Um roteiro do cineasta Joaquim Pedro de Andrade analisado pelo crítico Ismail Xavier, folha.uol.com.br
Atualizado em 13/02/2025 06:42:31
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Casa-Grande, Senzala & Cia (Roteiro Inédito)Joaquim Pedro de AndradeOrganização: Ana Maria GalanoAeroplano (Tel. 0/xx/21/2529-6974)304 págs., R$ 40,00ISMAIL XAVIERRoteiros como o de Joaquim Pedro de Andrade repõem a questão da autonomia relativa do gênero. Reforçam a prática editorial que nos convida a lê-los como "peças literárias", embora continuem lá as cifras do futuro filme, as marcas que apontam para outro meio. Não assumo aqui uma defesa incisiva da autonomia, pois não perco de vista a obra em projeto, mas está claro que a leitura deste roteiro vale "per se", e seria uma pena se ele recebesse apenas a atenção de potenciais diretores de um filme que o cineasta não pôde realizar antes de sua morte, em 1988. Se a regra for essa, melhor será que assumamos todos, privadamente, essa posição, vivendo o prazer e o desafio da tradução imagética de um texto complexo em suas sugestões. Quando digo desafio, não penso apenas na composição da experiência focalizada, a dos séculos 16 e 17, mas também no terreno da própria relação entre palavra e imagem, pois o cotejo não é de mão única; envolve reversibilidades que estão no centro das duas experiências, a do cinema e a da literatura.Há, no roteiro, um exemplo de tais transportes numa sequência protagonizada pelo jovem padre Abaré, figura da inocência curiosa e em constante movimento, ora com ares franciscanos perante a natureza, ora exibindo sua ingenuidade explosiva na lida com os índios, no que é sempre corrigido pelo grande mestre em política, o padre Manuel (figura inspirada em Manuel da Nóbrega). Na sequência que interessa, Abaré caminha pelo mato, empenhado nos "Exercícios de Perfeição" jesuíticos. Primeiro, temos a sua leitura em voz alta de uma passagem dos "Exercícios": "Os lábios não devem estar contraídos nem em demasia abertura. Evite-se o franzir da testa ou do nariz, pois cumpre que se leia no rosto, espelho da alma, a serenidade interior". Em seguida, o roteiro indica: "Enquanto lê, vai corrigindo a expressão do rosto, até atingir uma máscara de profundo vazio".A ironia que aí se desenha tem nuances claras para o leitor do roteiro que estaria, nesta altura, habituado à personagem e ciente de que a tônica de Joaquim Pedro de Andrade não seria a de tomar o jovem -fonte de comédia, mas personagem simpático- como instrumento para uma caricatura dirigida ao aspecto conceitual dessa experiência, mas jogar justamente com a ambiguidade entre o que é pessoal (de Abaré) e o que é da doutrina do "espelho da alma", hoje um clichê incorporado ao senso comum do próprio cinema, terreno onde, enfim, restaria produzir visualmente o senso de vazio que o texto enuncia.Em outra sequência -nomeada "Atolando o Pé em Carne"-, a montagem remete a uma passagem específica de "Casa-Grande e Senzala": "O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne". Gilberto Freyre aí condensa a imagem da "intoxicação sexual" dos primeiros tempos da Colônia, com ênfase para o drama dos jesuítas, assunto que o roteiro transforma ironicamente em "leitmotiv".É em torno da experiência da catequese que o filme acentua os dados contraditórios da empreitada colonial com maior força, pela própria natureza desse pólo de regramento em nada imune à corrupção e às intrigas do poder que muitas vezes o nivelam a tudo o mais. O toque efetivo de candura, isolado na empreitada, vem das palavras de Caminha ouvidas na sequência de abertura do roteiro, não por acaso nomeada "Terreal Paraíso". Mas sua descrição amigável dos nativos é sugestão poética do primeiro encontro, logo rebaixada por um comentário de nobre português em que "paraíso" se resume à promessa contida no corpo das índias. Com esse gesto redutor, o comerciante planeja a empreitada e deslancha a narrativa, de resto povoada de europeus malandros, cuja vocação é articular sexo, posses materiais e jogo do poder. Em tal arranjo, o pólo visto como o mais saudável é o primeiro, modo de isentar a libido desregrada de conotações negativas (em contraste com o olhar de Paulo Prado). Na prosa de Joaquim Pedro de Andrade, o sexo mostra, de preferência, sua dimensão de festa, tanto quanto os esforços de contenção quase sempre motivam o riso, mas a comédia corrosiva se reserva à guerra conjugal da casa-grande, feita de machismo e ressentimento feminino, de prevaricações condenadas no púlpito, porém usadas como moeda de troca no jogo político.A encenação da vida cotidiana incorpora a erudição de Gilberto Freyre e o que este acentua como traços gerais da vida em família e das relações interpessoais na colônia. Mas o roteiro não é uma adaptação do livro. Além da distância formal entre ensaio e narrativa, há também o leque de referências extraídas de outros historiadores, pois a pesquisa intensa é um dado sempre lembrado pelos que acompanharam o cineasta na fatura, em especial Ana Maria Galano, autora, com Lula Buarque, do diário de trabalho que acompanha o roteiro.O diálogo com Freyre, embora central, se ajustou a outros enfoques. O cineasta trata os senhores com mais sarcasmo e descarta os atenuantes trazidos pela moldura de uma teleologia da civilização luso-tropical e sua valoração retrospectiva do patriarcalismo. Se o ensaísta o inspirou na organização dos motivos da vida colonial, ligados à forma peculiar com que se deu aqui o confronto de culturas, sob o domínio europeu, o que interessa a Joaquim Pedro de Andrade é menos o elogio à miscigenação ou à sagacidade de qualquer dos grupos em confronto do que a descrição de situações de fato que recebem um comentário lacônico, valendo um "assim se deu" que mescla vários tons de representação.A sua atenção aos grandes conflitos de classe e etnia -batalhas entre índios e portugueses, o ataque ao quilombo dos Palmares- desenha um império da violência que insere os dados de permanência -esses que marcam a "diferença brasileira" na empresa colonial-, numa perspectiva disposta a sublinhar, mais do que tudo, os limites da convivência tolerável e da mistura dos códigos na casa-grande ou nos aldeamentos. Perspectiva disposta a salientar a mão pesada dos poderes, a "ratio" mercantil dos senhores, as "razões de Estado" dos jesuítas.
O que é História?
Abraham Lincoln (1809-1865) dizia que "se não for verdade, não é História. Porém, é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade.
Existiu um homem que pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo, o número de desempregados caiu de 6 milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o produto interno bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar, aumentou os lucros das empresas de 175 milhões para 5 bilhões de Marcos e reduziu uma hiperinflação, a no máximo 25% ao ano. Este homem adorava música e pintura e quando jovem imaginava a seguir a carreira artística. [28174] Você votaria neste homem Adolf Hitler (1889-1945)?
Quantos ou quais eventos são necessários para uma História? Segundo Aluf Alba, arquivista do Arquivo Naciona: o documento, ele começa a ser memória já no seu nascimento, e os documentos que chegam no Arquivo Nacional fazem parte de um processo, político e técnico de escolhas. O que vai virar arquivo histórico, na verdade é um processo político de escolhas, daquilo que vai constituir um acervo que vai ser perene e que vai representar, de alguma forma a História daquela empresa, daquele grupo social e também do Brasil, como é o caso do Arquivo Nacional.
É sempre um processo político de escolha, por isso que é tão importante termos servidores públicos posicionados, de pessoas preparadas para estarem atuando nesse aspecto.
Mary Del Priori, historiadora:
Nós temos leis aqui no Brasil, que são inclusive eu diria bastante rigorosas. Elas não são cumpridas, mas nós temos leis para arquivos municipais, estaduais e arquivos federais, que deveriam ser cobradas pela própria população, para manutenção desses acervos, acervos que estão desaparecendo, como vimos recentemente com o Museu Nacional e agora com a Cinemateca de São Paulo. E no caso dos arquivos municipais, esses são os mais fragilizados, porque eles tem a memória das pequenas cidades e dos seus prefeitos, que muitas vezes fazem queimar ou fazem simplesmente desaparecer a documentação que não os interessa para a sua posteridade. Então esse, eu diria que essa vigilância sobre o nosso passado, sobre o valor dos nossos arquivos, ainda está faltando na nossa população.
Lia Calabre, historiadora:
A memória de Josef Stálin inclusive, ela serve para que não se repitam os mesmos erros, ela serve para que se aprenda e se caminhe. Os processos constantes de apagamento. Existe um depósito obrigatório de documentação que não é feita, na verdade se a gente pensar, desde que a capital foi para Brasília, os documentos não vieram mais para o Arquivo Nacional. [4080]
Quantos registros?
Fernando Henrique Cardoso recupera a memória das mais influentes personalidades da história do país.
Uma das principais obras do barão chama-se "Efemérides Brasileiras". Foi publicada parcialmente em 1891 e mostra o serviço de um artesão. Ele colecionou os acontecimentos de cada dia da nossa história e enquanto viveu atualizou o manuscrito. Vejamos o que aconteceu no dia 8 de julho. Diz ele:
- Em 1691 o padre Samuel Fritz, missionário da província castelhana dos Omáguas, regressa a sua missão, depois de uma detenção de 22 meses na cidade de Belém do Pará (ver 11 de setembro de 1689).
- Em 1706 o rei de Portugal mandou fechar uma tipografia que funcionava no Recife.
- Em 1785 nasceu o pai do Duque de Caxias.
- Em 1827 um tenente repeliu um ataque argentino na Ilha de São Sebastião.
- Em 1869 o general Portinho obriga os paraguaios a abandonar o Piraporaru e atravessa esse rio.
- Em 1875 falece no Rio Grande do Sul o doutor Manuel Pereira da Silva Ubatuba, a quem se deve a preparação do extractum carnis, que se tornou um dos primeiros artigos de exportação daquela parte do Brasil.
Ainda bem que o barão estava morto em 2014 julho que a Alemanha fez seus 7 a 1 contra o Brasil.
(...) Quem já foi ministro das relações exteriores como eu trabalha numa mesa sobre a qual a um pequeno busto do barão. É como se ele continuasse lá vigiando seus sucessores.
Ele enfrentou as questões de fronteiras com habilidade de um advogado e a erudição de um historiador. Ele ganhava nas arbitragens porque de longe o Brasil levava a melhor documentação. Durante o litígio com a Argentina fez com que se localiza-se o mapa de 1749, que mostrava que a documentação adversária estava simplesmente errada.
Esse caso foi arbitrado pelo presidente Cleveland dos Estados Unidos e Rio Branco preparou a defesa do Brasil morando em uma pensão em Nova York. Conforme registrou passou quatro anos sem qualquer ida ao teatro ou a divertimento.
Vitorioso nas questões de fronteiras tornou-se um herói nacional. Poderia desembarcar entre um Rio, coisa que Nabuco provavelmente faria. O barão ouviu a sentença da arbitragem em Washington e quieto tomou o navio de volta para Liverpool. Preferia viver com seus livros e achava-se um desajeitado para a função de ministro.