Contratos de Tributos e Poder Regional: a contribuição dos meios direitos para a formação da elite mercantil paulista na segunda metade do século XVIII - 01/01/2018 de ( registros)
Contratos de Tributos e Poder Regional: a contribuição dos meios direitos para a formação da elite mercantil paulista na segunda metade do século XVIII
2018. Há 6 anos
ResumoO artigo procura analisar a importância dos contratos de tributos cobrados sobre animais conduzidos dos campos meridionais da América portuguesa, denominados meios direitos, para o processo de diferenciação externa da elite mercantil paulista na segunda metade do século XVIII, especialmente com relação às alianças e disputas com outras frações das elites mercantis da colônia.Palavras-ChaveContratos de impostos; Capitania de São Paulo; Elites mercantisAbstractThe article aims to investigate the relevance of the tax farming contracts (half duties) charged on the cattle brought from the Portuguese America´s Southern prairies for the process of external differentiation of the merchant elite of São Paulo in the second half of the Eighteenth century, specially its relations concerning alliances and rivalries with other merchant elite´s fractions in the Portuguese colony.KeywordsTax farming contracts; Captaincy of São Paulo; Mercantile elites1. IntroduçãoNo terceiro quartel do século XVIII, a política de diversificação agrícola, a maior liberdade do comércio marítimo e o amplo reordenamento militar forneceram bases renovadas para a inserção das elites coloniais no quadro imperial português durante o reinado de D. José I (Alden 1968; Bellotto 2007). Contudo, cabe investigar como a delimitação destes espaços de poder econômico e político, mormente em sua dimensão fiscal, ocasionou alianças e conflitos entre as elites regionais, elas mesmas, muitas vezes, ainda pouco sedimentadas e em processo de formação, na construção do seu poder e na aquisição de novas fontes de acumulação fiscal e mercantil.Na capitania restaurada de São Paulo, ao lado do crescimento das milícias, também se deve analisar se houve a construção de um grupo de arrematantes envolvidos com os contratos da capitania, aspecto inexistente em períodos anteriores. O surgimento de setores mercantis articulados aos contratos da capitania era um fato novo, quando muitos haviam no máximo se aventurado em contratos municipais de corte de carne, construção de obras públicas ou fornecimento de aguardente e vinhos da terra.1Além de dimensões internas referentes à capacidade de hierarquização do corpo mercantil paulista, a formação de um grupo de contratadores da capitania envolvia aspectos externos relativos às disputas com outros grupos regionais.2 Destaca-se aqui a importância da análise das relações, amiúde permeáveis, entre as diferentes elites mercantis regionais, para a elaboração de um quadro mais apurado sobre o poder efetivo obtido pelo nascente grupo de contratadores paulistas. Caracteriza-se como sendo um processo externo de diferenciação por oposição às transformações ocorridas no interior da capitania, hierarquizando o corpo mercantil paulista a partir de diferentes localidades, questão que não será abordada neste texto.Tendo em vista essa hipótese principal, o objetivo do presente artigo é aprofundar a questão das relações entre a formação da elite paulista e das outras elites da América portuguesa, particularmente seus vínculos com Rio de Janeiro e Minas Gerais, pela análise dos contratos dos meios direitos. Como será analisado ao longo do artigo, defende-se que o controle desses contratos foi aspecto crucial na construção da elite mercantil paulista, especialmente na delimitação do seu poder face a outros grupos regionais no mosaico do Centro-Sul da América portuguesa.
De início, cabe uma observação sobre as distinções entre direitos, meios direitos e Casa Doada para se referir aos rendimentos obtidos no registro de Curitiba. Entre 1734 e 1747, os tributos cobrados no registro de Curitiba sobre o gado, cavalos e muares entrados na capitania de São Paulo eram considerados direitos inteiros. Em maio de 1747, Cristóvão Pereira de Abreu recebeu a mercê de metade dos direitos em remuneração dos seus serviços à Coroa. A mercê concedida por 12 anos, de 1747 a 1759, foi interrompida com o falecimento de Abreu em 1755. A partir de 1760, com o término de vigência da remuneração, a mercê foi transferida para Tomé Joaquim da Costa Corte Real, antigo membro do Conselho Ultramarino e secretário de Estado dos Negócios da Marinha (Hameister 2002: 164-172). A mercê continuou na família de Corte Real ao longo da segunda metade do século XVIII, sendo essa parcela dos meios direitos incorporada nas rendas da Coroa apenas em 1808. O termo "Casa Doada" foi progressivamente empregado na documentação a partir da década de 1780, para se referir à estação fiscal em Curitiba de recebimento e aos rendimentos dos meios direitos recebidos como mercê (Gil 2009: 96-97).
O contrato dos meios direitos era certamente um dos negócios mais atrativos no século XVIII, e constitui peça-chave para a compreensão das relações entre o Estado imperial português e as elites mercantis coloniais, o que justifica sua escolha nesse estudo. Entre 1734 e 1792, os direitos inteiros e os meios direitos de Curitiba renderam 321:824$200 réis, resultando em uma média geral de 5:454$647 réis por ano. Com relação a este valor, no período dos direitos inteiros entre 1734 e 1747, a média anual estava 45% abaixo da média geral, havendo um grande crescimento no período de 1748 a 1759, com uma média superior em quase 30% ao valor da média geral. No período de 1760 a 1792, a média anual era apenas 8% superior à média geral. Considerando-se o valor total dos contratos arrematados pagos à Real Fazenda entre 1752 e 1792, há uma diferença de 47% com relação ao valor arrecadado pelos contratadores entre 1748 e 1792.3 Assim, a despeito dos possíveis custos de administração e da evasão fiscal, o valor investido pelos contratadores era fartamente recompensado pelos direitos arrecadados. Não se poder dizer que o rei desconhecesse estas práticas, pois, em 1752, o provedor da fazenda paulista alertava para a grande diferença entre o valor arrecadado e o pagamento dos contratos, perfazendo 83% de ganho bruto para os arrematantes.4 Com relação ao peso nos rendimentos da capitania de São Paulo, os meios direitos representavam 24,4% das receitas paulistas em 1755, e 11,9% em 1776.5 Em um exercício contábil, apenas para destacar o enorme potencial arrecadatório do registro de Curitiba, se incluirmos a outra metade dos direitos, concedida em mercê, tal montante alcançava 48,8% das receitas em 1755, e 23,8% em 1776.
A segunda seção retoma brevemente as principais contribuições sobre os contratadores dos meios direitos na historiografia, apontando a contribuição do presente trabalho para o debate corrente. A terceira seção indica a criação do contrato dos direitos e, posteriormente, dos meios direitos do registro de Curitiba a partir de 1743, comentando as primeiras arrematações do contrato ocorridas no Conselho Ultramarino. A quarta seção, que analisa o período entre 1769 e 1786, aborda as associações entre os homens de negócio fluminenses e os comerciantes paulistas para a aquisição dos contratos. A jurisdição sobre as arrematações suscitaria contendas entre os órgãos da administração fazendária de São Paulo com as do Rio de Janeiro e de Rio Grande, aspectos relativamente autônomos com relação ao comportamento de suas respectivas elites mercantis. A quinta seção dedica-se ao estudo de predomínio completo dos arrematantes paulistas no controle dos contratos dos meios direitos, abarcando o período entre 1786 e 1807, aspecto ainda mais notável devido ao retorno de diversos contratos para o controle lisboeta após 1790. A periodização do artigo foi realizada levando-se em consideração tanto as transformações na administração fazendária, envolvendo o Conselho Ultramarino e, posteriormente, o Erário Régio e as Juntas da Fazenda quanto a alternância de grupos de arrematantes, especialmente os paulistas, no controle do contrato dos meios direitos.2. Os Contratadores dos Meios Direitos na HistoriografiaDiversos trabalhos ao final da década de 1970 e início da seguinte sobre a elite colonial paulista desenvolvidos por Abud (1978), Leonzo (1979, 1980/81), Kuznesof (1980) e Rabelo (1980) destacariam, sem grande profundidade, a importância dos contratos na formação da riqueza dos seus membros mais proeminentes. Apesar de tratar já dos últimos anos do período colonial, o estudo seminal de Maria Tereza Schörer Petrone sobre Antônio da Silva Prado, futuro barão de Iguape, lançaria as bases para as pesquisas subsequentes sobre os contratos, destacando os vínculos entre economia de abastecimento, contratos de arrematação e fortalecimento das elites mercantis. A análise de Petrone destaca a importância do mercado interno, por meio do estudo do comércio da criação, condução, comércio e tributação do gado na província de São Paulo. Os contratos de arrematação de impostos aparecem vinculados de forma complementar ao comércio de gado, permitindo a acumulação de riqueza em áreas com agricultura de exportação menos desenvolvida (Petrone 1976: 151-159).6No mesmo caminho aberto por Petrone, outros historiadores estudaram recentemente a importância do comércio de animais e a arrematação dos contratos dos meios direitos. Os novos estudos propiciam uma visão mais ampliada, enfatizando a integração entre a capitania de São Paulo e as regiões meridionais, seja na primeira metade do século XVIII, como a dissertação de Hameister (2002) ao apontar a relevância do comércio de animais e dos ganhos fiscais no processo de diferenciação e hierarquização da nascente sociedade rio-grandense, seja no último quartel do século XVIII e início do seguinte, como a tese de doutorado de Gil (2009), em seu estudo sobre a rota mercantil entre São Paulo e Rio Grande de São Pedro.7Ainda que o objeto central da tese de Gil não seja a formação da comunidade mercantil paulista, seu estudo traz elementos importantes para a compreensão dos vínculos estabelecidos entre os diferentes agentes no comércio e tributação de animais desde Viamão até Sorocaba. O autor busca entender a lógica própria do funcionamento dos sistemas de crédito e fianças desta rota comercial. Nesta investigação sobre as formas de crédito, o autor traz informações importantes sobre os principais homens de negócio vinculados à administração dos meios direitos, especialmente na porção detida pela Casa Doada. As redes mercantis em Sorocaba e Curitiba são descritas com grande precisão, utilizando-se inclusive a análise gráfica.
(...) 5. Novos Conflitos no Contrato dos Meios Direitos, 1786-1805
Em 1773, os arrematantes do contrato dos meios direitos solicitaram à Junta da Fazenda uma permissão para cobrarem tributos sobre os animais criados ao longo do caminho entre Curitiba e o registro de Santa Vitória. Esta última estava vinculada à criação pecuária na região dos Campos de Cima da Serra ou Campos de Vacaria, uma área distinta dos centros produtores mais antigos do Viamão e das fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo. Anteriormente isentas, a expansão das fazendas de criação ao longo do trajeto entre Curitiba e os Campos de Vacaria, especialmente enquanto área de invernada, estimulou a sanha dos cobradores que até então contavam apenas com os direitos dos animais criados nos campos de São Pedro de Rio Grande (Gil 2009: 61-91).
Com efeito, os dados do registro de Sorocaba apontam que 30% dos animais entrados naquele registro entre 1779 e 1782 eram provenientes das regiões dos Campos Gerais, Curitiba e Lages, embora 55% das tropas ainda viessem do Viamão (Marcondes e Suprinyak 2007: 12). Com a sanção da Junta da Fazenda paulista ao pedido dos contratadores dos meios direitos, muitos produtores abandonaram a região, indo estabelecer-se até mesmo em outras capitanias, onde fossem livres daquele ônus fiscal. Além dos arrematantes dos meios direitos, os administradores da Casa Doada também passaram a cobrar tributos sobre os animais criados naquela região, sem que houvesse determinação régia que lhes conferisse tal direito, fato alertado pela Junta da Fazenda em 1785.20
A questão foi encaminhada ao Erário Régio, que não reconheceu os direitos de cobrança da Casa Doada, uma vez que constasse de sua mercê emitida em 1760 apenas os animais vindos do Rio Grande, mas não aqueles que haviam sido criados "nos limites da capitania sem que v[iessem] do mencionado continente".21 Um ofício posterior encaminhado pelo governador Bernardo José de Lorena apontava que a cobrança daqueles direitos pela Casa Doada constituía uma nova mercê, mas "mercês novas só as pod[ia] fazer [Sua] Majestade".22 Em 1787, o oficial da Contadoria da Relação do Rio de Janeiro, África Oriental e Índia portuguesa, responsável pelas contas da capitania de São Paulo, pedia que os administradores da Casa Doada ressarcissem a Real Fazenda, medida posteriormente adotada.23 A cobrança indevida cessaria apenas ao final de 1789. Até que se efetuasse o pagamento à Real Fazenda, os bens do administrador da Casa Doada, possivelmente o do registro de Curitiba, foram confiscados pela Coroa.24 Em 1803, Pedro Álvares da Costa Corte Real, que detinha a mercê da Casa Doada, pagou a quantia devida ao Erário Régio, pouco mais de 37:000$000 réis, e os bens do administrador foram reavidos.25 Por fim, em 1808, devido às "urgentes precisões" da Real Fazenda, o rendimento dos meios direitos da Casa Doada foi incorporado à receita régia.26
Para evitar problemas futuros, a Coroa resolveu proceder à formação de um contrato dos direitos dos animais que vinham de cima da serra. Este contrato, de pouco valor, foi arrematado no Conselho Ultramarino em 1792 pelo preço de 1:650$000 réis. Os primeiros arrematantes do contrato foram Joaquim José dos Santos e Joaquim Manuel da Silva e Castro que, além de possuírem laços importantes de parentesco na capitania, arremataram contratos relevantes. É interessante notar que não houve concorrentes no leilão.27Joaquim Manuel da Silva e Castro (†1794) era filho de André Álvares de Castro (†1752), homem de negócio de origem reinol estabelecido na cidade de São Paulo, onde exercera cargos de almotacé (1768-9) e juiz (1772) na câmara e de provedor na Misericórdia. Em 1777, Joaquim Manuel foi nomeado coronel de milícias do regimento da cavalaria ligeira auxiliar da capitania. Um ano antes de sua morte, em 1793, foi agraciado com o hábito da ordem de São Bento de Avis, embora tivesse feito escudeiro fidalgo e cavaleiro fidalgo em 1750.
O primeiro contrato arrematado por Joaquim Manuel, em sociedade com seu irmão Manuel Joaquim, foi o da passagem dos rios de Paranapanema, Apiaí e Itapetininga, situada no caminho entre Sorocaba e Curitiba. Este contrato era válido para o triênio de 1772 a 1774. Depois, sozinho, Joaquim Manuel arremataria dois contratos da passagem do Cubatão em Santos e Mogi do Pilar (1778-1780 e 1784-1786). A mãe de Joaquim Manuel possuía vínculos familiares com gente ligada aos homens de negócio de Santos e antigas famílias vicentinas. Quando seu pai, André Álvares de Castro, faleceu, deixara um sítio na vila de Santos.28
Além dos laços com o comércio litorâneo, vínculos familiares ligavam Joaquim Manuel ao comércio e tributação de animais vindos do Rio Grande de São Pedro e dos Campos Gerais. Seu irmão Manuel Joaquim havia desposado a filha de Salvador de Oliveira Leme, Gertrudes Maria de Oliveira, e era cunhado de Paulino Aires de Aguirra. Paulino havia arrematado junto com Manuel de Oliveira Cardoso o contrato dos meios direitos de Curitiba no triênio de 1787 a 1789. Posteriormente, com sócios desconhecidos, arremataria o mesmo contrato entre 1793 e 1795.
De certa forma, a sociedade mercantil entre Joaquim Manuel e Joaquim José dos Santos replicava a aliança paulistana-sorocabana de Aguirra e Cardoso, indicando o estreitamento dos laços entre as famílias mercantis de serra acima. No entanto, o que destoava desta "pureza" paulista era o casamento de Joaquim Manuel com a filha de Manuel de Araújo Gomes, de quem aquele recebera oito contos de réis como polpudo dote. Pode-se cogitar que, após a morte do irmão de Gomes em 1789, o casamento de Joaquim Manuel tornara-se uma abertura ainda possível aos interesses do negociante fluminense nos contratos dos meios direitos pelos quais lutara nas duas décadas anteriores. Em todo caso, seria uma estratégia de curto prazo, devido à morte de Joaquim Manuel em 1794, encerrando de vez as pretensões de Manuel de Araújo Gomes na capitania paulista.29
Joaquim José dos Santos (1746/50-1820/28), por sua vez, afigurava-se como um representante seleto da elite paulistana. Filho do negociante de origem reinol estabelecido em São Paulo, Lopo dos Santos Serra, teria uma longa carreira nos órgãos locais: primeiro capitão e sargento-mor das ordenanças da cidade de São Paulo, depois almotacé (1770), vereador (1775, 1777 e 1778) e juiz ordinário (1788) na câmara paulistana e até mesmo fiscal da Casa de Fundição. Em 1797, seria nomeado coronel do regimento da infantaria miliciana de Paranaguá. Na lista nominativa de 1798, consta que Joaquim vivia do "negócio de escravos que manda vir do Rio e vila de Santos para os vender na vila de Itu e de açúcar que na dita vila compra para remeter para Lisboa". Com 18 escravos próprios, era um dos quatro traficantes de escravos que negociavam na cidade de São Paulo naquele período. Ele casou-se com Antonia Joaquina Mendes da Silva, filha do rico Francisco Pereira Mendes, a primeira fortuna paulistana no recenseamento de 1765. Através deste casamento Joaquim José tornou-se cunhado de Manuel Antônio de Araújo, casado em segundas núpcias com outra filha de Francisco Pereira. Além disso, era irmão de Francisco Xavier dos Santos, tesoureiro-geral da Junta da Fazenda de São Paulo e cunhado dos contratadores José Vaz de Carvalho e Manuel Antônio de Araújo, irmão de Manuel de Araújo Gomes.30Entre 1790 e 1792, Joaquim Manuel e Joaquim José dos Santos arremataram quatro contratos em conjunto e de uma forma bastante fechada, pois não realizaram sociedade com outros negociantes. Adquiriram o contrato dos novos impostos (1790-1792), do subsídio literário (1790-1792), dos direitos do registro da vila de Lages (1793-1795) e o já mencionado contrato dos direitos dos animais de cima da serra (1793-1795). Todos estes contratos eram contratos novos, nos quais provavelmente os outros arrematantes não desejavam se arriscar. Além dos vínculos de parentesco, não foi possível averiguar a influência dos outros homens de negócio da capitania paulista (Paulino Aires de Aguirra e José Vaz de Carvalho) ou mesmo do comerciante fluminense Manuel de Araújo Gomes nos contratos arrematados por Joaquim Manuel e Joaquim José dos Santos. Porém, a despeito dos limites desta análise, importa ressaltar que a existência de múltiplas influências sobre esta sociedade mercantil apresentava-se como um campo de forças de alianças e conflitos entre as facções de homens de negócio seja da própria capitania, seja entre capitanias. Mesmo um contrato de menor importância, como o dos direitos dos animais de serra acima, agregava-se ao conjunto de forças que circundavam o eixo mercantil e fiscal do comércio de animais entre Sorocaba e Viamão. A própria Coroa, antevendo que a concorrência estimulasse melhores preços nos leilões, fortalecia essas potencialidades ao agrupar no contrato dos meios direitos do registro de Curitiba, contratos que poderiam ser considerados "adjacentes". Desta forma, em 1795, procedeu-se à união dos contratos dos novos impostos da capitania, dos meios direitos dos animais criados nas fazendas do Rio Grande de São Pedro até cima da serra (o antigo contrato dos meios direitos) e dos direitos inteiros dos animais criados nas fazendas de cima da serra até o registro de Curitiba.31
A evolução dos direitos dos animais criados na região entre Curitiba e Viamão é exemplar a respeito da aprendizagem institucional da administração fazendária da Coroa portuguesa e dos agentes mercantis da capitania paulista, estabelecendo uma distribuição de jurisdições fiscais e de ganhos privados entre as partes envolvidas. Inicialmente, há a expansão da própria criação de animais em áreas anteriormente sem aquela cultura. Em seguida, os contratadores dos meios direitos peticionam o privilégio de cobrarem direitos sobre estes animais e os administradores da Casa Doada o fazem sem renovação da mercê original. A Coroa reivindica aos administradores a cobrança indevida e o ressarcimento dos direitos à Real Fazenda, além de criar um contrato para aquele tributo a fim de evitar problemas futuros. Uma sociedade mercantil composta por dois agentes vinculados aos arrematantes dos meios direitos dispersos entre Sorocaba, São Paulo e Rio de Janeiro adquire este novo contrato. Por fim, após esta experiência inicial, a Coroa decide agrupar este contrato ao dos meios direitos.
Entre 1786 e 1805, o contrato dos meios direitos de Curitiba manteve-se nas mãos de negociantes paulistas de forma contínua, destacando-se principalmente os nomes de Paulino Aires de Aguirra, entre 1786 e 1798, e de José Vaz de Carvalho, entre 1795 e 1805. Cabe averiguar as razões desse êxito, seja com relação aos contratadores concorrentes na América portuguesa ou no reino, seja pelo retorno das arrematações para Lisboa.
O contrato dos meios direitos envolvia uma participação maior dos arrematantes lisboetas, em comparação ao contrato dos dízimos, sem os correspondentes ganhos de revenda dos ramos. Os contratadores dos meios direitos estavam envolvidos diretamente nas redes de crédito e débito dos tropeiros, seja com relação ao pagamento das dívidas fiscais, conforme estudado por Tiago Luís Gil, seja com relação ao fornecimento de sal e fazendas aos próprios viajantes. Esta forma de atuação dependia de uma supervisão mais circunstanciada das rotas mercantis, além de imobilizar por longos períodos os recursos dos contratadores, conforme depreende-se do comentário do governador Melo Castro e Mendonça:
Há também um contrato das passagens dos animais do sul para esta capitania que devendo ser afrontado em Lisboa na conformidade das ordens do Erário por passar de 10:000$000 réis nunca se pôde a este respeito por em plena observância ordem do mesmo Erário, na parte em que manda administrar os contratos quando não houver quem cubra o antigo lance, porquanto há neste mesmo contrato certo mecanismo nos que o costumam arrematar e vem a ser de assistirem em Curitiba aos tropeiros com fazendas, dinheiro e sal para os animais, e além disso a esperarem por parte do dinheiro seis, nove, e doze meses, e às vezes mais de ano, o que é muito interessante, e necessário para animar este ramo do comércio, e que por esta razão nunca pode ser administrado senão por pessoas acostumadas a girar com ele, e que tenham os precisos estabelecimentos e correspondências para esse fim (...) (DI 1899: 181).