Os Amaral Gurgel: Família, poder e violência na América portuguesa (c. 1600 – c. 1725)
2017. Há 7 anos
também ingressou nos lucrativos negócios da pesca de baleias. Segundo Fábio Pesavento,Pedro de Sousa Pereira será o arrematador do contrato das baleias na capitania do Rio deJaneiro por quarenta anos.33Com o sucesso da expedição de reconquista de 1648, Salvador Correia de Sá eBenevides assumiu o governo do Reino de Angola após a expulsão dos holandeses.34Pedro de Sousa participou ativamente nas sessões da Câmara que deliberaram sobre aformação da armada de reconquista e na instituição do donativo recolhido para ofinanciamento da empreitada.35 José Damião Rodrigues afirma que Pedro de Sousaparticipou da batalha de Luanda ao lado de Salvador do Sá.36
Vivendo em São Paulo de Luanda, Benevides estava impossibilitado deacompanhar de perto os novos empreendimentos de descobertas e a exploração das minasde ouro paulistas, mercê obtida em 1643. Por esse motivo como previa o oitavo capítulodo seu regimento encarregou seu tio, Duarte Correia Vasqueanes dessa obrigação. Coma morte de Vasqueanes em 1650 o cargo voltou a vagar, sendo assim, elegeu para funçãoseu “primo” Pedro de Sousa Pereira os cuidados “das novas descobertas de Paranaguá desua defesa e fortificação” para “que não parem as ditas minas, nem se perca o que estivernelas obrado” [ANRJ, Códice 61, vol. 2, fl. 80v, 24 de maio 1652].
A partir de então Sousa Pereira deveria averiguar as condições de exploraçãomineral que se achassem nas capitanias de “São Vicente, São Paulo, Paranaguá e todasas mais da Repartição Sul” fossem elas “ouro, prata, pérolas, salitre e todos os outrosmetais” [ANRJ, Códice 61, vol. 2, fl. 81, 24 de maio de 05 de 1652].38Ao lado da ambição em torno da busca pelo ouro que cercava a região sul desdedo século XVI havia também certa desconfiança sobre a extensão das riquezas contidasnaquelas minas. Já em 1654, Salvador de Sá escreveu ao rei dizendo que os exploradoresminerais de São Vicente avaliavam as minas “por mais que são; e outros por menos doque mostram”. Lembrava ao monarca das dificuldades de exploração aurífera em localidades tão remotas, dos “sediciosos” moradores de São Paulo e da importância dacautela para que a ganância não dominasse os colonos. E para tal seria fundamental anomeação de alguém desinteressado na condução dos novos descobrimentos e controledos mineradores.39 Não é de se espantar que para um ofício onde tanto zelo fazia-senecessário ele tenha indicado Pedro de Sousa.
Com tal missão, Sousa Pereira passaria a viver por cerca de cinco anos entre o Riode Janeiro, São Paulo e Paranaguá fiscalizando as explorações do ouro de aluvião tendoautoridade sobre “todos os oficiais das ditas minas de todas aquelas capitanias” que“darão logo conta ao dito administrador de tudo que tem até agora obrado, e doprocedimento que nelas há devido com as mais notícias”. Sousa Pereira a partir de entãoganhou notoriedade e uma importância política fora do Rio de Janeiro ampliando paraoutras capitais sua esfera de atuação e poder, que era limitada pela jurisdição daProvedoria de Fazenda do Rio de Janeiro apenas a sua capitania de origem. Todosenvolvidos na exploração e tributação dos metais precisos deveriam seguir “suas ordense mandados sem dúvida nem contradição alguma”,40 como expressava claramente suacarta patente (ANRJ, Códice 61, vol. 2, fl. 82, 24 de maio de 1652).
Porém, como lembrou o próprio Salvador de Sá o espírito rebelde dos paulistas esua insubordinação aos ministros régios, sem dúvidas, seriam um grande obstáculo paraseu sucesso. A desconfiança da Coroa e as informações enviadas por Salvador de Sáfaziam crer que descaminhos fossem constantes e somente uma presença mais forte naregião pudesse dar fim a tal problema.41
O regimento também previa ao seu nomeado, o uso de suas próprias fazendas parafinanciamento em tudo que dependesse o funcionamento das minas, visto os poucosrecursos disponíveis na Fazenda Real, com o reino envolvido na guerra de separaçãocontra a Espanha e a ameaça holandesa ao norte de Salvador.42
Poucas informações temos sobre a comitiva que seguiu com Pedro de Sousa Pereira e por consequência quais foram os homens que escolheu para o acompanhar. Mas, no Rio de Janeiro o seu escolhido comosubstituto na Provedoria de Fazenda por conta das viagens para São Paulo foi ThoméCorrêa de Alvarenga. Logo no mês seguinte ao recebimento da patente foi registrado noslivros da Provedoria a provisão de Alvarenga ( ANRJ, Códice 61, vol. 2, fls. 99-100v, 28 de junho de 1652; AHU, Rio de Janeiro, Avulsos, cx. 3, doc. 59, 22 de outubro de 1654; ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês da Torre do Tombo, liv. 22, fl. 399, 12 de janeiro de 1655).
Sua ausência no Rio de Janeiro não implicou logo na perda do controle daProvedoria de Fazenda por parte da facção que pertencia. Pedro de Sousa partiu do Riode Janeiro passando por Santos, São Vicente até chegar em São Paulo. Lá levantoususpeitas da pequena quantidade dos rendimentos régios depositados na Casa dosQuintos. Receoso da reação dos paulistas com sua presença e mais interessado emalcançar novos descobrimentos e incentivar os moradores da vila para novas descobertas,decidiu não tirar devassa sobre o caso. Mas alertou ao rei dos paulistas “quererem recusarou aceitar a autoridade dos ministros que lá vão”, justificando sua cautela com assuntoporque “com muito menos costuma amotinar-se e desobedecer como a experiência detantos sucessos tem mostrado”.44
Em 1653 chegou a Paranaguá e tratou de mapear a região elaborando o primeiromapa de sua baía datado daquele mesmo ano. Nele indicava detalhadamente a posiçãodas minas conhecidas e que estavam sendo exploradas sem controle régio.45 Junto dessemapa enviou também suas primeiras impressões a rei d. João IV.
Em suma sua missão era fazer com que os veios descobertos fossem taxados de acordo com a legislaçãovigente. Para tanto, deveria enfrentar a obstinação dos exploradores locais quedevassavam aquelas terras em busca de metais preciosos desde inícios do século XVII.Nesse ambiente de difícil negociação e grandes cobiças, logo viu-se envolvido em umnovo crime.
Por volta de 1658, um ano antes de terminar seu período como administrador geraldas minas foi acusado da morte do mineiro espanhol com larga experiência nas minas doPeru, Jaime Comas. Segundo Boxer, este tinha acabado de descobrir um novo e rico veio, mas logo depois de tal achado faleceu.
Duas versões existem para sua morte, a primeira do próprio Pedro de Sousa Pereira de que o ocorrido fora um acidente, a outra dos inimigos do provedor na qual a morte foi sua ordem.46Mais de cinquenta anos depois, em 1711, o sargento-mor Manuel Gonçalves Aguiar fez diligência naquelas paragens sob ordem do governador do Rio de Janeiro Francisco de Castro Moraes, e contou ao rei detalhes daquela história que ainda era contada na região. Segundo ouviu,
Dom Jaime com toda a fábrica necessária para abrir a cova da dita mina emtempo de Salvador de Sá, e que era superintendente das minas Pedro de Sousa,o velho; e com efeito andou o dito mineiro bastante tempo buscando paragem,observando os planetas com os instrumentos que para isso trazia, e depois de tercom efeito aberto a cova da dita mina de beta bastantes estados, os homensbrancos e gentio que nela trabalhavam lhe chamavam feiticeiro, porquanto em odia antes lhes dizia a disposição e a qualidade da terra, de tal cor e tal casta, quehaviam de achar no dia seguinte na dita cata; como com efeito assim se iaachando com espanto dos trabalhadores [...] por cuja causa um mulato do ditoPedro de Sousa Pereira, estando dom Jaime sentado em uma cadeira, o lançarada cova abaixo, onde acabou a vida; e logo em continente se lançou um bandona dita vila de Paranaguá para que nenhuma pessoa fosse a dita mina, com penade morte. (ABNRJ, vol. 39, pp. 403-406, 20 de abril de 1711, citação às pp. 403-404.)
Acidental ou premeditada a morte permaneceu encoberta e não levou asautoridades à uma investigação mais profunda.48
Jaime Comas reclamava a Pedro de Sousa pouco tempo antes de morrer os atritos que passava emParanaguá com outros exploradores. Esta pode ser uma terceira causa de sua morte. Cf. AHU, São Paulo, Avulsos, cx. 1, doc. 8, 15 de outubro de 1658.
Provas mais contundentes contra elevinham de outro caso. Ainda em 1658, já de volta ao Rio de Janeiro Pedro de SousaPereira e Thomé Correia de Alvarenga foram denunciados pela morte de Francisco daCosta Barros.49 [Páginas 83, 84, 85 e 86]
A vítima em questão era um homem de prestígio casado com Isabel Marizdescendente de conquistadores da Guanabara.50 Proprietário do ofício de escrivão daProvedoria, tinha ocupado igualmente o cargo de provedor da Fazenda comoserventuário, possuía um engenho de açúcar em Guapimirim e havia sido procurador daCâmara na corte em 1655. É de se imaginar que ele e Pedro de Sousa se conheciamportanto de longa data, visto a coincidência no tempo em que ambos serviram na mesmaProvedoria.51
Em 28 de abril de 1658 numa noite que estava rumo à sua casa foi morto com tirosde espingarda. Thomé de Alvarenga e Pedro de Sousa, parecem ter tido motivossubstanciais para essa ação. De acordo com Luciano Figueiredo, Francisco Barros tentavajunto ao Governo-geral iniciar devassas contra a administração municipal no Rio deJaneiro era controlada pela facção Correia/Sá.
Naquele ano enquanto Pedro de Sousa estava de volta à frente da Provedoria e seu cunhado era o governador da capitania substituindo d. Luís de Almeida Portugal [DHBNRJ, vol. 4, pp. 317-318, 22 de agosto de 1657].53
Quando a notícia do assassinato chegou em Salvador, o governador-geral,Francisco da Costa Barreto, escreveu ao ouvidor da Repartição Sul preocupado com asaquietações que rodavam a capitania do Rio de Janeiro. Em especial a necessidade dedevassa contra os culpados e “se possa proceder contra eles” a justiça régia [DHBNRJ, vol. 5, pp. 112-113, 09 de abril de 1659].
Curiosamente no Natal do mesmo conturbado ano de 1658, Pedro de Sousa foi agraciadocom o foro de fidalgo-cavaleiro. A concessão foi justificada pelos serviços prestados naProvedoria do Rio de Janeiro, nas minas de Paranaguá e “muitas guerras”.
25 de dezembro de 1658, quarta-feira (Há 366 anos)
Fontes (1)
O ponto demaior destaque foi o socorro enviado para Salvador durante as guerras holandesas a pedido de d. Jorge de Mascarenhas, 1° marquês de Montalvão e vice-rei do Brasil (1640-1641) [ ANTT, Registro Geral de Mercês, Moradias da Casa Real, liv. 4, fls. 194-195, 25 de dezembro de 1658.]. [Página 87]
Apesar dos clamores do governador-geral, outra vez parece que as investigaçõesnão chegaram a assustar os culpados. O crime só voltou à tona e com toda força com aeclosão da Revolta da Cachaça em 1660-61. Os partidários de Salvador Correia de Sáforam derrubados do poder pelos amotinados liderados por Agostinho Barbalho Bezerraque foi aclamado como novo governador do Rio de Janeiro.56 Enquanto Salvador de Sáfoi expulso, Thomé Correia de Alvarenga, Martim Correia Vasques e Pedro de SousaPereira foram feitos prisioneiros pelos revoltosos. Nesse contexto um documento listando53 capítulos com diversas acusações que recaíam sobre o provedor foi produzido eanalisado cuidadosamente por Luciano Figueiredo.57Dentre itens listados estavam descaminhos da Fazenda Real, corrupção,arbitrariedades, violências e tiranias contra o povo fluminense. O caso Francisco da CostaBarros não foi esquecido,
Que o dito provedor Pedro de Sousa Pereira de mão comum com seu cunhadoTomé Correia de Alvarenga que governava esta praça mandaram matar aFrancisco da Costa Barros homem de setenta anos cidadão dos mais autorizadosda principal nobreza dessa cidade varão de grandes partes, e discrição,benemérito deste república muito zeloso do bem comum dela, que como tal poreleição deste Senado, e povo foi enviado a Corte para tratar e requerer algumascoisas tocantes a sua conservação, e melhoramento a qual morte o dito provedore o dito governador seu cunhado mandaram fazer só por haverem ouvido que aodito Francisco da Costa Barros tinha vindo uma provisão de Sua Majestade para poder tirar contas ao dito provedor e por esse respeito foi morto o dito Franciscoda Costa Barros a espingarda.58
Os amotinados reuniram e quantificaram as dívidas que as principais cabeças dafamília Correia/Sá possuíam no momento da revolta. As cifras elevadas podem serconsideradas como um dos motivos que levaram ao levante.59 Pedro de Sousa, além deenraivecer os moradores com suas práticas de corrupção, também inflamou os ânimosdos credores da praça.
Uma vez superados os tumultos de 1661, Sousa Pereira não foi completamentearruinado como exigiam os apelos dos rebeldes. Apesar do duro golpe sofrido pelosCorreia/Sá,60 o monarca não lhe tirou a propriedade do ofício e já em 1663 voltava aocupar a Provedoria da Fazenda.61 Entre idas e vindas Sousa Pereira faleceu em 1673,com mais de sessenta anos, deixando uma marca significativa na história do Rio deJaneiro seiscentista.
Dois anos depois da morte de Pedro de Sousa Pereira, Tomé de Sousa Correia, seu filho, tomou posse na Chancelaria-mor de Lisboa como proprietário do ofício de provedor e também acumulou a função de administrador das minas [AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, cx. 7, doc. 1209, 30 de outubro de 1674 e ANTT, Registro Geral de Mercês, D. Afonso VI, liv. 28, fl. 144, 10 de dezembro de 1674.].
Com a morte deseus pais, a partilha dos bens do casal se fez entre os irmãos. Seu quinhão da herança totalizava 2:055$960, desta soma vendeu a seu irmão ao seu irmão mais novo, Pedro deSousa Pereira, os escravos e sua parte do engenho localizado em Meriti.63
Enquanto a principal propriedade herdada ficava à cargo de Pedro de Sousa, Toméde Sousa passou a ocupar-se principalmente com a Provedoria da Fazenda. Ao tomarposse em 1674 já havia sido capitão de Infantaria64 e permanecia solteiro. Mas dois anosdepois casou-se no Rio de Janeiro com a hispânica d. Cecília de Benevides, filha dofidalgo castelhano d. Pedro de Benevides,65
reforçando os antigos laços familiares que osCorreia/Sá possuíam com o monarquia espanhola. Vale ressaltar que Tomé de SousaCorreia era o procurador de seu tio-avô Salvador Correia de Sá e Benevides no Rio deJaneiro. 66 Teria o capitão-general que vivia em Lisboa acertado esse casamento?
Para tornar-se cavaleiro da Ordem de Cristo ofereceu o envio de cinquenta cavalospor sua conta para Angola.67 Apesar do aval do príncipe d. Pedro e do ConselhoUltramarino para esse serviço, o governador Mathias da Cunha pareceu pouco inclinadoem colaborar. Como não haviam embarcações adequadas para essa diligência o Conselhoordenou que qualquer navio que tivesse partido de Portugal e passasse pelo Rio de Janeirodeveria ter seu capitão obrigado a fazer o transporte, mediante o pagamento do frete peloprovedor.68 Ordens régias foram enviadas ratificando a decisão, mas Mathias da Cunhaalegava que os capitães se recusavam a cumpri-la por não terem licença para navegar atéa África. Apenas cinco anos depois quando a remessa foi finalmente cumprida, Tomé deSousa foi agraciado com o hábito e sua respectiva tença.69 [Páginas 88, 89 e 90]
Não é necessário alongar-se na constelação de interesses que o acesso àProvedoria trazia para diferentes grupos da elite fluminense. Além das honras eprivilégios adquiridos com o cargo, era igualmente cobiçado o acesso aos seus ganhospecuniários obtidos de formas lícitas e ilícitas. No entanto, um último aspecto erafundamental. O papel de provedor da Fazenda reunia um série de competências de grandeabrangência no século XVII, se comparado ao seu congênere reinol, o controle sobre oarrendamento dos direitos régios era muito maior.113 Não é de surpreender portanto, quefosse disputado pelas elites locais de todo o Brasil por conta de sua centralidade ecapacidade de influência no exercício da política local.114Em meio as incertezas da Provedoria, Cláudio Gurgel do Amaral tornou-seprocurador da Fazenda Real em 1682.115
A função de um procurador da Coroa naestrutura administrativa era clara, “representar a Coroa nas causas de Fazenda que atenham como parte”116 o que significava em alguma medida a fiscalização dofuncionamento da Provedoria municipal e em consequência uma relação tensa com oprovedor. Embora não tenhamos encontrado provas documentais desse conflito, atritosentre agentes e órgãos com jurisdições paralelas eram cotidianos no exercício daadministração colonial.117 [Página 100]
Cláudio Gurgel permaneceu nesse posto por cinco anos, coincidentemente ou não,até o início de 1687, ano em que Pedro Pereira de Sousa foi morto e o ofício de procurador tornou-se vago pelo fim do triênio.118
Oito meses após a saída de Cláudio do Amaral da Provedoria uma emboscada letal foi executada, e a narrativa daquela madrugada feita pelo sargento-mor Martim Correia Vasques impressiona pela brutalidade.Segundo ele, o assassinato foi pensado meticulosamente para que não houvessechances de escapatória. Enquanto a embarcação se dirigia rumo ao engenho, oscriminosos derrubaram no meio do rio um troco atravessado “para que não pudesse aembarcação ficar com ligeireza, senão que dando em pouca água”. Com isso as vítimasdesavisadas buscaram saída do rio para a parte onde a cilada estava preparada com seusinimigos a espera. Então,[...] de repente três ou quatro clarinassos [sic] com tanta quantidade de balas quetreze se empregaram no corpo do meu dito sobrinho e umas sobre o coração, eoutras no lado esquerdo, e pelo braço e as mais pela cabeça, sendo todas tãopenetrantes que de improviso morreu das ditas feridas e da mesma maneira ocriado em que se compregaram [sic] as balas com tal força que lhe levaram asmãos fora e pelo rosto o entropeçaram de tal modo que não ficou com forma dehomem e o outro criado do dito defunto chamado Manoel Moreira ficougravemente ferido de outras balas.119As acusações recaíram diretamente sobre os Amaral Gurgel desde que asprimeiras notícias do assassinato passaram a percorrer a cidade. O fidalgo descendentepor via materna de uma das mais poderosas famílias da América portuguesa morreu trêsmeses antes de seu tio Salvador Correia de Sá e Benevides. Este talvez nem tenharecebido a notícia em Lisboa. Restava aos familiares do Rio de Janeiro pedir ao rei epressionar os ministros de justiça a punição aos homicidas.2.2. Em busca de justiçaQuando o assassinato ocorreu o ouvidor-geral do Rio de Janeiro, Tomé deAlmeida e Oliveira, estava ausente da cidade. Havia viajado em correição e encontravase na Câmara de São Paulo quando foi surpreendido com a notícia.120
Sua correição na Câmara paulista foi realizada em janeiro de 1687. Cf. ACVSP, vol. 7, pp. 340-347, 30 de janeiro de 1687. Mas outros assuntos judiciais o fizeram permanecer na vila até o início do ano seguinte. Cf. RGCMSP, vol. 3, pp. 530-533, 03/10/1687; ACVSP, vol. 7, pp. 336-337, 22/12/1687; ACVSP, vol. 7, pp. 353-354, 25 de janeiro de 1688 e RGCMSP, vol. 3, pp. 537, 26 de janeiro de 1688.
Sua ausência da cabeça da comarca atrasou o início das investigações. Por isso, somente em maio de 1688, oito meses após o assassinato, enviou as primeiras informações para Lisboa.121
Em sua carta, justificou sua demora pelas outras obrigações na comarca e a correição realizada em São Paulo, mas logo quando foi informado do ocorrido finalizou seus trabalhos epartiu para o Rio de Janeiro.Detalhou o estado em que encontrava-se a cidade, quando muitos moradores dorecôncavo sentiam-se ameaçados pelos “matadores”. Segundo ele, a morte de Pedro de Sousa
“o mais poderoso homem que havia destas partes [...] foi sentida por todo o povo”.
Culpava diretamente da morte os Amaral Gurgel com seus “parentes e aliados”, eempenhava-se em prender os culpados “sem o temor de muitas ameaças que os ministrosde Vossa Majestade temem quando tratam de fazer o seu serviço”. O ConselhoUltramarino ao avaliar a questão recomendou ao rei que enviasse para a cidade um desembargador da Relação baiana pela “qualidade deste caso”, a consulta foi aprovada pelo rei e Belchior da Cunha Brochado que já estava à caminho da Repartição Sul foi o escolhido (AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, cx. 9, doc. 1651, 15 de dezembro de 1688).122
Foi encarregado de missão especial nascapitanias do sul e por isso seguiu rumo ao Rio de Janeiro, para onde o rei d. Pedro II oencarregou de diversas diligências.123 Entre os trabalhos que deveriam ser feitos por elena cidade estavam o auto de residência do antigo ouvidor André da Costa Moreira que havia sido duramente atacado pelo governador Duarte Teixeira Chaves acusado de “grande ladrão público”; reclamações da Câmara contra o bispo d. José de Alarcão que havia se mudado para São Paulo abandonando a sede do bispado por dois anos e a correição de 1689.124
Sobre o caso de Pedro de Sousa, o Conselho Ultramarino recomendou aodesembargador continuar a devassa que estava em mãos de Tomé de Almeida, executara prisão dos indiciados e remetê-los junto com os autos para a Relação da Bahia, onde o ouvidor-geral do crime seria responsável pelo julgamento.125
Ocorre que no fim de 1688,chegaram a Lisboa diferentes cartas dos atores envolvidos no episódio com versões contraditórias e que punham o Conselho Ultramarino em dúvida sobre qual posição tomar.
O relato mais detalhado dos acontecimentos que já citamos, foi escrito por Martim Correia Vasques.126 O sargento-mor faz uma descrição pormenorizada dos acontecimentos da noite de 20 de setembro de 1687, provavelmente colhido de Manoel Moreira, sobrevivente e testemunha ocular da emboscada.
Em sua versão os mandantesdo crime além de acompanhados de “mulatos e negros, todos armados de muitas armas”,possuíam “vigias nesta cidade para os avisarem do dia em que [Pedro de Sousa] partiapara sua fazenda para se acharem prevenidos para a sua empresa”. Depois de consumidaa morte, os criminosos refugiaram-se no engenho pertencente a João Velho Barreto ondeestavam dispostos a resistir às ordens da justiça.
Correia Vasques esforçou-se em mostrar ao rei a qualidade e dignidade que seusobrinho possuía, afirmando ser ele,Um homem fidalgo da Casa de Sua Majestade, alcaide-mor desta cidade cujospai e avós governaram sempre nela e sendo um vassalo de que tinha feita a VossaMajestade muitos serviços servindo-o muito anos no ofício de provedor daFazenda Real de que é proprietário seu irmão [...], concorreu para a NovaColônia do Sacramento com muita despesa de sua própria fazenda, e da mesmamaneira em outra expedição para o Reino de Angola.Apontou para as tentativas de Cláudio Gurgel do Amaral em obter carta de segurojunto ao ouvidor
“com o pretexto de servir o ofício de procurador da Real Fazenda”
e elucidou o motivo por trás do atentado: impedir que o ofício de provedor continuasse nasmãos de Pedro de Sousa. Martim Correia considerava-se
“o parente mais prejudicado do dito morto em razão de que era o arrinho de minha velhice e o remédio de sete filhas a quem queria dar-lhes estado à custa de sua fazenda por se doer as minhas obrigações”.[Páginas 101, 102 e 103]
O ouvidor-geral não tinha dúvidas quanto a autoria do crime. Tomé de Almeidanovamente escreveu ao Conselho Ultramarino seguindo em boa parte o depoimento de Martim Correia. A versão enviada pelo magistrado reforçava os mesmos pontos, mas trazia novos elementos (A descrição a seguir é baseada em: cf. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, cx. 9, doc. 1672, 10 de agosto de 1688). Afirmava já ter realizado naquela altura seis prisões e agora tratava de “buscar os cabeças” porque enquanto
“estes homens não forem presos haverá grandes atrocidades, porquanto são atrevidos e quiseram matar meu antecessor [o ouvidor João de Sousa], gente soberba, que com seus parciais e parentes tem obrado muitas [mortes] sem razões”.
Terminava sua carta com duas importantes revelações. A primeira era a tentativade Cláudio Gurgel de suborná-lo para conseguir a carta de seguro em troca de quatroarrobas de açúcar. Mas a mais grave era a interferência de d. José de Barros Alarcão emfavor dos acusados. Dizia que “o bispo ampara estes homicidas não como ministro depiedade, mas com ódio da morte de Pedro de Sousa de quem era inimigo e dos ouvidoresgerais” e que os culpados “se queixam a Vossa Majestade de mim por via do Bispado”.Concluía tentando demonstrar sua imparcialidade no processo sempre “atendendo asminhas razões, que sem razão a dos criminosos e de um bispo odioso, pois as minhas sedirigem a bom fim e as suas dando cerco a seus delitos”.
De fato, d. José Alarcão posicionou-se contrário as ações do ouvidor. Um protestocontra o prelado enviado na mesma remessa o acusava de interferir no andamento dajustiça; não colaborar com o juiz, com o governador e outras partes envolvidas; além dedar proteção a Cláudio Gurgel. Em tudo isso contava ainda com a ajuda do vigário-geralJoão Pimenta de Carvalho (AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, cx. 9, doc. 1674, 07 de agosto de 1688).
Por que o bispo manteria essa posição contra as principaisautoridades do governo civil? Tentaremos responder esta questão mais adiante.Mostrando o outro lado da moeda, um parente anônimo de Cláudio Gurgelescreveu fazendo uma defesa da família, negando qualquer envolvimento dos AmaralGurgel com a morte e pedia o fim das perseguições a seus integrantes.129 Mas ocontraponto definitivo foi escrito pelos próprios acusados (As citações a seguir foram extraídas de: cf. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, cx. 9, doc. 1677, 10 de agosto de 1688).
Uma longa carta coletiva escrita pelos acusados dava conta das “vexações” e “tiranias” que julgavam estar passando nas mãos dos ministros de justiça. Tudo porque João Velho Barreto haviaencaminhado para Lisboa uma denúncia contra o ouvidor Tomé de Almeida e desde então [Página 104]
“tem este ouvidor obrado tantas injustiças contra ele e seus parentes” deixando-os “nosmais miserável estado”.A carta ainda informa a cumplicidade do governador João Furtado de Mendonçaque era “mancomunado” com o letrado. Ambos os impossibilitavam aos suplicantes,[...] os meios da justiça, não querendo passar cartas de seguro, impedindo aostabeliães a passarem as certidões que se requerem, atemorizando os advogados,e prendendo-os se por nossa parte fazem algum requerimento, e afugentandoaquelas pessoas que podem falar em nosso lado, descompondo aos religiosos deque nos valemos para levar e despachar nossas petições, sem querer deferir aelas, nem aos agravos que lhe intimam para a Relação deste Estado, e finalmenteaté mandando que a título de resistência nos matem donde que que nosencontrem.Para eles a culpa do assassinato era dos próprios parentes de Pedro de Sousa“tendo eles muitas razões” para o feito com ajuda dos ministros do rei “por serem parciaisjuntamente dos ditos parentes”. Ao denunciar o complô, afirmavam que João Furtado eTomé de Almeida espalharam pela cidade os boatos sobre a culpa que lhes era imputada,a devassa que ainda não estava concluída era repleta de falsidades ditas por testemunhascompradas a quem “prometeram tantas dádivas para que se jurem contra nós”.Criados, escravos e familiares do grupo estavam sendo presos sem osprocedimentos judiciais adequados. A própria mulher de João Velho Barreto esteveencarcerada por dois meses mesmo sendo uma “das mais nobres desta cidade”. Éinteressante notar que os próprios suplicantes afirmam que a inclusão de Cláudio Gurgelentre os culpados era por seu interesse em ser provedor da Fazenda, cujo cargo estavadisposto a “arrendar”. Diante de tudo isso pediam ao rei que um ministro isentoencaminhasse as investigações e condenasse os reais culpados.Mas nada do que foi dito surtiu grande efeito. A chegada de Belchior Brochadoao Rio de Janeiro apenas intensificou as perseguições contra o grupo. Em carta aoConselho Ultramarino,131 o desembargador sindicante informou que enquanto os boatossobre o crime circulavam, a população permanecia desassossegada pela falta de soluçãopelas autoridades locais e só a justiça régia poderia dar para “a aquietação daquela cidade que estava tremendo”. A partir de então o governador e o desembargador passaram atrabalhar em conjunto na captura dos acusados. Foi preparado um comboio composto poroficiais da infantaria armada e oficiais militares para prendê-los.Logo soube-se que tinham se refugiado na Serra de Sete Lagoas e que com a ajudade negros, mulatos e mamelucos estavam preparados para resistir aos enviados da justiçaresponsáveis por sua prisão se “fazendo fortes, com sentinelas, trincheiras e casasfortificadas”.Preparou-se em segredo na cidade a tropa que deveria partir para a serra e executaras prisões ordenadas pelo desembargador. A missão recebera ordem expressa para que nocaso de não conseguir capturar os culpados deveria devastar completamente asconstruções nas quais haviam se refugiado “de tal maneira que não pudessem eles tornara habitá-las”. O que Belchior Brochado não contava era a extensão da rede de informantesque os Amaral Gurgel possuíam no Rio de Janeiro. Mesmo isolados entre os morros dosertão da capitania avisos sobre a “expedição secreta” organizada pelo desembargadorchegaram aos seus ouvidos. Antes mesmo que a tropa chegasse em seu esconderijo játinham evacuado o local tornando a expedição um fracasso. As fortificações deixadaspara trás foram destruídas como havia sido ordenado aos soldados.O magistrado entretanto, tinha conseguido fazer avanços significativos reunindodados sobre quem foram os homens diretamente envolvidos na morte do provedor. Oassassinato não contou com “testemunhas de vista” o que lhe dificultava o trabalho, masatravés de “conjecturas, confissões, extrajudições [sic] e outros requisitos” tinhaconseguido reunir o nome dos envolvidos. A devassa escrita por ele, junto com os papéisenviados por Tomé de Oliveira e Martim Correia Vasques são coincidentes ao incriminaros mesmos nomes. [Páginas 105 e 106]
Para Belchior Brochado, Antônio de Abreu e Lima, Francisco do Amaral Gurgele um mulato forro chamado Manoel dos Santos foram responsáveis pelos disparos quemataram ao provedor e Martinho da Silva. Mais à frente no curso do rio esperavam Bentodo Amaral e seus escravos para dar-lhe o golpe fatal que não foi necessário. Além dissoos dois irmãos contavam com a ajuda de “espias e consultores” que ajudaram a planejaras mortes, eram eles: Manuel Martins Quaresma, Francisco Correia Leitão, Miguel daCosta e Manoel Jordão da Silva. Estes quatro últimos apesar de não terem participado inloco do assassinato também eram considerados culpados pelo desembargador sindicante.Adiantando-se em seus trabalhos o desembargador sindicante ordenou o sequestro dosbens de Antônio de Abreu e Lima.132A lista desenvolvida por Belchior da Cunha Brochado contava então com noveculpados, destes, cinco eram diretamente ligados ao tronco dos Amaral Gurgel. Sendodois deles por via de casamento: Francisco Correia Leitão e Manuel Martins Quaresma.Manoel Jordão da Silva também possuía laços fortes com a família, apesar de não tercasado com nenhuma de suas descendentes, seus dois irmãos: João Batista Jordão e JoséNunes da Silva o tinham feito, trajetórias já percorridas no capítulo anterior.A partir daí podemos inferir com mais clareza que os envolvidos faziam parte dobraço da família ligado aos casamentos realizados com a família Jordão. Tanto FranciscoCorreia Leitão quanto Manuel Martins Quaresma eram casados com filhas doscasamentos de João Batista Jordão e José Nunes da Silva. Francisco, Bento e Cláudio doAmaral eram seus filhos da mesma dupla de irmãos, e portanto, cunhados dos outros doissuspeitos.
Os irmãos Bento e Francisco tinham por volta de quarenta anos na época doassassinato e escassas eram as informações sobre eles, que de fato passaram a ter maior visibilidade depois do assassinato de 1687. Bento do Amaral Silva se destacava peloingresso na vida militar, em 1680 foi feito sargento-mor das ordenanças.133 Em sua cartapatente o governador interino, João Tavares Roldon, afirmava ser Bento do Amaral ocapitão mais antigo do mesmo regimento de cavalos e por isso merecedor imediatodaquela nova vaga nas milícias.Francisco do Amaral Gurgel tinha um passado ainda mais encoberto, por serhomônimo de seu tio clérigo com muitos negócios e propriedades na cidade do Rio deJaneiro, precauções devem ser tomadas para evitar confusões. No documento odesembargador Belchior da Cunha Brochado afirma que apesar de jovem naquela épocajá colecionava grande quantidade de mortos e “era de tal condição que publicava terexcessivo gosto quando o via os homens a que atirava a espingarda estar perneando”.134Exagero ou verdade, o comportamento truculento e o gosto pelo sangue fizeram deFrancisco do Amaral nos anos seguintes uma figura temida por suas vinganças, fazendocom que alguns historiadores o considerassem uma lenda.Outros dois acusados merecem uma atenção especial. João Velho Barreto, eradono do engenho Santo Antônio em Meriti, e sua fazenda foi utilizada como esconderijodepois do homicídio.135 Antônio de Abreu, por sua vez, já havia realizado negócios comos Correia/Sá. Em 1669 vendeu metade de um engenho situado na Ilha do Governadorao sargento-mor Martim Correia Vasques um dos líderes da parentela.136 Entretanto umacontecimento das vésperas do assassinato de Pedro de Sousa Pereira é elucidativo dosnegócios que o senhor de engenho tinha com a facção. Segundo conta João Fragoso,[...] Antônio Mendes de Almeida [era], nas suas palavras, um homem forasteiroe sem parentes na terra. Segundo Antônio, no ano de 1686 ele fora preterido docontrato dos dízimos, devido às armações do provedor da Fazenda Real, Pedrode Souza Correia, e de “seus amigos”. Antes de mais nada, Antônio acusava tersido impedido de participar de tal arrematação, através de artifícios montadospelo provedor da Fazenda, o ouvidor-geral da cidade, e do juiz ordinário Baltazarde Abreu Cardoso. Uma vez feito isto, o mesmo provedor, por meio de um criado seu, arremataria os dízimos e nisto fora auxiliado por Manuel Fernandez Franco,Antônio de Abreu de Lima e Francisco Gomes Ribeiro; o primeiro teriaadquirido o contrato para depois passá-lo para a criatura do provedor, e os doisúltimos serviram como fiadores do mesmo criado.137Nesse curto relato algumas informações importantes podem ser extraídas. Antôniode Abreu e Lima serviu como fiador do testa-de-ferro utilizado por Pedro de Sousa Pereirapara a arrematação dos dízimos da capitania, junto dele Francisco Gomes Ribeiro tambémauxiliou na armação do provedor. Apenas um ano depois Antônio de Abreu e Limamudou de lado e estava envolvido no assassinato.
Ainda segundo João Fragoso, na década de 1680 a família Correia/Sá sofreriaduros golpes. O primeiro era a existência de cisões internas ao grupo, a morte de Pedrode Sousa Pereira pode ser um indicativo desse fenômeno. Logo no primeiro dia de 1688,o mais poderoso dos membros da facção, Salvador Correia de Sá e Benevides, morreu emLisboa.138 O enfraquecimento da família era claro em detrimento da ascensão de outrosgrupos familiares menos tradicionais em busca dos espaços de expressão de poder, comoos Amaral Gurgel.As ligações entre Antônio de Abreu e Pedro de Sousa, não eram as únicas dosacusados com o provedor. Belchior Brochado avisava que os acusados eram “os maisobrigados” ao provedor porque esse “os tinha favorecido, e amparado, e a alguns procuroucasamentos dando-lhes ajuda para seus dotes por cuja razão serviu ainda de maiorescândalo este delito”. Nas suas investigações tinha concluído que os Amaral Gurgeldeviam de “favores” feitos pelo provedor.Depois da fuga, os Amaral Gurgel e seus cúmplices dirigiram-se para a vila deSão Paulo onde possuíam vínculos. Para Cunha Brochado o exílio no planalto dePiratininga fez com que fosse impossível de serem detidos. Empenhado em resolver asituação, Belchior Brochado, comunicava ao rei d. Pedro II novas dificuldades queimpediam o sucesso para a execução das ordens dadas pelo Conselho Ultramarino.Segundo ele, cidadãos importantes da cidade do Rio de Janeiro apoiavam os AmaralGurgel, citando novamente o bispo d. José de Barros Alarcão que os “patrocinava”.139[Páginas 107, 108 e 109]
Principalmente em favor de Cláudio do Amaral Gurgel que junto com Francisco e Bentodo Amaral eram “as principais cabeças da família”.D. José de Alarcão e Cláudio Gurgel provavelmente conheciam-se de outros anos.Suspeitamos que o bispo tenha sido professor do jovem Cláudio Gurgel na Universidadede Coimbra. O período em que este foi estudante no reino (1670-1677) é coincidente como momento em que o doutor José Barros de Alarcão lecionava aos alunos de DireitoCanônico antes de iniciar sua trajetória nos quadros eclesiásticos.140 Um fator pode ajudara explicar o posicionamento do bispo frente ao caso.A Provedoria teve atritos frontais com o bispo ao negar-lhe provisões,mantimentos e embarcações necessárias para realizar suas visitas às igrejas do bispado nacompanhia do vigário-geral. Ordenados e côngruas do corpo eclesiástico estavam sendopagos com dificuldades, tudo isso levou o bispo a encaminhar a questão ao rei queposicionou-se favorável ao prelado.141 Mas novamente, Belchior Brochado foi quemmelhor esclareceu a relação entre o bispo e o provedor.Em sua devassa realizada sobre o procedimento do líder eclesiástico arrolou umagrande série de irregularidades.142 O bispo em sua passagem por São Paulo haviadescaminhado ouro e vendido as barras para o Reino de Angola, criado um imposto semautorização régia sobre o apresamento de índios e tido “ocasiões próximas” com mulheresda vila. No Rio de Janeiro tratava mal os homens de respeito da cidade chamando-os de“cristãos-novos e vilões ruins”, questionava a fidelidade das mulheres da elite afirmandoserem “raras as que a seus maridos guardam lealdade” e ameaçava aos fiéis deexcomunhão sem justificativas válidas.Sobre o provedor Pedro de Sousa, era notória sua inimizade. Em certa ocasião, obispo disse ser descendente de “um mouro da vila de São Vicente”. Ajudou LuizQueixada a fugir para o reino mesmo sendo procurado pelo desembargador e pediu aoscarmelitas que abrigassem Cláudio Gurgel em seu convento para fugir da justiça. [Página 110]
Brochado afirmava que os bispo gabava-se porque “uma cartinha sua era mais poderosapara Vossa Majestade que as informações de seus ministros”.Diante de tantas informações colhidas sigilosamente pelo desembargador o reiouviu o parecer do conselheiro Antônio Paes Sande e ordenou que bispo embarcasse napróxima frota e retornasse a Lisboa, aproveitando o pedido de licença feito pelo preladopara cuidar da saúde no reino. Dissimulando sobre as reais motivações de seu afastamentoda diocese.
3 Uma longa lista de cartas, relatórios e pareceres integra o processo que correu contra o bispo no Vaticano,desde as acusações e testemunhos até a decisão final que absolveu o prelado. Cf. ASV, Archivo dellaNunziatura in Lisbona, cx. 8, fls; 9-12, s.d; cx. 8, fls. 13-13v, 30/12/1692; cx. 8, fls. 15-18v, 31/03/1693;cx. 8, fls. 21-21v, s.d.; cx. 8, fl. 23, s.d.; cx. 8, fls. 25-26, 03/03/1693; cx. 8, fls. 27-27v, 13/01/1697; cx. 8,fls. 29-34v, 11/11/1693; cx. 8, fl. 35, 25/07/1695; cx. 8, fls. 36-39, 22/07/1695; cx. 8, fls. 41-42v,16/01/1697; cx. 8, fls. 45-47v, s.d.; cx. 8, fls. 49-50v, 24/11/1696; cx. 8, fls. 51-52v, 29/11/1696; cx. 8, fl.53, 01/02/1697; cx. 8, fl. 54, 22/07/1695; cx. 8, fl. 55, 14/11/1695; cx. 8, fl. 58v, 07/04/169; cx. 8, fl. 60,22/06/1697; cx. 8, fl. 62, s.d. Pequenas ementas dos referidos documentos foram consultados em: cf.ABREU, Luís Machado de & MIRANDA, José Carlos Lopes de (Coords.). Arquivo Secreto do Vaticano:Expansão portuguesa – Documentação. Brasil. Lisboa: Esfera do Caos, 2011, t. III, pp. 31-35.
Em meio a tantas suspeitas, o assassinato de Pedro de Sousa Pereira e seusdesdobramentos mobilizaram diferentes setores da elite seiscentista do Rio de Janeiro.Por trás do crime estavam o controle da Provedoria de Fazenda, as corrupções cometidaspelos ocupantes do cargo de provedor ao longo dos vários anos de desmandos dehegemonia dos Correia/Sá.144 Por outro lado a ascensão de novas facções como osAmaral Gurgel em busca de espaço no panorama político da cidade, aliadas a outrossegmentos opositores dos parentes de Salvador de Sá e Benevides convergiram para amorte do provedor.Interpretar a ação dos Amaral Gurgel como justiceiros do povo contra agentesadministrativos tiranos apresenta-se mediante este cenário completamente inviável. Oassassinato explica-se de forma simultânea com a ambição em participar de forma maisativa na vida política da capitania. Ao que parece no fim do século XVII o equilíbriotênue entre as facções da elite fluminense se romperam. Segundo João Fragoso ocorriamcisões entre antigos aliados dos Correia/Sá. Os Teles/Barreto que até então eramintimamente ligados ao bando teriam mudado de lado. O próprio vigário-geral João Pimento Carvalho que era aparentado dos Teles/Barreto tomou posição favorável aosAmaral Gurgel.145Outro exemplo é João Velho Barreto. Em 1683 solicitou ao rei que ManoelCorreia Vasques fosse preso e enviado para Lisboa. Este não aceitava o casamento deAntônia Teresa Maria Pais que ficara viúva de Tomé Correia Vasques, com ele suplicante.Por isso, Manoel Vasques invadiu o engenho de Velho Barreto em Irajá e a sequestrou.146Apesar da ordem real ter sido a favor do noivo suplicante os ressentimentos certamentenão desapareceram.Em 1690, Luís César de Meneses tomou posse como novo governador.147 Nãodemorou para informar a d. Pedro II da situação que encontrou na cidade. João de Campose Antônio de Abreu e Lima embarcaram clandestinamente e sem licença nas frotas eencontravam-se no reino. Os principais culpados permaneciam na vila de São Paulo “ondeé mui dificultoso prenderem-se ali pela parcialidade daqueles ministros, como pela poucaobservância que dão às ordens”. Lamentava o fato de não possuir jurisdição sobre ascapitanias de baixo onde os criminosos andavam “absolutos, insolentes e com nenhumrespeito guardam as justiças de Vossa Majestade”.148 O que o governador não esperavaera uma nova e audaciosa volta dos fugitivos ao Rio de Janeiro.
Francisco e Bento do Amaral com quarenta homens armados fizeram uma entradacom barcos no recôncavo do Rio de Janeiro em 1691 invadindo fazendas de algunsmoradores “levando-se seus escravos e o que mais lhe pareceu, atemorizando-os de sorteque quase despovoaram as fazendas em que vieram”. Quando soube da invasão ogovernador ordenou que cinquenta soldados “dos melhores desta praça” combatessem osassaltantes, porém já era tarde demais e os Amaral Gurgel tinham voltado com tudo o queroubaram para São Paulo. Embaraçado, Luís César de Meneses, informava que escreveupara a Câmara paulista para impedir a saída de “semelhantes tropas”.149 Ao analisar ospapéis enviados pelo governador, o conselheiro João de Sepulveda e Mattos informouque os irmãos haviam sido ajudados por um certo Luiz Corrêa e sua “tropa” era composta na realidade por índios flecheiros vindos dos sertões da capitania de São Vicente. Aentrada era uma vingança contra devedores dos Amaral Gurgel e contra César de Menesesque mantinha prisioneiro José Nunes da Silva, pai dos fugitivos.150Apesar das ordens régias que determinavam o envio dos acusados para a Relaçãobaiana tanto Luís César de Meneses quanto os magistrados permaneceram sem ter comoagir de maneira mais decisiva para resolução do problema.151 E os criminosos apesar dasperseguições permaneciam gozando de liberdade em São Paulo vivendo longe do alcancedas autoridades do Rio de Janeiro.Como morreu solteiro e sem filhos, os bens deixados por Pedro de Sousa Pereiraforam alvo de litígio entre Martim Correia Vasques e a Ordem de São Bento. Em seusdois testamentos o provedor arrolou em sua herança o engenho em Meriti, dois curraiscom quinhentas cabeças de gado no distrito de Juari (atual Campo Grande), oitenta e oitoescravos além de “muitas terras em diversas partes em diversas partes, do que aqui nãoposso fazer expressa menção por não ter plena notícia delas”.152Os beneditinos eram beneficiários do espólio de Pedro de Sousa porque o irmão eparente mais próximo do defunto, o frei João de Sant’ana de Sousa, havia sido ordenadono mosteiro. Acontece que o padre há muito não residia no Rio de Janeiro, pois tornouse abade no mosteiro da Bahia e depois procurador da Província Beneditina do Brasil emRoma.153 Por outro lado, Pedro de Sousa havia prometido em testamento mais de trintamil cruzados aos filhos e filhas de Martim Correia Vasques, seus primos.154 A soluçãoencontrada entre as partes foi a seguinte. A ordem religiosa abriu mão do engenho comtodas as suas terras, partidos e equipamentos que eram “por do cabeça do reverendo padrefrei João de Sousa” e o passou ao sargento-mor. Em troca, ele e seus filhos desistiam daherança de trinta mil cruzados que foram passados ao mosteiro do Rio de Janeiro.155 [Páginas 111, 112 e 113]
iniciou-se com o governo de Luís de Céspedes Xeria em Assunção, por volta de 1628.Céspedia Xeria casou-se com d. Vitória de Sá, sobrinha do governador fluminense. Esteo acompanhou rumo ao Paraguai e depois de incursões militares bem sucedidas contraguaranis tornou-se encomendero em Tucumã.166 José Carlos Villargada, suspeita que ocasamento em questão mostra como os interesses de Benevides não estavam focadosunicamente no tráfico atlântico e no comércio com a região platina. O capitão tambémbeneficiava-se nesse momento do apresamento de indígenas realizados por paulistas nasmissões jesuíticas do Guairá. A família Correia/Sá era,Detentora de beneficiadas relações em Angola e Buenos Aires, com importantesaliados e privilégios em São Paulo – alguns serão contestados depois –, a pontaparaguaia de Tucumã fechava, assim, sua inserção no amplo circuito decontrabando, das trocas no mercado regional platino e vicentino, de engenhos deaçúcar, do ouro paulista, do fornecimento de escravos negros e do apresamentode cativos indígenas. Um empreendimento diversificado e articulado.167Mas nem todos os paulistas estavam satisfeitos com a influência que o governadorfluminense conservava na vila. Segundo algumas denúncias feitas por jesuítas, Luís deCéspedes Xeria teria levado em seu período como governador do Paraguai mais de trêsmil índios cativos que foram vendidos no Rio de Janeiro e abasteceram os engenhospertencentes à família Correia/Sá.168 Antônio de Godoy Moreira era um dos signatáriosda escrita em 1660 pela “nobreza de São Paulo” e “outros paulistas de veneração erespeito”, nela posicionava-se contra a revolta liderada por Jerônimo Barbalho e defendiaa entrega do governo a Salvador de Sá imediatamente.169
De todo modo, com um casamento bem arranjado, Bento do Amaral Silva nãoteve dificuldades em estabelecer-se como figura de destaque na sociedade paulista de fimdos seiscentos, como em sua representação em nome do “povo de São Paulo” contra a reforma monetária realizada por d. Pedro II.170
ACVSP, vol. 7, pp. 453-454, 02 de novembro de 1694. Sobre a reforma monetária ocorrida no reinado de d. Pedro II, ver: cf. GALANTE, Luís Augusto Vicente. Uma história da circulação monetária no Brasil do século XVII. Tese de Doutorado, Brasília, Universidade de Brasília, 2009, pp. 139-183.
Bento do Amaral foi quem estabeleceu raízes mais profundas em São Paulo, onde passou a residir em fazendas próximas ao rio Tietê e alcançando no início do século XVIII a posição de ouvidor interino, como mostraremos no capítulo 4. Seu irmão Francisco do Amaral também teve algum protagonismo na sociedade paulista. Apesar de forasteiro foi eleito como almotacel da vila em 1695.171
Mas diferente de Bento do Amaral, não tinha interesse em fixar-se noplanalto de Piratininga, e voltou ao Rio de Janeiro assim que lhe foi possível.O que importa destacar é que, apesar dos bandos e ordens enviadas pelogovernador Luís César de Meneses para a Câmara de São Paulo ordenando a prisão eenvio dos foragidos para o Rio de Janeiro, nada foi feito pelos camaristas paulistas nessesentindo. Ao contrário, estes mostram-se receptivos aos Amaral Gurgel exilados na vilae que como mostramos, rapidamente imiscuíram-se nas instituições do poder local.
Com o sucesso das fugas, o tempo ajudou que os Amaral Gurgel caíssem noesquecimento das autoridades fluminenses, ou pelo menos deixassem de ser umaprioridade. Em 1693, Luís César de Meneses deixava o controle da capitania entregandoo governo a Antônio Pais Sande.
O novo governador pouco colaborou na continuidadeda perseguição aos Amaral Gurgel, o que sem dúvidas beneficiou o grupo.As morosas batalhas judiciais também colaboraram para a reabilitação dos AmaralGurgel na sociedade fluminense. No mesmo ano de 1693, o governador-geral AntônioLuís Gonçalves da Câmara Coutinho, escreveu uma carta ao rei dando detalhes doandamento do processo.172
João Velho Barreto, João Batista do Amaral, AntônioCoutinho Figueira, João de Campos Mattos, Francisco Correia Leitão, Bento do AmaralSilva e Cláudio do Amaral Gurgel receberam uma sentença desfavorável na Relação daBahia. Por isso os suplicantes desejavam recorrer a ela na Casa da Suplicação de Lisboa.O governador-geral mostrou-se contrário ao pedido, lembrando que não eracostume que casos crimes fossem apelados ao reino, apenas os cíveis. A justificativa dossuplicantes era que a o tribunal baiano naquele momento contava com dois “inimigos [Páginas 116 e 117]