O mercenário alemão Carl Seidler desembarcou no Rio de Janeiro em 1826, entre os aventureiros arregimentados na Europa para combater ao lado dos brasileiros na Guerra da Cisplatina. O conflito encerrou-se dois anos depois, com a derrota do Brasil e a independência do Uruguai, mas Seidler ainda ficou por aqui até 1835.Não gostou muito do que viu.
No livro Dez anos no Brasil, o viajante alemão descreveu as péssimas condições sanitárias do Rio de Janeiro e os horrores da escravidão. Definiu o país como “a terra da fantasia e da insensatez, o estado imperial de um arlequim multicolorido que, com sua vara de condão, transforma ouro em papel, pão em pedra e homens em animais”.
Citada ao fim do capítulo que trata da Guerra da Cisplatina, a dura avaliação de Seidler sobre a jovem nação brasileira captura o espírito crítico de O primeiro golpe do Brasil – Como D. Pedro I fechou a Constituinte, prolongou o escravismo e agravou a desigualdade entre nós (Máquina de Livros; 176 páginas), de Ricardo Lessa. O “arlequim multicolorido” de que falava o alemão era o próprio Pedro, e a transformação de homens em animais alude à chaga moral que seu império tropical sustentou: a escravidão.
Jornalista com passagens por IstoÉ, Gazeta Mercantil e GloboNews, Lessa faz, neste seu sexto livro, um trabalho de desmontagem do que resta da imagem de herói da independência que a historiografia oficialista construiu em torno do primeiro imperador do Brasil. Tal como é apresentado na obra, D. Pedro I foi um suspiro tardio de absolutismo na América, em um tempo no qual ventos constitucionalistas e republicanos sopravam pelo mundo.
Em sua própria vizinhança, na qual as antigas colônias espanholas conquistavam a independência, o Brasil, afirma Lessa, “permanecia estagnado como uma ilha de monarquia cercada de revoltas republicanas de todos os lados”.
Na perspectiva do autor, o duvidoso grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, não foi o evento fulcral desse período conturbado. O ano definidor do Primeiro Império na verdade teria sido 1823, quando uma Assembleia Constituinte com representantes das províncias brasileiras foi chamada ao Rio para escrever a Lei Maior do país – só para ser voluntariosamente dissolvida pelo soberano, que não admitia limites para seu arbítrio.
A constituinte começou suas atividades em maio, na Cadeia Velha, que ficava no local onde hoje está a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Irritado com críticas que os jornais liberais lhe faziam e com certas tendências liberais dos constituintes, Pedro mandou dissolvê-la em novembro.
O monarca valeu-se da mão pesada dos autocratas: a Cadeia Velha foi cercada por tropas militares, ainda sob comando de oficiais portugueses. Cinco representantes provinciais saíram de lá para a prisão.
Preso em sua residência, José Bonifácio, que já fora o mais respeitado conselheiro do jovem imperador, seria exilado em seguida. O fechamento da constituinte é o evento que Lessa chama, com boa razão, de primeiro golpe do Brasil.
O trabalho dos constituintes não foi totalmente desperdiçado. Serviu de base para a primeira Constituição do país, outorgada por Pedro em março de 1824. Lessa explica os cortes, acréscimos, emendas e distorções impostos a mando do rei.
A mudança fundamental foi a criação do Poder Moderador, por meio do qual Pedro poderia impor sua vontade última à nação. Medidas importantes para o progresso social do País foram diluídas ou anuladas.
Foi o caso da instrução primária gratuita em todas as comarcas, que na versão final resumiu-se a uma vaga disposição de criar colégios e universidades – que não saiu do papel. Naquele tempo, nota Lessa, já havia 22 universidades na América Espanhola. A Universidade do Rio de Janeiro, atual UFRJ, primeira do Brasil, só seria inaugurada em 1920.
O primeiro golpe do Brasil examina em detalhe o vínculo da Coroa com a escravatura. Os fazendeiros que exploravam mão de obra escravizada e os mercadores de pessoas constituíam o esteio econômico de Pedro e sua corte. Ideias de uma abolição gradual da escravidão, acalentadas por figuras de perfil mais liberal como Bonifácio, foram esquecidas. As leis que restringiam o tráfico negreiro não eram cumpridas pelas autoridades.
Atada a essa base retrógrada, a monarquia também foi responsável por “um longo apagão na economia brasileira”. A negligência com as contas públicas e com a moeda nacional é uma tradição trazida ao Brasil pela família real portuguesa, em 1808. Quando retornou a Portugal em 1821, o rei D. João VI limpou os cofres (expressão de Lessa) do Banco do Brasil. Seu filho passou então a emitir papel-moeda sem lastro.
As despesas com a malograda campanha na Cisplatina pioraram a situação, e em 1829 o Banco do Brasil decretou falência. “O recurso de emitir papel pintado como dinheiro foi utilizado repetidamente no Brasil até 1994, quando a inflação se estabilizou, com o Plano Real”, diz Lessa.
Amparado em cronistas da época como Seidler e no trabalho de historiadores como Evaldo Cabral de Mello, Lessa compôs um painel sintético das mazelas imperiais e de seu legado. Embora o mito de Pedro como fundador do Brasil já tenha perdido muito de seu antigo viço, O primeiro golpe do Brasil é um livro oportuno quando uma certa nostalgia da monarquia ressurge nas franjas do conservadorismo.
É sobretudo uma necessária defesa do império da Constituição e da igualdade dos cidadãos perante a lei. Não há outro caminho para superar o legado autoritário que o passado nos deixou.