A família Cerqueira Leite e a história de Antônio PedroVemos pelos papéis que consultei no Arquivo do Estado e pelas informaçõespreciosas do advogado José Guimarães, de Ouro Fino, recolhidas nos arquivos sulmineiros, que esse ramo de minha família também se prende a velhos troncos bandeirantes e à presença de reinóis aqui chegados na metade do século XVIII.Trecho final de uma promissória a que, antigamente, se dava o nome de “devo que pagarei”, passada no Rio deJaneiro em 1º de junho de 1755, por Francisco Afonso de Lima. O fato de o documento ser de sua “letra e signal”indica o bom nível de instrução daquele negociante, o que era raro naquele tempo, pois o analfabetismo erapraticamente generalizado.A família Cerqueira Leite e a história de Antônio PedroVemos pelos papéis que consultei no Arquivo do Estado e pelas informaçõespreciosas do advogado José Guimarães, de Ouro Fino, recolhidas nos arquivos sulmineiros, que esse ramo de minha família também se prende a velhos troncos bandeirantes e à presença de reinóis aqui chegados na metade do século XVIII.
Podemos começar nossa história falando de um português de Braga, chamadoFrancisco Afonso de Lima, que aqui se casou na capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em 16 de novembro de 1751, com a carioca Josefa Maria do Espírito Santo. Era rico negociante, pertencente à esperta classe de mercadores lusitanos que, em vez de ir tentar o garimpo nas minas, preferiram trabalhar em território paulista como intermediários atacadistas entre os pequenos produtores de gêneros (sobretudo açúcar, aguardente, fumo e toucinho) e os arraiais deMinas Gerais, de modo especial os mais acessíveis, como aqueles das vertentes,atingíveis por São Bento do Sapucaí ou pelo vale de Jaguari, onde se instalou aatual cidade de Bragança. Esses negociantes portugueses não ficaram só em SãoPaulo (sítio estratégico porque podia captar a produção tanto da zona ituana comode Sorocaba, célebre sede de famosa feira de muares tangidos do Sul); mas também se fixaram ao longo do Paraíba, comerciando com a mesma “fazenda”. Vieram a constituir uma espécie de sangue novo no quadro mameluco, que estava acabando de sofrer as conseqüências de demorado abandono por parte do governo ultramariano após o desmembramento da capitania, com a perda do controle das minas. Sangue novo que se aliou rapidamente às velhas famílias, provocando mudanças nos hábitos e costumes da sociedade, com novas contribuições, até mesmo na arquitetura. Pois esse meu ancestral de que falávamos pertenceu a essa novaclasse que chegou a assumir o poder político, especialmente a partir do governodo morgado de Mateus.
Assim, Francisco Afonso de Lima mantinha, através de seu estabelecimento narua da Quitanda, contato freqüente com entrepostos mineiros, possuindo, inclusive, correspondentes. Morreu rico, mas não sabemos com que idade chegou e quantotempo morou em São Paulo. Deveria já ser entrado em anos quando casou-se,porque faleceu subitamente em 23 de novembro de 1755, exatamente quatro anosdepois de suas bodas, tempo suficiente para conceber três filhos. Morreu de repente, porém havia feito testamento, e seu inventário é bastante elucidativo sobreseus negócios. Deixou muito dinheiro amoedado, jóias de ouro com pedras preciosas, grande quantidade de prata lavrada e imóveis.
Sua filha caçula Antônia Maria de Jesus Lima, nascida em outubro de 1754,casou-se com o reinol Francisco da Costa Pereira Requião na sé de São Paulo, em2 de março de 1771. Esse cidadão, que passou a assinar Requião aqui no Brasil,para indicar ser natural daquela freguesia de Braga, era filho de um certo Frutuosoda Costa Pereira, responsável pela história corrente na família Cerqueira Leite arespeito de nosso judaísmo. Diziam os mais velhos que descendíamos de um cristão-novo chamado Richion da Costa Lima, morto de desgosto ao saber do naufrágio de um seu navio carregado de preciosa carga. O nome Richion (pronunciava-se “Riquión”), em quatro ou cinco gerações, através da história oral, nasceu dacorruptela de Requião. Quanto ao alegado judaísmo, nada sabemos de certo, talvez fosse uma informação verídica, porque nem tudo é falso nessas histórias quecorrem de boca em boca, dos mais velhos para os mais novos. Os fatos básicosconservam-se críveis enquanto são acompanhados ou envoltos por fantasias quenos cabe analisar e extirpar. É válido o ditado “Onde há fumaça, há fogo”, e nessahora do resgate da memória antiga há que se ter perícia na tentativa de se transpor a opacidade do fumo e a barreira das cinzas depostas à volta e trazer a brasaainda viva e rubra à luz de nossos dias. Requião era o resquício da verdade empanada pela imaginação romântica da família. Essa minha descoberta ligada àquelesobrenome nos documentos deixou alguns desapontados, pois a história do judeu que chorou na praia a perda do navio chegara até a ser impressa em publicação genealógica feita sob encomenda. [Páginas 68 e 69]
Francisco da Costa Pereira Requião, nos documentos e nos maços de população da cidade de São Paulo, desde os dias de seu casamento é qualificado como“homem de negócio desta cidade”. Em 1772, tinha 29 anos e era, também, “sargento do número”. Três anos depois, já era sargento de ordenanças e morava narua da Quitanda em casa herdada de seu sogro. Por volta de 1780, muda-se comtoda a família para Sant’Ana do Sapucaí, onde morava um seu irmão, Manoel,que havia mais de vinte anos negociado e se correspondera com Francisco Afonsode Lima.
Requião morreu rico em 3 de junho de 1791; deixou testamento ondefaz referência a negócios vários, inclusive com comissários do Rio de Janeiro. Suamulher Antônia Maria de Jesus Lima ainda era viva em 1834, conforme interessante documento que copiamos, quando estava ocupada na avaliação de dois jovens escravos, que desejava doar em seu testamento, ora em elaboração, a doisnetos, um deles minha trisavó Cândida Pereira Lima. Tinha então oitenta anos.Francisco da Costa Pereira Requião deixou cinco filhos e o mais novo deles foiSilvestre da Costa Lima (lembremo-nos de que aquela freguesia de Braga chamava-se exatamente São Silvestre de Requião), cuja data de nascimento desconhecemos, coisa acontecida por volta de 1780. Esse Silvestre deve ter tido uma personalidade marcante, porque suas histórias chegaram vivas, como se fossem recentes,nas conversas até de bisnetos em plena São Paulo dos anos 40. Ele seria o filho deRichion, o armador sem sorte. Era chamado de “capitão Silvestre”, mas nada tinha de militar, pois foi professor de muito renome em Sant’Ana. Talvez tenha sidocapitão da Guarda Nacional. Enquanto isso, bom poeta e ótimo repentista. MárioCerqueira Leite, o Velho, chegou mesmo a me recitar quadrinhas de seu bisavô,infelizmente não registradas por mim. Contou-me o idoso parente que, na metade do século XIX, naquela cidadezinha mineira, havia o hábito da distribuição de pasquins, pequenas sátiras em papeluchos afixados em locais de ampla visibilidade e freqüentados pela população em geral, quando não passavam de mão em mão,fazendo todos rirem muito dos versos maldosos, picantes e engraçados. Silvestredominava no campo dos pasquins. Improvisava trovas mordazes bastante engraçadas, levando todos ao riso, fazendo esquecer até prováveis ofensas escondidasatrás das rimas. Entre os repentistas locais havia desafios circulando pelos pasquins espalhados em sítios estratégicos. Houve um dia em que Silvestre superouse: seus versos chegaram a público um pouco antes daqueles de seus desafiantes,cujos epigramas assim tiveram anulada a surpresa das pilhérias versejadas. Tudoaconteceu devido a uma coincidência: seus reptantes, por acaso, estavam elaborando, entre gargalhadas e talagadas de cachaça, os seus desafios poéticos nos fundosde uma venda contígua ao pomar do vasto quintal de Silvestre, que tudo ouviu,por estar ali colhendo frutas. Escutou ditos espirituosos alusivos a pessoas amigas, inclusive ele. Alguém perguntou: “Quem é o pestanudo?” “É o Silvestre papudo”,respondeu outro, provocando risos. Silvestre, pé ante pé, afastou-se e, com o moteescutado entre as ramagens, elaborou o seu pasquim, que mandou espalhar poronde certamente iriam andar os seus opositores já de antemão ridicularizados emperfeitas caricaturas. Silvestre era mesmo impossível.
Silvestre da Costa Lima, o mestre poeta, casou-se muito bem, em 1800, emSant’Ana, com Ana Pereira de Souza, pertencente à antiga família do lugar.Exageradamente, falavam seus descendentes que ela morreu com 130 anos. Na verdade, nascera em 1786 e não sabemos quando morreu. Era filha de um ricaço português, José Pereira de Souza, nascido por volta de 1712 em São Miguel de Veire,que amealhara fortuna no garimpo. Recolheu, oumelhor, seus escravos recolheram nas cabeceiras doSapucaí, em poucos anos, 6.400 oitavas de ouro. Emseu testamento, deixou 64 oitavas à Senhora Sant’Ana,cumprindo promessa antiga pela qual lhe daria umaoitava de cada cem que retirasse de suas lavras. Ficousolteiro até os 63 anos, o que não impediu tivesse tido,no entanto, muitos filhos naturais.Casou-se em 1775 com Anacleta Inácia Joaquina,filha de Antônio José da Rosa, escrivão dativo deSant’Ana desde 1748 e signatário, em 1750, da posse [Páginas 70 e 71]
mineira do território onde morava. Tiveram oito filhos e José Pereira de Souzamorreu viúvo em 2 de setembro de 1797 no seu “sitio do Moinho”, aos 85 anosde idade.Silvestre da Costa Lima e Ana Pereira de Souza, segundo o reverendo EduardoCarlos Pereira, seu neto, tiveram sete filhos, sendo que o terceiro parto foi o deCândida Pereira Lima, minha trisavó, nascida em agosto de 1807.
Cândida, filha de Silvestre, o professor de muitos alunos em Sant’Ana, teve educação esmerada: escrevia muito bem, usando sempre o pronome vós, com bonitaletra. Conforme os pendores familiares, casou-se, em 30 de abril de 1822, com AntônioRemígio Ordonhes, conceituado mestre de primeiras letras, natural de Meia Ponte (hoje Pirinópolis), em Goiás, que morava em Sant’Ana na companhia de suamãe Maria Bárbara da Conceição havia pelo menos treze anos, pois, em 1809, recebera de Vila Boa de Goiás um documento, localizado por José Guimarães nadiocese de Pouso Alegre, informando ter ali falecido, em 1804, José Duarte Correia e Sá, seu pai. Sua mãe era separada do marido e vivia na companhia de José daSilva Barros. Mudara-se para Sant’Ana do Sapucaí talvez atrás de parentes.
Antônio Remígio Ordonhes nasceu em 1796, e descobrir sua ascendência foipara mim o maior desafio, dada a grande dificuldade de consultar arquivos goianos.Hoje já não tenho ânimo nem paciência para esse tipo de empreitada. Em resumo, sei que ele pertencia a velhos troncos paulistas; só não sei dos pormenores.Esse assunto preocupou muito o genealogista Carlos da Silveira, dono de uma incrível intuição. Morreu afirmando que meu bisavô Antônio Pedro de CerqueiraLeite e seu pai, Antônio Remígio Ordonhes, certamente pertenciam à mesma família do general Glicério, o republicano de Campinas. Ele sempre dizia que ninguém prestava a atenção num antiqüíssimo hábito dos antigos bandeirantes, perpetuado pelos caipiras paulistas, seus sucessores, que era o de repetir sobrenomesde duas ou três gerações passadas ao batizar as crianças recém-nascidas. Era muito comum um filho receber o nome completo do avô, um sobrenome compostode apelidos familiares dos bisavós paternos ou maternos. Os velhos paulistas, sobretudo fora de São Paulo, mantinham viva a intenção de perpetuar a memóriade seus anteriores. Está aí a obra de Pedro Taques, o primeiro codificador dos clãsmamelucos, para comprovar esse interesse. Carlos da Silveira teve a paciência demontar duas ou três árvores genealógicas de velhas famílias para mostrar a repetição de sobrenomes com intermitências de até quatro gerações. Um Borges deCerqueira, de meados do século XVII, por exemplo, tem o seu Cerqueira ressuscitado cem anos depois no seu tataraneto Antônio Benedito de Cerqueira César, o [Página 72]
Pereira Lima e, também, o mais querido. Tivemos a oportunidade de ler maisde 25 cartas trocadas entre os dois e, ao todo, examinamos 38 missivas que circularam entre Cândida, Zé Rufino, Antônio Pedro e Palmira, minha bisavó. Correspondência do maior interesse, permitindo o conhecimento íntimo daquelagente. Ficamos vendo a mobilidade mineira empurrando as pessoas daqui prali,da angústia trazida pela pobreza, sem que se vislumbrasse de onde se pudessetirar meios para remediar a vida e, antes de tudo, ficamos bem elucidados sobre os problemas surgidos com a conversão de todo o grupo ao protestantismo. Há, igualmente, matérias interessantes de personagens e vultos de nossasociedade daquele tempo de 1863 a 1883 – vinte anos de Cerqueiras trocandoconfidências e lamúrias. Grande parte dessas cartas foi guardada pelo reverendo Eduardo Carlos Pereira, primo-irmão de Antônio Pedro, filho de Maria, irmãde Cândida. Foi seu biógrafo na imprensa presbiteriana capitaneada pelo periódico O Estandarte 3. Por sinal, Eduardo Carlos vem a ser bisavô de Fábio Magalhães, meu amigo e “primo longe”. Antônio Pedro aos oito anos lia e escreviaperfeitamente o português. Aos nove, começou a aprender as declinações latinas com o padre José Valeriano de Souza, estudos continuados em Brotas, comos padres Francisco de Paula Camargo e José Manuel da Conceição. Este exerceu enorme influência na vida de Antônio Pedro. Se este era bem dotado, aquelefoi um prodígio no saber. Ordenou-se padre em 1845 e foi vigário em váriascidades de São Paulo. Sabia latim, alemão fluentemente, inglês, matemática. Foihistoriador e estudioso de ciências sociais. Em outubro de 1864, já abandonarahavia algum tempo o catolicismo; fez então a profissão de fé evangélica, atopelo qual foi excomungado. Homem de coragem fora do normal, pregou nascondições mais adversas, nos meios mais preconceituosos. Morreu no dia deNatal de 1873 na “míseria tal que, na vespéra desse dia, foi encontrado inanido,descalço, de vestes esfarrapadas, caído na varanda de uma casa da estrada dePavuna”4. Assim acabou o reverendo Conceição, o querido amigo e antigo professor de Antônio Pedro. Triste fim de quem vivia a desafiar a sociedade. Nofinal de ano anterior, o meu bisavô escrevia à mãe, comentando uma agressãosofrida pelo padre:
[...] Se eu pudesse dispor de dinheiro e tivesse meios teria já partido para Minas à procura daquele servo fiel de Deus que tanto já tem sofrido.A falta de meios priva-me também de escrever um artigo a respeito de tão triste acontecimento.Doeu-me o coração ao ler que meu mestre, que o padre José Manuel da Conceição foraespancado nas ruas de Campanha, sem ter siquer junto de si um amigo, um conhecido!Infelizes vós que espancastes um humilde servo do Senhor! Ai de vós!Se fosse possível partir de Brotas alguém levando consigo animal, seria isso uma obra decaridade que Deus agradeceria. Se o Sr. Conceição não quiser ir a Brotas, ao menos teremos noticias dele.Unam-se os crentes dessa vila e façam as despesas dessa viagem. A união faz a força.
Em carta de maio de 1873, de Sorocaba, Antônio Pedro se regozija, contandoao irmão Francisco Messias: “[...] dez dos que apedrejaram o Sr. Conceição foram presos e chuparam quinze dias de cadeia”. Já foi, pelo menos, um consolo.Mas, contando o infortúnio de José Manuel da Conceição, perdi o fio da meada; voltemos à biografia de Antônio Pedro. Ele, com o seu latim na bagagem, temde sobreviver e ajudar a família e, menino ainda, vai trabalhar no comércio, emLimeira, para onde levara cartas de recomendação do padre Conceição. Aproveitaa ocasião para se aperfeiçoar na música, sua grande paixão. Permaneceu naquelacidade poucos anos, mas tempo suficiente para a conversão de seu professor, dasua própria e dos seus e, também, para ficar conhecido como criador de admirável banda de música, sabendo tocar todos os instrumentos ali presentes. Deve terencantado a missão norte-americana de missionários do evangelho, porque, aosdezoito anos, está no Rio de Janeiro estudando, levado por eles para melhor compreender a palavra divina. É de 25 de outubro de 1863 a sua carta mais antiga queli, dirigida à mãe, na qual diz: “Acabaram-se hoje as aulas e amanhã procede-seaos exames. No dia 29 temos, os estudantes, de fazer discursos à igreja e entãocada um seguirá seu rumo”.Seu rumo foi a volta a Brotas. Dizem que esse retorno deu-se mesmo devidoà saudade imensa que sentia, nele a saudade pesava. Reorganizou sua banda musicale nesses dias teve início o recrutamento de jovens para a luta na guerra contra oParaguai. Foram momentos de muita aflição na tentativa de escapar da farda –o moço convertido havia pouco, que contrariara o conservantismo católico epolítico, foi, por causa disso, o primeiro a ser chamado e, entre o fuzil e a Bíbliarecém-descoberta, optou pelas escrituras, fugindo, já que não tinha nenhum es- [Páginas 75 e 76]
Três anos de permanência em Sorocaba forneceram grande experimento na atividade evangelizadora de Antônio Pedro, fato decisivo na sua formação. Em 8 de agosto de 1876, ele então recebeu na Corte a “solene ordenação ao sagrado ministério da palavra”. Afinal, ministro da Igreja Presbiteriana. Como custara esse título! Já não era mais o homem triste de antigamente, fora-se a timidez. Vale a pena recordar o retrato que lhe fez o primo Eduardo Carlos:
Na tribuna sagrada era ele sobremodo atraente. Alto, pálido, fronte ampla, cabelos pretos e bigode espesso, olhos negros e brilhantes, voz timbrada e simpática, entrecortada pela emoção,dicção clara, exposição simples e atrativa, sem grandes arroubos, gesticulação apropriada,postura modesta, era um conjunto que impressionava agradavelmente o auditório.
Em 30 de setembro de 1882, no Diário de Sorocaba, manda Antônio Pedro publicar a seguinte seção livre:
Culto Evangélico. De 1º de outubro em diante, o culto evangélico celebrar-se-a em a novacapela, sita à rua Boa Vista. Haverá culto e pregação do evangelho três vezes por semana,aos domingos e quartas-feiras. Nos domingos, às 11 horas da manhã e sete e meia da noitee nas quartas-feiras às 7 e meia da noite. Designarei depois a hora para a Escola Dominical. As segundas-feiras, sempre que for possível, teremos ensaio de músicas clássicas às 7 e meia da noite, para exercício dos nossos cantores.
A nossa humilde capela não está ainda acabada, nem temos por enquanto os utensílios necessários, como bancada apropriada, etc. mas, ainda assim convido o povo sorocabano a vir assistir às nossas reuniões e honrar-nos com a sua presença. A entrada é franca para todos, sem distinção de crenças. Depois de amanhã terá pois, lugar a primeira reunião.
Sorocaba, 23 de setembro de 1882. Antônio Pedro de Cerqueira Leite, Ministro da Igreja Evangélica. [Página 82]
O trabalho em Sorocaba, então, progride como suspeitava o seu otimismo guiadopela fé em Deus. A pequena escola que fundara “desandou”, mas logo trata de reabri-la em outros moldes: será de curso primário e só para meninos. Já em janeirode 1883 prossegue desenvolto o coral formado no final de 1876, que teve início com vinte vozes: sete sopranos, seis contraltos, cinco baixos e dois tenores; “‘coreto’ de música para o cántico dos hinos”, como escrevera esperançoso à mãe naqueles dias. Esse coral nunca foi disperso, tendo comemorado seu centenário, coma denominação de “Coral Reverendo Zacarias de Miranda”, entre festas na igrejasorocabana em 1976, oportunidade em que também foram festejados os cem anosda ordenação de Antônio Pedro e sua posse em Sorocaba como pastor interino,em 19 de setembro de 1876. O coral foi, sem dúvida, a menina-dos-olhos de meubisavô. Compôs a maioria dos hinos ali cantados, sendo suas a letra e a música.Um exemplo de seus versos referentes ao Salmo 1º: “Venturoso o que não vagapela estrada da impiedade. Venturoso porque não anda com os que caminham nainiqüidade. Tal o justo que se esmera na lei santa do Senhor. Logo tudo lhe prospera, tudo corre a seu favor”.Em pouco tempo ficaram muito conhecidos na cidade. Orgulha-se, inclusive,de sua companheira, escrevendo:As mulheres agora estão mostrando para quanto prestam. Palmira também levou à parede,na presença de muitas famílias, o primeiro pregador desta cidade: o padre Chico (Francisco de Paula, o grande!). Certas famílias brasileiras quiseram ver se faziam Palmira voltarpara o romanismo e conseguiram insidiosamente que ela se encontrasse com o padre Chicoem uma casa onde se achavam muitas pessoas reunidas, com o proposito talvez de assistirem à derrota da parte que eles julgavam mais fraca. Mas o caso foi que o padre Francisco éque ficou em apuros!
Realmente, Palmira teve trânsito fácil na sociedade local, embora fosse a esposado ministro protestante. Sua posição religiosa, na verdade, seria mesmo um obstáculo a fáceis confraternizações na classe dominante, católica por excelência, como vimos. Acredito, no entanto, que estrangeiros de boa qualificação, como profissionais liberais e homens de empresa, como Mailasky, ou então comerciantes e os fundadores de pequenas manufaturas, geralmente alemães chegados para trabalhar nas fundições de Ipanema, é que abriram as portas ao casal protestante. Assim, também, portugueses e italianos, para não falarmos dos ingleses, os últimos a chegar com as suas fábricas de tecido, que se aliaram por casamentos à sociedade autóctone. Dentre eles, certamente muita gente presbiteriana e amiga de Antônio Pedro.
Essas reflexões acima explicam bem a notícia redigida por Júlio Ribeiro na sua GazetaComercial a respeito da visita do conde d’Eu a Sorocaba, em 1874. Falando do banquete em homenagem ao ilustre visitante, ocorrido no sobrado do barão de Mogi-Mirim, informa que “às seis horas foi sua alteza para a mesa tendo tido a subida honra de jantar em sua companhia as exmas. sras. Angelina Adams e Palmira de Cerqueira Leite”. Essa senhora Angelina Adams era filha do barão e casada com certo dr. Adams, médico de prestígio na cidade. Portanto, Palmira e Antônio Pedrofreqüentaram a sociedade sorocabana (notícia transmitida na Folha da Manhã de 16 de janeiro de 1954 por Renato de Sêneca Fleury).
Em 23 de julho de 1883 escreve ao irmão Zé Rufino, às vezes chamado de NhôZé, que estava cansado de longa viagem que acabara de fazer, mais de um mês, àsportas do Paraná; fora a Faxina e a Apiaí, passando por Itapetininga e Guareí. Diziaque estava de partida para o Rio de Janeiro, “com o Presbyterio às portas”. Chegouà Corte em 29 de agosto, depois de demorada viagem – certamente por via férrea.Seria o moderador daquele ano na abertura dos trabalhos. Já no dia seguinte,pregou. O sermão foi comovente, falando da “pecadora aos pés de Jesus”. E, encerrados os trabalhos, não saiu com os demais; permaneceu só no salão. Miguel Torres, da porta, vendo-o absorto encostado ao piano, retorna e leva-o para o alojamento em Santa Teresa, conversando animadamente pelo caminho para distraí-lo,já que estava suspeitando da volta daquelas velhas e conhecidas saudades. Na manhã seguinte, sentado na beira da cama, respondendo ao grande amigo, disse quesim, que passara muito bem a noite. E, em seguida, caiu morto, vítima de umasíncope cardíaca. Assim faleceu o grande soldado da Igreja Presbiteriana do Brasil. Tinha 38 anos. Foi sepultado no jazigo 183, quadra 2, do cemitério de SãoFrancisco, no Caju.E como sobreviveu Palmira, a viúva com seis filhos por criar e educar?5 Nãotenho notícias muito precisas dos primeiros anos de sua solidão. Muito menos deseus parentes. Cândida Pereira Lima, quando seu muito querido filho faleceu, aindatinha boa saúde, morando em Brotas, onde morreu em 1890. Não vi correspondência desse tempo, de modo que não sei como foi o relacionamento de Palmiranesse período com os cunhados e com a sogra, sempre chamada em suas cartas de“mãezinha”. Todos devem ter sofrido muito.
Antônio Pedro de Cerqueira Leite e sua mulher, Palmira Rodrigues, tiveram os seguintes filhos:1. Filúvio, nascido em Sorocaba em 19 de abril de 1874, faleceu antes de completar dois anos.2. Júnia de Cerqueira Leite, de Sorocaba, nasceu em 4/6/1875. Foi casada com um sobrinho desua mãe, Nicolau Augusto Rodrigues. Com geração no Rio de Janeiro.3. Lisâneas de Cerqueira Leite, de Sorocaba, nasceu em 5/11/1876. Importante engenheiro ferroviário, chegou a diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil. Casou-se com a prima IdalinaRodrigues em primeiras núpcias, depois com Amélia, outra prima, filha de Randolfo Messiasde Cerqueira Leite. Com vasta geração no Rio de Janeiro.4. Algina de Cerqueira Leite, minha avó, nasceu em Sorocaba, em 9/4/1878[Páginas 83, 84 e 85]