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A RESTAURAÇÃO PRODIGIOSA DE PORTUGAL. 1640-1668 JOÃO ANDRÉ DE ARAÚJO FARIA
agosto de 2010. Há 14 anos
Segundo o cronista Duarte Galvão, na Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques,composta no ano de 1505, o “milagre” ocorreu da seguinte maneira: ao sul do Tejo, noscampos de Ourique, foi travada uma grande batalha entre os exércitos cristãos de D.AfonsoHenriques e os exércitos de cinco reis mouros. O temor era evidente nos cristãos, que nãoacreditavam na vitória. Porém, o príncipe português consolou os espíritos dos súditos, aorecordar a justiça da causa, fundada no confronto com os inimigos da cristandade. À noite,D.Afonso recebeu em sua tenda a visita de um ermitão, que confidenciou ao príncipeportuguês que a vitória Cristo lhe garantiria, após aparecer crucificado nos céus. O sinal dessavisão seria a campainha da pequena capela do ermitão. D.Afonso Henriques então adormeceu,após orar a Deus e à Virgem Maria. Na manhã seguinte, o príncipe acordou com o som dacampainha, correu para fora de sua tenda e teve a visão de Cristo na cruz. Pondo-se dejoelhos, D.Afonso Henriques orou e exclamou: “Senhor, aos Ereges, aos Ereges faz msiterappareceres, que eu sem nhuma duvida creio, e espero em ti firmemente”. Dos céus, Cristo,por sua vez, declarou ao príncipe português: “Não te apareci para acrescentar tua fé, mas parafortalecer teu coração neste conflito, & fundar os princípios do teu reino sobre pedra firme”.Após o milagre, D.Afonso Henriques foi aclamado como rei de Portugal pelos soldados e,transcorridas algumas horas, venceu a batalha. Cumpria-se então, segundo a crônica, a duplapromessa divina, correlata à vitória contra os mouros e à fundação do reino55.

Esta história ganhou sérios contornos patrióticos a partir do reinado de Filipe I. O reiHabsburgo, soberano do reino de Castela, tornou-se rei de Portugal em 1580, após a morte deD.Henrique de Avis, que havia sucedido o sobrinho-neto D.Sebastião no trono, após estejovem rei ter falecido nas areias do Marrocos, durante outra batalha entre portugueses emouros. Enquanto vigorou a União Ibérica (1580-1640), a origem mítica do reino lusitano foirecordada com a função de justificar a proeminência de Portugal no conjunto das coroas dosHabsburgos e legitimar a condição imperial do reino, cujo alicerce eram as conquistasmarítimas56. Este quadro de concorrência entre os reinos de Castela e Portugal condicionou,igualmente, a busca pelas memórias históricas do cristianismo na Península Ibérica57.

Por volta da mesma época, várias profecias circularam de forma manuscrita pelo reinoportuguês58, reforçando este quadro político-religioso da memória histórica lusitana, que serevelava como a expressão do espírito autonomista de Portugal59. A memória portuguesa,repleta com o maravilhoso cristão e enraizada culturalmente, fixou no imaginário coletivo deseiscentos a crença de um reino profeticamente destinado para a liderança da cristandade, comrei natural e legitimamente herdeiro de D.Afonso Henriques. Ela se constituiu na principalreferência histórica para uma literatura apologética da Restauração de Portugal60. [Página 24]

Outras formas de questionamento da autoridade bragantina ocorreram através deafrontas mais incisivas, como a deserção e evasão de nobres e seus familiares para Castela oumesmo atentados contra a vida do monarca bragantino. Estes desacatos também foramperpetrados por religiosos, alguns dos quais participantes do quotidiano do monarca. Ohistoriador Diogo Ramada Curto, em artigo sobre a Capela Real, estudou alguns destesdesacatos contra a crença religiosa e a autoridade do rei, demonstrando serem comuns desde oreinado de D.João III. Instituição anexada à Casa Real, a capela tratava-se de um “espaçopromotor de hierarquias e de exclusões”, onde os diversos rituais religiosos e cerimoniais damonarquia ocupavam o lugar central. O culto ao divino, por sua vez, dotava os monarcas deprestígio e simbolismo sagrado, retratados exemplarmente no papel de devotos e guardiões dareligião católica. Apesar disso, como apontamos, “no seu interior, bem como a sua porta,assist[iam-se] a conflitos que [punham] em causa o monarca”88.

Logo nos primeiros meses da Restauração, mais precisamente em fevereiro de 1641,uma grave deserção de nobres portugueses chocou a corte lisboeta. Tratava-se da fuga de doisirmãos Mascarenhas, filhos do Marquês de Montalvão, então governador geral do Brasil.D.Pedro e D.Jerônimo de Mascarenhas – futuro Bispo de Segóvia – após declararem suasdúvidas sobre seguir o partido de D.João IV na Capela Real, conseguiram fugir do Reino como auxílio de sua mãe e do dominicano Fr. Manuel de Macedo. A gravidade da situação resideno fato de estes dois irmãos serem personagens importantes da cena política de Portugal, osquais mantinham laços familiares estreitos com outros nobres em funções centrais do governobragantino, além de estarem, ao fugir, partindo para as praças africanas das quais se esperavaadesão à Restauração89.As dúvidas geradas por estas duas deserções fizeram eco no Atlântico,atingindo o Marquês de Montalvão, que, alguns meses depois da aclamação de D.João IV noBrasil, foi destituído do governo e enviado para Lisboa, suspeito de crime contra amonarquia90. A deserção dos irmãos Mascarenhas era ainda mais grave por envolver a pessoade frei Manuel de Macedo, respeitado na corte pelo prestígio que possuía junto das casasnobiliárquicas. Um inquérito exigido por D.João IV concluiu ser ainda da responsabilidade dofrei a fuga de outros nobres, antes do crescimento da vigilância na Casa Real. Preso, Manuelde Macedo encontrou seu fim no Convento do Carmo91, constituindo-se num exemplo de queo comportamento dos religiosos em relação à Restauração de Portugal não foi unânime,havendo descrença quanto à legitimidade da casa de Bragança também neste grupo social92.

87 Cf. ALVARES, Op.cit., pp.284-285. A Igreja de Santo Antônio em Madrid, sede da “Irmandade de losDevotos de Santo Antônio dos Portugueses na Corte”, também era um destes locais de reunião e celebração doPortugal dos Habsburgos. Aquela instituição era compreendida como uma “igreja nacional”, de proteção eamparo régio, tal como eram as outras igrejas de súditos da monarquia dos Habsburgos, que eram freqüentadaspor italianos, aragoneses e alemães. (Conferir pp.210-211 e pp.280-281)88 CURTO, Op.cit., 1991, p.229. CURTO, Op.cit., 1994, p.385.89 Os filhos do Marquês de Montalvão integravam uma pequena frota de dois navios que se dirigia para Ceuta eTanger. Acompanhavam estes irmãos os nobres nomeados por D.João IV para governar aquelas praças africanas.Entretanto, poucos dias mais tarde, chegou em Lisboa a notíciada deserção destes nobres, que haviam aportadona Andaluzia com a intenção de se abrigarem em Castela, em sinal de fidelidade a Filipe III. Foram recebidoscom honras no palácio real, após manifestarem publicamente sua obediência ao rei castelhano, sendo-lhesconcedidas diversas mercês e títulos nobiliárquicos. D.Pedro, por exemplo, foi feito conde de Castelo Novo.D.Jerônimo, que alçou importantes cargos na corte filipina, foi eleito Definidor Geral da Ordem de Calatrava eadmitido no conselho de Ordens e no Conselho de Portugal, quando este foi recriado em 1658. Tornou-seCapelão-mor da rainha Mariana de Áustria e terminou seus dias como Bispo de Segóvia. Cf. COSTA, Leonor F.,CUNHA, Mafalda S. da. D.João IV. Lisboa: Circulo dos Leitores, 2006, p.105. Cf. ALVAREZ, Op.cit., pp.280,282-289 e 351, nota 36.90 Cf. HOLANDA, Sergio Buarque de “António Vieira”. In: Capítulos de Literatura Colonial. Rio de Janeiro:Ed.Brasiliense, 1991, p.448. Cf. SERRÃO, Op.cit., pp.50-51.91 MARQUES, Op.cit., pp.53-54.92 Cf. ÁLVAREZ, Op.cit., p.278. É importante sublinhar que os secretários da Casa Real tinham consciência doimpacto negativo que as deserções dos nobres portugueses promoveriam nas esperanças do sucesso da [Página 31]

que existiam aqueles portugueses que se posicionavam reticentes quando a realidade dofenômeno. O franciscano João de São Bernardino, embora demonstre crer no prodígio, faz aressalva de que não pode aprová-lo como milagre, eximindo-se do julgamento por não setratar de uma das autoridades religiosas aptas no estabelecimento da veracidade do assunto123.A Gazeta, em que se Relatam as Novas todas, que ovve nesta corte, e que vieram devarias partes no mes de Nouembro de 1641 apresenta, entretanto, o dado revelador quanto àpossibilidade de existirem descrenças sobre o fenômeno:“Num lugar da Beira se afirma que ouue hum home, que ouuindo dizer numacõuersação de amigos que na felice aclamação delRey nosso Senhor fizera o crucifixoda Sè o milagre, que a todos he notorio. disse que podia a caso a imagem do Senhordespregar o braço; & assim como acabou de dizer estas palavras cahio humaparede junto do qual estavão todos os da conuersação, & sò a elle matou”124

A descrença se revela no periódico português, contudo, em uma idéia a ser eliminada,que para tanto, atribui aos céus a responsabilidade do fato. A publicação deste infelizacontecimento, que vitimou um português pouco seguro do principal milagre a confirmar aRestauração do reino, visava combater as possíveis manifestações contrárias ao milagre, quepoderia desencadear a contestação do próprio movimento restaurador. Recorrendo uma vezmais ao franciscano João de São Bernardino, pedimos ao leitor atenção para as palavras nosermão impresso: “eu não posso aprovar milagres, nem he prudencia diminuir devoções”. Omilagre do crucifixo da Sé de Lisboa encontrava-se já inserido na memória veiculada daRestauração. Como veremos mais adiante, ele se liga a outros fenômenos prodigiosos dahistória do reino, o que sustentava a confiança em uma crença na intervenção tutelar de Deusna aclamação do duque de Bragança. Deste modo, para a análise dos sentidos atribuídos a estemilagre, implica considerar esta e outras descrições como topos das expectativas de sucessodos conjurados de dezembro de 1640.

Todas as interpretações do “milagre” da imagem de Cristo convergem para a literaturasobre as origens da monarquia de Portugal. Elas sugerem que a crença na intervenção daDivina Providência junto ao movimento restaurador somente poderia ser compreendida apartir do já citado milagre de Ourique. Este, recordemos, foi o mítico momento da “aparição”de Cristo a D.Afonso Henriques, nos campos de Ourique, em 1139, por ocasião de uma épicabatalha entre o príncipe cristão e suas débeis forças contra o incrível exército de cinco reismouros. Segundo as crônicas da época moderna, Cristo prometeu àquele primeiro rei que naspessoas de seus descendentes erigiria um glorioso Império125. Esta tradição de memória,largamente aceita a partir do século XVI, cristalizou a fé numa atenção especial que o Deusdo cristianismo dedicava ao reino de Portugal126.A memória de Ourique projeta no tempo duas características que marcam ainterpretação da dignidade monárquica portuguesa. Por um lado, relaciona-se diretamentecom a sagração de D.Afonso Henriques como rei, configurando uma imagem régia idealizadados monarcas portugueses127. Por outro lado, projeta nos seiscentos esta imagem sobrenaturalda dinastia lusitana, ao conceder critérios de legalidade para o reconhecimento da aclamaçãode D.João IV e justificar a soberania do reino de Portugal. Com efeito, são duas imagens de [Página 39]

Deixou, ainda, referendada em seus testamentos, a observação de que fossem rezadasmissas, todos os dias, pelas “almas delles instituidores, & por todos os seus ascendentes, &descendentes”, de obrigação de quatro Capelães residentes perpétuos do dito Morgado. E,expressou o desejo de que “a festa principal da Senhora fosse todos os annos em 2.de julho nodia da Visitaçam de nossa Senhora”. Além destas referências, cumpre ainda destacar que, nodia da festa, “além da armação da Ermida, se poem nella as bandeiras, que D.Gastão Coutinhoganhou assim aos Galegos na Provincia de entre Douro, & Minho; como em Tangere aosMouros”281. Com todo o aparato, acreditamos, a festa cumpriria a função de eternizar os feitosdeste nobre restaurador na história da comunidade, na história da imagem milagrosa, dadevoção mariana e na do reino restaurado.

Elaborada algumas dezenas de anos após 1640, por ocasião da memória da festa de uma imagem milagrosa, frei Agostinho de Santa Maria sustentou no texto a ancestralidade do culto, demarcando-lhe o início junto dos primeiros dias da Restauração. Nesta crônica, o eixo da narrativa é composto pelas descrições dos milagres e da devoção de um fidalgo restaurador. Notadamente, é a figura de D.Gastão Coutinho o alvo da imagem milagrosa, para benção ou possível ira. Agraciado com a vitória em Caiscais e o seu retorno com vida, não se sabe ao certo se era desejo do nobre restaurador concluir a promessa feita à imagem de Nossa Senhora do Rosário, construindo-lhe edifício digno de glória. A julgar que não, a intervenção da Virgem Maria instou-o a uma decisão, fosse a de cumprir a promessa ou a de tornar “a levar a Sua Imagem à mesma parte da donde se tirara”, estabelecendo um marco na vida do fidalgo restaurador, chamado pelos céus a cumprir uma promessa. Sem descendentes diretos, foi na instituição do morgadio da imagem milagrosa, de responsabilidade de seu sobrinho, provavelmente outro grande beneficiado do testamento, que se associou a vida do nobre fidalgo com a causa da Restauração, através deste elo de ligação, em que se constituiu a devoção mariana. Tal como as festas em memória da Restauração promovidas por D.João IV, D.Gastão Coutinho deixou instruções específicas de que as cerimônias festivas da Virgem do Rosário da Restauração ocorressem em data definida (dia da Visitação da Senhora) e contassem com os estandartes dos inimigos vencidos em nome do rei, com o apoio da Virgem Maria, representada na sua imagem de particular devoção. Uma vez que todas as denominações da Virgem correspondem a características da memória da vida da Senhora ou das posteriores intervenções miraculosas junto aos devotos, sendo a mesma Santa Maria cultuada, por exemplo, no altar da Capela de Vila Viçosa (denominada a Imaculada Conceição) ou na ermida da quinta do Grillo (Nossa Senhora do Rosário), encontramos um traço marcante na narrativa: ao dotar a festa da imagem milagrosa com as insígnias particulares de sua vida de combatente da causa portuguesa, D.Gastão Coutinho e a família Camara & Atayde se inserem no ambiente de agradecimento coletivo criado com a devoção régia e pública assumida por D.João IV à Virgem, confirmada em 1646 com a aclamação como padroeira.

2.2.3. “Joana de Deus, reformadora de sua igreja e protetora de Portugal”O circuito da devoção mariana, contudo, não se encontrava apenas entre o círculo dosfidalgos restauradores, podendo ser identificado também entre as pessoas comuns do povo. E,segundo Laura de Mello e Souza, esta devoção foi condicionada pela atmosfera de medo eguerra que vinha das fronteiras do reino: “a preocupação com a ordem política e o desejo de [Página 74]

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