Economia cristã e religiosa política: o “Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo”, de Luigi Vincenzo Mamiani
2015 Atualizado em 06/11/2025 14:25:50
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do colégio superavam em muito o estritamente necessáriopara o sustento dos seus superiores, como vimos acima.Dessa forma, Mamiani fez com que o tempo de trabalhoexigido dos indígenas entrasse no rol dos maus tratos a elesimpostos pelos administradores do colégio (à maneira dosmoradores seculares da capitania paulista), ocupando neleposição destacada, o que os igualaria aos que possuíam otítulo de “escravos legítimos”.Veja-se que não se trata aqui (como, por exemplo,nos sermões de Vieira) de uma abordagem teológica dotempo de maneira a situar a humanidade na ordem escatológica cristã e assim determinar e/ou justifi car papéiscorrespondentes a cada agente histórico nela envolvido.Trata-se fundamentalmente de uma abordagem prática e,talvez possamos assim dizer, instrumental do tempo, queo funcionaliza para defender uma prática social (no caso,econômica) no próprio mundo dos homens.A medida pela qual tanto o trabalho em si quantoo tempo de trabalho no colégio de São Paulo foram avaliados pelo visitador foi a renda. Enquanto valor decorrentedo trabalho humano, exercido no interior da unidadeprodutiva que confi gurava o colégio jesuíta, foi a rendaque possibilitou a Mamiani demonstrar empiricamente aincompatibilidade entre, de um lado, o trabalho indígenae, de outro, a consciência e a justiça cristã (também essasqualifi cadas a partir de atributos materiais). A unidadeentre as três categorias (tempo, trabalho e renda)29, portanto,foi o meio pelo qual Mamiani requalifi cou a relação entreeconomia e religião no seu Memorial.A argumentação de Mamiani, no “Memorial”,parece peculiar. Se, por um lado, vincular economia e moralnão constitui uma inovação do seu pensamento, o raciocínio matemático que embasa suas soluções para a situaçãodo colégio de São Paulo parece abandonar a relação tradicional entre esses dois termos, levando a moral para umsegundo plano, mesmo que a mantenha como uma éticadentro da qual deveria se situar a economia.Este ponto torna-se tão mais claro à medida queretomamos a passagem na qual Mamiani justifi ca por que asolução de se inserir o colégio na exploração mineradora nãoconfi guraria, na sua perspectiva, um caso de “deformidade deambição” (Mamiani, 1701, fl . 39v). Sua resposta ao problemafoi que a quantidade de metais preciosos disponíveis paraextração nas minas era imensa e de simples acesso, o bastantepara enriquecer a todos que o quisessem, sem resultar noprivilégio de alguém em detrimento de outros, causandoemulação e inveja (Mamiani, 1701, fl . 39v). Ora, ao julgaruma matéria de pecado tendo como única condicionantea disponibilidade de riquezas envolvidas no assunto, o religioso construiu seu argumento de maneira a harmonizareconomia e religião de um ponto de vista que, à sua maneira,privilegiava condições e elementos materiais sobre aspectoséticos, simbólicos e morais: imateriais, portanto.À primeira vista, especialmente se tratando deum padre jesuíta, deveríamos fi car surpresos com suasconclusões. No entanto, ao buscarmos outros autores emcujas obras podemos verifi car essa forma de relacionaros dois termos, economia e religião, encontramos, dentroda própria Companhia de Jesus, Giovanni Botero, que jádera especial relevo aos ensinamentos de teor fi nanceiro eeconômico quando dissertou sobre as funções distributivase comutativas desempenhadas pelo Estado, com vistas aobem comum30.Para Botero, cujo livro Della Ragion di Stato (1997[1589]) pretendeu ser uma resposta a Maquiavel, bem esalvação públicos concerniam não apenas ao Príncipe, mastambém aos seus súditos31. No bem público, distinguiam--se as esferas temporal (civil e política) e espiritual (areligião, que voltava, assim, a ter um lugar na política).Note-se, todavia, que, para Botero, não é na religião,mas no aspecto civil e político do governo do Príncipe quese encontravam os principais trunfos para a conservação eaumento do Estado32. Concreta e especifi camente, na população do seu reino e no dinheiro que ele podia acumular.Mas, para Botero, a riqueza acumulada destinava-se nãoao aumento do poder do Príncipe, e sim para benefi ciara própria população, por meio da magnanimidade dogovernante. Dessa maneira, Botero pretendeu responder aMaquiavel: a política econômica por ele concebida reunifi -cava a moral e a política na medida em que a virtude ética damagnanimidade (Aristóteles, 1973, III-VI) praticada peloPríncipe reverteria na conservação e aumento do Estado.
29 A relação entre as três categorias também está presente em um outro documento da mesma época, escrito por Luís Lopes de Carvalho, agente reinol e explorador de ferro em São Paulo, na década de 1690. Sobre as semelhanças da abordagem dos termos trabalho, tempo e renda em Carvalho e Mamiani, cf. Velloso (2014, p. 1357-1370).30 Especialmente nos livros VII e VIII de Della Ragion di Stato (Botero, 1997). Esta obra conheceu dez edições durante a vida de Botero, e quarenta e duas reimpressões no século XVII (Firpo, 1948, p. 460-461).
31 Esta era uma maneira de responder a Maquiavel, que escreveu: “é necessário a um príncipe, para se manter, que ele adquira a capacidade de não ser bom, e que faça ou nãouso dela de acordo com a necessidade” (Maquiavel, 2010 [1532], cap. XV). Não há, contudo, desvio total da moralidade tradicional: no fi nal do capítulo XVIII, Maquiavel diz queo Príncipe “não deve desviar-se do que é bom, se assim for possível, porém deve saber como praticar o mal, se isso se fi zer necessário”. Conforme explica Robert Chisholm,“O objetivo do príncipe, coerente com o compromisso de Maquiavel com a ‘verdade efetiva da coisa’, é o estabelecimento de uma ordem estável em meio a um mundo decontingência e acaso. Tudo está subordinado à criação de uma ordem humana neste mundo. A subordinação de todas as outras considerações a esta última está na raiz daalegação de que Maquiavel deseja divorciar a política da moralidade. Mas essas alegações são equivocadas na medida em que insistem na natureza universal da moralidadeapesar da insistência de Maquiavel de que o mundo não se submete a universais. Para Maquiavel, não há fundamento para julgamentos universais, há apenas uma respostapara a circunstância particular. Pode-se chegar até a dizer que ‘a ação estabelece o terreno da moralidade’. A ação humana é a única base para julgamentos normativos, e a açãopolítica é a ação humana que cria a ordem dentro da qual tais julgamentos podem ser feitos” (Chisholm, 1998, p. 52-53).32 “Stato”, entendido, no livro I, como “un dominio fermo sopra popoli”. [p. 127]
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