fl. 152ra-rb)19. Para reforçar que em vida os Apóstolos tiveram posse comunitária de bens, o frade utiliza um texto de Agostinho de Hippona (Regula Tertia ou Praeceptum) do qual é destacado um excerto que afirma que os Apóstolos não possuíam nada próprio, mas tudo o que tinham era comunitário (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl. 152rb)20. Segundo Lambertini, tanto os frades Pregadores quanto os frades Menores buscaram basear seu modelo de vida religiosa no livro dos Atos dos Apóstolos (LAMBERTINI, 2004, p. 6). Egídio, então, busca demonstrar que possuir bens em comum fazia parte do modelo de pobreza da vida apostólica. Também é possível apontar como implicação para esse tipo de argumentação de Egídio a sua experiência como patriarca. O cargo de patriarca se assemelhava ao do bispo, portanto, implicava a administração e posse de bens temporais. Na continuação do argumento, o frade escreve:Na última carta aos Filipinos (c. 4:18) dizia o apóstolo [Paulo]: “tenho todas as coisas e tenho em abundância”, diz a glosa: “tenho todas as coisas que vós trouxestes para mim”. Da mesma forma após a Ascenção diz João naquele evangelho: “Retornaram para a pesca e prenderam 153 peixes grandes, que mesmo sendo tantos não romperam a rede.” Quanto a isso é um fato estabelecido que os filhos de Zebedeu não comeram com os companheiros todos os peixes, pois venderam o que concernia a eles (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl. 152 rb. Adaptado)21.Neste trecho, Egídio busca demonstrar a relação de posse dos Apóstolos com os bens por meio da vinculação entre a pessoa e a coisa que se tem. Para isso utiliza uma glosa, aqui identificada como a Glossa Ordinaria22, para dar ênfase na relação de propriedade que os Apóstolos tinham com as coisas que utilizavam, pois o “tenho tudo”(habeo omnia) é vinculado à pessoa “eu” que recebe algo (quae misistis mihi).[11 e 12 13]Na sequência, a conclusão do argumento Egídio causa confusão, uma vez que ele afirma que os apóstolos Tiago e João não teriam comido todos os 153 peixes com seus companheiros, pois haviam vendido sua parte. Ainda não foi possível determinar como Egídio chega a essa conclusão, é possível que se trate de uma glosa ainda não identificada23. Apesar disso, pode-se perceber a proposta de uma relação entre pessoa e objeto, destacada por cada um dos Apóstolos ter sua parte dos peixes e poder fazer o que desejasse com essa. Nesse sentido, no segundo argumento o frade: primeiro, demonstra que os Apóstolos possuíam bens em comum e, para dar ênfase na relação de propriedade, propõe uma relação pessoalentre “coisa” que se “usa” e “quem faz o uso”. Esta vinculação entre “objeto e pessoa” é explorada ao final da resposta:É fato que alguns disseram que Cristo e os apóstolos tinham apenas o uso, e que [sobre as coisas] não havia domínio deles, o que não é observado por nenhuma razão possível nesses bens que são consumidos com o uso, como no pão, no vinho e na moeda. Então nesses [bens consumíveis] dos quais se tem o uso se tem total domínio, o que é diferente nesses [bens] que não são consumidos pelo uso, como a casa ou o cavalo, uma vez que em tais [bens] o uso pode ser separado do domínio (BAV, Cod. Vat. lat. 3740, 1322, fl. 152rb. Adaptado)24.No início do trecho é feita referência à teoria do “simples uso de fato” defendida pelos Espirituais da OFM e sancionada pela bula Exiit qui Seminat de 1279, de Nicolau III. A crítica de Egídio vem no sentido de demonstrar a impossibilidade da existência de um “uso sem direitos de propriedade”, reconhecendo a propriedade comunal como parte domodelo de pobreza da vida apostólica, por meio do conceito de dominium (domínio). Para Egídio, o uso sem propriedade era possível apenas em bens não consumíveis, que não se desgastavam. Entretanto, fazer uso de um bem consumível, como alimento ou moeda, era impossível sem relação de propriedade, uma vez que esse perdia sua substância. Nestes bens, era necessário o domínio da “pessoa que usa” sobre o “bem que é usado”. O termo domínio era empregado em diferentes situações e com diversos significados no século XIV, dos quais John Kilcullen destaca quatro: poder de um ser racional sobre seus atos; poder de governar; poder sobre as coisas (proprietas); e poder que Adão e Eva tinham no Estado de Inocência sobre as outras criaturas (KILCULLEN, 2011). [14]

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