A "Lei da Cumbuca": a Revolta contra o Sorteio Militar. Fábio Faria Mendes
1997. Há 28 anos
No ano de 1875, o recrutamento para o Exército e a Armada seria realizado no Império brasileiro, pela primeira vez, através de um sorteio univer-sal. A nova forma de seleção militar substituria o odioso recrotamemo forçado até então vigente. A mudança havia sido introduzida pela Lei nO 2.556, de setembro de 1874, que marcou o início dos trabalhos das juntas de alistamento em todo o Império para l° de agosto de 1875. A nova lei espelhava as novas modalidades de prestação militar de corte universalizante que estavam-se tornando regra na Europa depois da guerra franco-prussiana (Howard, 1970). Fazia parte, por outro lado, de um amplo conjunto de reformas modernizantes que vinha sendo implementado pelo gabinete conservador de Rio Branco, incidindo sobre a instrução pública, a questão servil, o regime eleitoral, a magistratura e a Guarda Nacional. Para os militares refoIlllistas, a lei do sorteio militar permitiria que o Exército se aproxi-masse dos modelos de organização militar europeus, tornando-se mais profis-sionalizado, eficiente e "nacional" (Dudley, 1976). Para as elites civis, o principal benefício da reforma seria indireto: a eliminação das perniciosas influências do recrutamento sobre os pleitos eleitorais. Em agudo contraste com o ideário europeizante das elites, no entanto, a década de 1870 foi um momento de profunda inquietação nos espíritos populares, especialmente nas áreas rurais. Iniciando-se com os ecos da questão religiosa, uma série de enigmáticosji,rores populares, que passou pelos "quebra-quilos" e pelas ações dos "rasga-listas" no Nordeste e em Minas, pelo movimento mes-siânico dos Muckers no Sul, pela "revolta do vintém" na própria Corte, e se encerrou talvez apenas com as epopéias messiânicas de Canudos e do Contestado já na República, reagiu a processos de secularização e racionalização que rede-finiam as relações entre o Estado e os habitantes dos sertões mais remotos (Carvalho, 1992; Costa, 1987). Postos em movimento por uma conjugação de motivos complexos, tais episódios anunciavam profundas fissuras entre o mundo dos letrados e a cultura oral dos sertões. Na opinião daqueles que promoviam a reforma do recrutamento, tratava-se de um grande avanço institucional. A lei do sorteio substituía a "caçada humana" do recrutamento forçado por uma forma mais racional e eqüitativa de distribuição do serviço das armas. O próprio imperador vinha insistindo, desde 1872, nafala do trono, na necessidade de profundas mudanças no sistema em função das injustiças e tropelias que o recrutamento forçado invariavelmente suscitava (Falas do trono, 1977: 410).
A lei de 26 de setembro de 1874 estabeleceu o alistamento militar e o sorteio para homens livres e libertos entre 19 e 30 anos. Voluntários e designados pelo sorteio serviriam seis anos, enquanto o termo de serviço dos refratários se alongaria para oito anos. A lei permitia, em tempo de paz, tanto a substituição pessoal quanto a comutação pecuniária.
A nova lei aboliu também os castigos corporais no Exército e extinguiu as posições de cadetes e camaradas. Buscando tornar mais suave e atrativo o serviço das armas, a nova legislação procurava eliminar os elementos mais arcaicos da disciplina brutal e arbitrária, assim como as marcas de distinção hierárquica, e para isso suprimiu os sinais mais assustadores do estigma dos soldados.
As juntas de alistamento seriam formadas pelo juiz de paz, pelo subdelegado e pelo pároco local. Os alistamentos seriam revistos, com as respectivas reclamações, por uma junta de revisão nas sedes das comarcas. Os contingentes anuais da Corte e das províncias seriam fixados na proporção dos indivíduos apurados. Seriam s.orteados indivíduos na razão do triplo do contingente estabelecido.
O número e a variedade das isenções permitidas por lei reduziram-se drasticamente. Isenções tradicionais, como a dos casados, desapareceram. A nova lei, combinada com a reforma da Guarda Nacional de 1873, alterou também[p. 1, 2]do Império, a Religião Catholica e abaixo a reforma da ley do recrutamento". Como analisava o chefe de polícia da província de Minas, Desde que o povo, em sua maior parte quasi ignorante, e que muito dificilmente poderá comprehender, e até mesmo ler e conhecer esta lei, está imbuído na idéia de que é péssima, de que esta lei, em vez do recrutamento, que era feito pelas authoridades e recahía sobre um ou outro desordeiro da localidade, o faz recahir actualmente sohre os filhos do grande e do pobre, e que portanto, não há meios de recorrer aos matos e de fugir da localidade onde se é perseguido; desde que o povo entende que a lei é péssima, que não há meio de fugir della, e que o remédio é por embaraço à sua execução, elle assim o faz, ainda mesmo à custa do derramamento de seu sangue e da sua própria vida. (Am!aes da Assemblea Pruvincial, 1876: 308) Os alistamentos reduziam drasticamente os /wrizomes de invisibilidade da população, que até então indisponibilizavam grande parte dela para fins militares. De outro lado, o sorteio evocava uma idéia de eqüidade na distribuição dos encargos que procurava eliminar as possibilidades de tratamento discricionário. Paradoxalmente, as fontes do ódio popular à lei baseavam-se precisamente na crença na justiça da distribuição desigual do encargo e no temor de sua dis-tribuição incena. Tocqueville, ao analisar os mecanismos de seleção militar entre os americanos, afirmara que nas sociedades democráticas a paixão da inveja fazia tolerar o peso do encargo do serviço militar, mas não a sua desigualdade (Toc-queville, 1980: 499; Elster, 1993: 151-55). O que os habitantes do Brasil imperial não podiam admitir, movidos por inveja aristocrática, inversamente, era o tratamento igual para seres que consideravam como fundamentalmente desiguais. Como Calabresi e Bobbin observaram, a principal dificuldade com o mecanismo alocativo das loterias é que elas são incapazes de distinguir diferenças relevantes entre os indivíduos, trazendo a possibilidade de resultados absurdos. Elas são incapazes de resolver os problemas colocados por valores discretos em conflito (Calabresi & Bobbin, 1978). N o dia determinado para a reunião das juntas de alistamento em todo o Império, 10 de agosto de 1875, em várias províncias, multidões de homens e mulheres invadiriam os adros das igrejas, impedindo a realização das reuniões das juntas ou destntindo os alistamentos que ali se realizavam. Em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, as atas das juntas de alistamento de inúmeras paróquias relatariam a ação de grupos de homens e mulheres interrompendo repentinamente as reuniões das juntas e destroçando os papéis do recrutamento.2 2 [p. 9]A geografia dos distúrbios, entretanto, seria marcada por intensidades variáveis, no tempo e no espaço. Na freguesia de Leopoldina, em Pernambuco, cerca de 200 homens armados, "depois de ter travado o cacete, e muita facada corrida", rasgaram as listas. Da confusão resultariam um morto e muitos feridos. Em Cimbres, Bonito, São Caetano, Altinho, São Bento, Gravatá, Garanhuns, Buíque, Bom Conselho e Triunfo, haveria "grande exaltação", com os habitantes recusando-se a dar os nomes para as listas, rasgando os editais e ameaçando os inspetores de quarteirão e os membros das juntas. Em Itambé, seriam rasgadas todas as listas e demais papéis durante a noite, com a significativa exceção das petições que requeriam isenções. Na Paraíba, igualmente, "sintomas de oposição à nova lei" se faziam sentir em Alagoa Grande, A1agoa Nova, Ingá, Campina Grande e Pilar. Nas , Alagoas, listas seriam rasgadas em Palmeira dos Indios e Penedo. Em Acarapé, no Ceará, cerca de 60 "desordeiros armados de fouces e cacetes" haviam entrado em conflito com a força pública, resultando a escara-muça em mortes e ferimentos. Em Limoeiro, Quixadá, Boa Viagem, Saboeiro e Conceição do Baturité, grupos de mulheres ocupariam as igrejas e rasgariam todos os alistamentos. Em Goianinha, no Rio Grande do Norte, cerca de 300 pessoas entraram em conflito com a tropa, resultando em três mortes e sete feridos. Alguns dias depois, ocorreria novo conflito com a tropa em Canguare-tama, com novos feridos e presos. Na Bahia, um sério confronto já havia oposto povo e tropa na cidade de Salvador no dia 2 de julho, quando, durante os festejos públicos da independência da Bahia, a tropa atirou sobre a multidão. O comandante Frias Villar, que ordenou os disparos, seria espancado por populares quase até a morte, sem encontrar abrigo em qualquer parte (Villar, 1876). A tensão latente entre tropa e povo na cidade parecia ligar-se diretamente à questão dos alistamentos que estavam por se iniciar. Na seqüência dos eventos do 2 de julho, apareceriam inúmeras proclamações e provocações de resistência contra o recrutamento, mesmo nos jornais (A,maes do Senado, 1875[IV]: 2). Homens e mulheres armados des-truiriam as listas em Santa Ana do Catu, Barcelos e Maraú, todos na comarca de Camamu, bradando que se tratava de uma "lei para captivar o povo". Seguir-se-iam prisões e confrontos com a tropa em várias dessas localidades. Nas províncias do Norte, a reação contra o recrutamento seguia de perto os passos da rebelião contra o sistema métrico que havia varrido a região entre novembro de 1874 e janeiro de 1875, e que ficaria conhecida como "quebra-quilos" (Barman, 1977: 401-424). A açao de "quebra-quilos" e "rasga-listas" se concentraria, coincidentemente, na regiao do agreste, onde uma florescente agricultura de brejo baseada no trabalho livre dos "matutos" abastecia o sertão e a mata, por meio de uma extensa rede de feiras locais, e se dedicava igualmente. [p. 10]